Olá! Sou
religioso da Congregação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus, estudante de
teologia (4º ano) e uma matéria sobre aborto e história da Igreja me intrigou
nessa semana. A reportagem é intitulada “Uma verdade inconveniente: a Igreja
Católica já tolerou o aborto” traz a afirmação que já foi permitido o aborto na
Igreja”. Acho que o assunto é por demais importante para ficar nos poucos
parágrafos da revista. Gostaria de saber se a informação procede. Acredito que,
independente da história, o que importa é o que fazemos hoje. Abraços, e
obrigado pelas matérias do site! (o link
da revista é: Uma verdade inconveniente: a Igreja já tolerou o aborto!).
Ronaldo Neri, scj
Resumo do artigo no Blog da Revista Super Interessante
Você
sabia que, ao contrário do que pensamos, a Igreja Católica nem sempre condenou
o aborto? A interrupção da gravidez só se tornou pecado em 1869, por causa de
um acordo entre o papa Pio 9º e o imperador francês Napoleão 3º.
E isso
aconteceu porque a França passava por uma crise de baixa natalidade que
incomodava os planos de industrialização do governante. Então, motivado por
questões políticas, o papa disse para a população que a partir daquele momento
o aborto – em qualquer fase da gravidez – era pecado.
Até
aquele ano, a Igreja oscilava entre condenar ou admitir o aborto em certas
fases da gravidez de acordo com o contexto histórico. No entanto, a discussão
sobre qual é o momento em que o feto pode ser considerado um ser humano sempre
existiu. Santo Agostinho, por exemplo, defendia no século 4 que só 40 dias após
a fecundação o embrião se tornava uma pessoa.
Sem
entrar aqui na questão da validade cultural – e muito menos científica – dessas
revistas que buscam polemizar ao invés de informar, para essa questão convém
fazer um breve recorrido histórico sobre o tema do aborto[1].
Começando
pela fundamentação bíblica, a mentalidade cristã primitiva é derivada da
mentalidade hebraica. De fato, além do mandato do Decálogo de “Não matar”
(Ex 20, 13 e Dt 5,17), não existe um mandato específico de “Não abortar”.
Isso se dá pela clara razão de que para as culturas hebraica e cristã primitiva
(do tempo dos hagiógrafos) o aborto era algo impensável. Como diz Grisez – em
um povo que considerava a vida como um valor paradigmático a todos os demais
valores (…) considerada como um dom de Deus, que via os filhos como uma
bendição e a esterilidade como uma maldição, que aceitava a noção do poder
criador de Deus já no seio materno e que podia crer em uma relação pessoal
entre Deus e a criança ainda não nascida (…) a prática do aborto provocado
encontraria bem pouca acolhida. Por isso o silêncio do Antigo Testamento sobre
o aborto provocado indica que uma legislação sobre o tema seria inútil e não
que se aprovava tacitamente o aborto.
O
problema surge logo após o cristianismo cruzar as fronteiras de Israel, pois
para a cultura greco-românica, o aborto provocado era uma prática habitual[2]. A posição contrária ao aborto é
imediatamente tomada assim que se entra em contato com o novo problema. Um
exemplo claro disso é a Didaché – composta antes do final do primeiro
século – que coloca o aborto como um dos pecados que afasta do caminho da
vida[3], referindo-o também como parte do caminho
da morte: Perseguidores dos bons (…) matam os filhos e fazem perecer com
o aborto a uma criatura de Deus[4].
Após a
Didaché se dá
uma linha continua de testemunhos inequívocos dos Padres da Igreja e dos
escritores eclesiásticos – de oriente e ocidente – sem nenhuma voz discordante,
incluindo diversos argumentos. Tetuliano, Santo Agostinho[5] e Cesário de Arles são os autores deste
período que possuem mais intervenções em relação ao aborto. Apenas como exemplo
podemos citar essa passagem de Agostinho: Às vezes, chega a tanto esta
libidinosa crueldade, ou melhor, libido cruel, que empregam drogas
esterilizantes, e, se estas resultam ineficazes, matam no seio materno o feto
concebido e o jogam fora, preferindo que sua prole se desvaneça antes de ter
vida, ou, se já vivia no útero , matá-la antes que nasça. Repito: se ambos são
assim, não são conjugues, e se tiveram esta intenção desde o princípio, não
celebraram o matrimônio, mas apenas pactuaram um concubinato[6].
Aqui cabe
ressaltar, porque também o faz o artigo da revista a que nos referimos, a
dúvida de Santo Agostinho e de outros teólogos – dentre eles Santo Tomás –
sobre o início da vida. É verdade que pela tradução grega da Bíblia foi criada
uma distinção entre “feto formado” e “feto não formado” (distinção derivada do
pensamento grego e não existente no texto hebraico original de Ex 21, 22-23).
Porém, ainda que estes teólogos – pelas poucas ferramentas científicas que
possuíam – tivessem realmente tal dúvida, jamais defenderam que o aborto seria
lícito. Pelo contrário, Santo Agostinho afirma que ainda que não estivessem
formados (segundo a sua concepção) mereciam todo o respeito de uma vida humana
por aquilo que chegariam a ser.
Se na
teologia houve dúvidas em relação ao início da vida, o Magistério da Igreja,
ainda sem entrar nessa questão específica durante os primeiros séculos, sempre
condena claramente o aborto. Nos primeiros séculos, pela evidência do crime
cometido, não existem textos doutrinais do Magistério, porém existem penas
concretas – sanções canônicas – que demonstram a gravidade do pecado. Os
primeiros documentos em relação a isso são os Concílios de Elvira (305) e de
Ancira (314). Este último excluía da comunhão, por toda a vida, à mulher que
realizasse um aborto e estabelecia uma penitência de dez anos para que pudesse
voltar à comunidade eclesial (ainda sem poder comungar). Essas penas eram
locais e variavam de tempo de um país para outro – porém, de modo ininterrupto
e universal, o aborto sempre foi colocado entre os pecados mais graves e, consequentemente,
mais severamente punidos.