Diferentemente de
nossos colonizadores portugueses, o Brasil desconhece quase inteiramente a
religião muçulmana, tendo seu provável primeiro grande contato com o islamismo
no dia 11 de setembro de 2001, no ataque às torres gêmeas do World Trade
Center, em Nova York.
Confuso
e imerso em uma cultura embebida em um forte discurso anti-americanista, o
brasileiro se sentiu perdido com um ataque terrorista perpetrado por um
grupo de profundíssima base religiosa como a al-Qaeda. Ao mesmo
tempo, logo o islamismo foi apresentado como “a religião da paz”.
Um
estudo para responder a esta complexa questão exige muitas leituras religiosas,
históricas, filosóficas e teológicas, podendo no máximo ser proposto um
rápido esboço.
É a
única chance de conseguirmos alguma resposta inicial sem se calcar em clichês
de superfície na internet, baseados em generalizações como “todas as religiões
são iguais” e demais tentativas de equalização jogadas sem explicação,
envolvendo quase sempre a Inquisição, a Bíblia ou Israel, sem nunca um estudo
sobre o islamismo, o Corão ou mesmo as Escrituras e a história do cristianismo.
O
maior estudioso das religiões no mundo, o romeno Mircea Eliade, em um dos
livros mais importantes do século XX, O
Sagrado e o Profano: A essência das religiões, explica como a
experiência do “sagrado” é comum a todas as religiões e todos os povos,
sendo um elemento da nossa mentalidade que não desaparece mesmo entre aqueles
desligados de experiências religiosas.
O
homem religioso, por exemplo, pensa no tempo de maneira específica. Enquanto o
tempo histórico é uma sucessão numeralizável de “presentes”, o tempo sagrado
possui tempos “fortes”, as datas festivas religiosas, e tempos de menor
importância. O tempo também é razoavelmente cíclico, e uma data festiva, seja a
Páscoa, o Ramadã ou o intichiuma totêmico dos australianos significa
não apenas a lembrança posterior de um evento passado, mas a recorrência deste
evento, sempre represente, sempre revivido, podendo purificar pecados e
preparar os participantes para um novo ciclo. É o que Eliade chama de
“Tornar-se periodicamente o contemporâneo dos deuses”.
O
espaço também é sagrado, exigindo, por exemplo, dentro de uma igreja, um
comportamento diferente daquele fora dela. Estes elementos permanecem em
nossa visão secular e profana. Desde o espaço estelar, lar dos deuses, até o
solo habitado pelos humanos, há uma terra sagrada, a “Consagração de um lugar”.
Este lugar sagrado é o axis mundi, o eixo do mundo, que emana o Cosmos (o
lugar da ordem) e repete a cosmogonia, a criação de todo o mundo.
Fora
deste lugar há o caos, o espaço não ordenado. É o “leste do Éden”. É o reino
incível, sem lei e sem ordem, inóspito (ou seja, sem proteção ao homem) e lar
do indômito e da barbárie ou da lei da selva. As duas obras de Homero, a Ilíada
e a Odisséia, tratam exatamente do contato com um povo de uma diferente
civilização (os troianos, de uma região hoje provavelmente na Turquia, que
muitas vezes são mais heróicos e valorosos do que os gregos) e, na segunda
obra, do retorno de Odisseu pelo mundo inóspito, até os confins do Universo
conhecido dos gregos de então.
Um
dos exemplos mais conhecidos e didáticos desta divisão espacial é a Yggdrasil
nórdica, a árvore que é o eixo do Universo e da qual a
Terra, Miðgarðr (Midgård), é um dos nove mundos. Outro dos
mundos, Ásgarðr (Åsgard), é habitado pelos deuses. O palácio dos deuses
em Åsgard, Valhöll (Valhalla) é separado do restante do mundo por uma
muralha construída pelo cavalo Svaðilfari, o “viajante
azarado”. Svaðilfari “percorre a fronteira entre o mundo dos gigantes e o
dos deuses, entre o espaço controlado e o não controlado” (Johnni
Langer, Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos, p.
96, grifos nossos).
Esta cisão
radical, comungada pelo pensamento religioso universal, foi uma das
inspirações mitológicas de George R. R. Martin para construir o mundo de
sua série Game of Thrones: o mundo das violentas sete civilizações de Westeros
é separado do extremo norte por uma muralha análoga à dos deuses nórdicos, e
para além da muralha não há reino, não há leis, não há ordem, apenas
o caos: o “povo livre”, espécie nômade de bárbaros anarquistas, vive sem
proteção (sem ordem) enfrentando gigantes, provações naturais e os perigosos
invernos intermináveis que podem trazer os Outros (White Walkers), zumbis
impiedosos que só não atacam as civilizações de Westeros por ainda estarem
separados delas pela muralha.
É a
partir desta diferenciação temporal e espacial que devemos entender todas as
religiões, incluindo, claro, o islamismo. Na mentalidade maometana, antes do
advento do profeta, o mundo vivia em jahiliyyah, ou seja, ignorância.
Quando Maomé chega à península arábica marca-se uma nova temporalidade,
uma sacralidade do tempo para o muçulmano: é quando o mundo, em sua visão,
teria seu primeiro vestígio de verdade, sendo tudo o que vem anterior a
Maomé apenas presságios.
Por
isto os profetas abraâmicos são considerados “profetas” não mais em relação ao
mundo, à realidade ou à salvação, mas tão somente à chegada de Maomé, que deve
ser obedecido ao invés dos “ignorantes” anteriores.
Qualquer
pessoa que não sabia disto tudo, portanto, estava vivendo em jahiliyyah
até este momento.