Você reparou que a avalanche de denúncias de abusos sexuais cometidos por clérigos praticamente desapareceu da mídia nos últimos meses? Você não acha estranho que, quase de repente, não se toque mais no assunto?
UMA ONDA
CONCENTRADA
É inegável e tragicamente verdadeiro que houve,
sim, uma quantidade escandalosa de comprovados abusos sexuais praticados por
religiosos - um único abuso sexual já teria sido escandaloso e trágico, afinal.
Também é fato que, ao longo de décadas, esses crimes cometidos por sacerdotes,
religiosos e freiras ficaram escondidos sob uma camada complexa de medo e
vergonha por parte das vítimas, chantagem e ameaças por parte dos criminosos,
pressão e hipocrisia por parte de cúmplices poderosos.
Mesmo assim, é chamativo que, num espaço
relativamente curto de tempo, tenham explodido milhares de denúncias contra
padres a ponto de o assunto se transformar num escândalo global de dimensões
inéditas. Chegou-se a produzir uma onda de generalizações que reduziu a palavra
“sacerdote” a sinônimo de “pedófilo”, como se todos os padres cometessem “por
natureza” esse crime, e os seminários e conventos católicos a antros de
homossexualismo e orgias, como se tivessem ocorrido esses casos escabrosos
dentro de todos eles.
UMA ONDA
“SELETIVA”
Mais chamativo ainda, porém, é que não houve o
mesmo frenesi na hora de abordar a realidade do abuso sexual em outras
confissões cristãs, como as evangélicas ou a anglicana, só por citar dois
exemplos, nem nas religiões não-cristãs, muito embora várias delas acumulem um
histórico milenar de cumplicidade e incentivo à exploração sexual de crianças
(meninas e meninos) e de mulheres adultas, inclusive dentro do casamento
(monogâmico ou poligâmico), ou convivam com estupros em massa quase que com
naturalidade.
Igualmente chamativa é a mínima intensidade com que
se tratou e se trata da recorrência de abusos e assédios sexuais no âmbito
corporativo, no mundo do esporte e da moda, no universo do cinema e da
televisão e, principalmente, no dia-a-dia das famílias, que concentram a
esmagadora maioria dos casos de abuso sexual. Nas ocasiões em que foram
destapados alguns desses escândalos em contextos alheios à Igreja católica, a
repercussão midiática foi notavelmente menor e mais breve do que no caso dos
clérigos acusados de pedofilia. E isso que há casos envolvendo senadores,
deputados e vereadores, governadores e prefeitos, juízes e autoridades
policiais e do exército, além de figurões do mundo das finanças internacionais
e dos impérios da mídia, no Brasil e fora dele. O silêncio é quase tão grande
quanto o poder de silenciar que esses personagens exercem.