Não há dúvida, difícil é à maioria dos fiéis que desejem ler
a Sagrada Escritura, adquirir o conhecimento dos idiomas originais. Todavia
quem se compenetra da mentalidade ou do gênio semítico, torna-se capaz de
discernir os matizes e as finuras de expressão que os livros sagrados, em boa
tradução vernácula, lhe oferecem.
"O conhecimento
mesmo das línguas originais se torna inútil, se não é vivificado por uma
comunhão simpática e intuitiva com o gênio próprio da civilização à qual
pertencia o escritor bíblico. É preciso aprender a ler entre as linhas e
procurar penetrar aos poucos no ambiente de vida em que se movia o autor
sagrado, ambiente que transparece no texto bíblico." 4
Pergunta-se, pois, quais as principais características de
pensamento e linguagem dos autores bíblicos?
1. O gênio semita é intuitivo muito mais do que abstrativo.
O que quer dizer: o judeu, ao perceber um objeto; não se preocupava grandemente
com o discernimento de notas essenciais e acidentais do mesmo; apreendia-o e
descrevia-o simplesmente com suas características concretas, individuais. O
concreto interessava-o mais do que o abstrato.
Eis alguns casos em que o israelita, em vez de usar
conceitos e termos abstratos, universais, se comprazia em circunlocuções de
caráter mais concreto: Em lugar de dizer "tomar posse, dominar", o
judeu às vezes preferia a expressão "lançar a sandália sobre...", que
lembrava o gesto concreto ou o cerimonial da tomada de posse: 5
"Sobre Edom
lançarei a minha sandália, Sobre a terra dos filisteus cantarei o meu
triunfo" (Sl 59,10) cf. Sl 107,10; Gen 13,17; Dt 25,9; Jos 10,24; Rut
4,7.
A expressão "sentir-se feliz, alegre" podia ser
substituída pelos dizeres "ter a alma saciada de gordura", visto ser
a gordura sinal de suficiência ou plenitude, ainda hoje o alimento predileto
dos árabes da Palestina:
"Minha alma será
saciada como que de alimento gorduroso, E de meus lábios alegres prorromperá o
teu louvor." (Sl 62,6; cf. Sl 35,9.)
Quando alguém se julgava "em perigo de vida",
dizia concretamente que "trazia a sua alma nas mãos", já que
"ter nas mãos" é a atitude que imediatamente precede a entrega:
"Minha alma está
sempre em minhas mãos, mas não esqueço a tua lei." (Sl 118,109.) Cf.
Jz 12,3; 1 Sam 19,5; Jó 13,14; Est 14,4.
"Expor a própria vida" ou "estar decidido a
morrer" era equivalente a "tomar a própria carne entre os
dentes", ou seja, morder-se:
"Tomo a minha
carne entre os meus dentes, coloco a minha vida em minha mão." (Jó
13,14)
A ideia abstrata de posse ou de largueza, liberalidade era
expressa pelo termo concreto "mão", já que a mão é o órgão que
diretamente apreende ou distribui. Assim lê-se em Lev 5,7:
"Se sua mão não
atingir o valor de uma ovelha...". O que quer dizer: "Se suas posses não lhe permitirem
comprar uma ovelha”.
3 Rs 10,13: "O rei Salomão deu à rainha de Sabá tudo
que ela desejava, como a mão do rei
Salomão", isto é, "...de acordo com a opulência de um rei tal como
Salomão";
Gen 43,34: "A porção de Benjamim era cinco mãos mais
abundante que as porções de todos eles (seus irmãos)", frase em que
"cinco mãos" significam "cinco vezes".
A figura de linguagem "mão curta" ou
'encurtada" designava parcimônia ao dar:
"A mão do Senhor seria curta demais? Verás sem demora
se acontecerá ou não o que te disse!", falava Javé ao anunciar as
codornizes no deserto (Num 11,23);
"A mão do Senhor não é curta demais para salvar."
(Is 59,1.)
"Governar" tinha por sinônimo o termo mais
concreto "julgar", e, em vez de 'Governador", podia-se dizer
"Juiz", visto que, num povo primitivo, a função mais frequente de
quem governa é a de julgar os litígios entre os súditos. Haja vista o título do
livro dos "Juízes" (= governadores de Israel desde os tempos de Josué
até a monarquia).
"Poder, força" era conceito expresso pelo vocábulo
"chifre", pois é neste que parece residir a força de muitos animais:
"(Deus é) meu escudo é o chifre de minha salvação (= a
força que me salva)" (SI 17,3.)
"Abaterei todos os chifres dos malvados, e os chifres
dos justos serão exaltados." (S1 74,11.)
2. A tendência a fixar a atenção sobre os indivíduos
concretos levava o hebreu a realçar o que há de dinâmico em cada ser;
comprazia-se em considerar o comportamento e os efeitos de pessoas e coisas,
mais do que o seu Valor estático, essencial. Assim tudo, de certo modo, se
podia tomar vivo e agente, para o semita. 6
Os substantivos do vocabulário hebraico são os próprios
verbos ou derivam-se de verbos; o verbo (ordinariamente constituído por três
consoantes) é a palavra fundamental do léxico israelita. Isto bem mostra que o
aspecto principal sob o qual o judeu visava cada objeto era o aspecto dinâmico,
ativo. Em particular, note-se que o termo dabhar, que originariamente
significava "palavra", podia igualmente designar "coisa",
pois toda coisa era pelos judeus concebida primariamente como efeito, efeito,
sim, direto ou indireto, da palavra criadora de Deus. Consequentemente às
premissas até aqui expostas, tendia o semita a focalizar, acima de tudo, a
importância vital, a mensagem prática, que pudesse estar ligada às pessoas ou
coisas apreendidas. O orador e o escritor, ao dissertarem, baseavam-se muito na
sua experiência pessoal e visavam despertar impressões semelhantes, muito
vivas, nos seus ouvintes e leitores. Procuravam transmitir da maneira mais
penetrante possível um estado de alma. Isto faz que uma página de literatura
semita seja impregnada de movimento, variedade de pessoas e coisas que se
sucedem com realismo; emoções, afetos diversos a perpassam. Já que a linguagem
semita ficava particularmente ligada à experiência, diz-se que ela evocava
ainda mais do que exprimia.