Não há dúvida, difícil é à maioria dos fiéis que desejem ler
a Sagrada Escritura, adquirir o conhecimento dos idiomas originais. Todavia
quem se compenetra da mentalidade ou do gênio semítico, torna-se capaz de
discernir os matizes e as finuras de expressão que os livros sagrados, em boa
tradução vernácula, lhe oferecem.
"O conhecimento
mesmo das línguas originais se torna inútil, se não é vivificado por uma
comunhão simpática e intuitiva com o gênio próprio da civilização à qual
pertencia o escritor bíblico. É preciso aprender a ler entre as linhas e
procurar penetrar aos poucos no ambiente de vida em que se movia o autor
sagrado, ambiente que transparece no texto bíblico." 4
Pergunta-se, pois, quais as principais características de
pensamento e linguagem dos autores bíblicos?
1. O gênio semita é intuitivo muito mais do que abstrativo.
O que quer dizer: o judeu, ao perceber um objeto; não se preocupava grandemente
com o discernimento de notas essenciais e acidentais do mesmo; apreendia-o e
descrevia-o simplesmente com suas características concretas, individuais. O
concreto interessava-o mais do que o abstrato.
Eis alguns casos em que o israelita, em vez de usar
conceitos e termos abstratos, universais, se comprazia em circunlocuções de
caráter mais concreto: Em lugar de dizer "tomar posse, dominar", o
judeu às vezes preferia a expressão "lançar a sandália sobre...", que
lembrava o gesto concreto ou o cerimonial da tomada de posse: 5
"Sobre Edom
lançarei a minha sandália, Sobre a terra dos filisteus cantarei o meu
triunfo" (Sl 59,10) cf. Sl 107,10; Gen 13,17; Dt 25,9; Jos 10,24; Rut
4,7.
A expressão "sentir-se feliz, alegre" podia ser
substituída pelos dizeres "ter a alma saciada de gordura", visto ser
a gordura sinal de suficiência ou plenitude, ainda hoje o alimento predileto
dos árabes da Palestina:
"Minha alma será
saciada como que de alimento gorduroso, E de meus lábios alegres prorromperá o
teu louvor." (Sl 62,6; cf. Sl 35,9.)
Quando alguém se julgava "em perigo de vida",
dizia concretamente que "trazia a sua alma nas mãos", já que
"ter nas mãos" é a atitude que imediatamente precede a entrega:
"Minha alma está
sempre em minhas mãos, mas não esqueço a tua lei." (Sl 118,109.) Cf.
Jz 12,3; 1 Sam 19,5; Jó 13,14; Est 14,4.
"Expor a própria vida" ou "estar decidido a
morrer" era equivalente a "tomar a própria carne entre os
dentes", ou seja, morder-se:
"Tomo a minha
carne entre os meus dentes, coloco a minha vida em minha mão." (Jó
13,14)
A ideia abstrata de posse ou de largueza, liberalidade era
expressa pelo termo concreto "mão", já que a mão é o órgão que
diretamente apreende ou distribui. Assim lê-se em Lev 5,7:
"Se sua mão não
atingir o valor de uma ovelha...". O que quer dizer: "Se suas posses não lhe permitirem
comprar uma ovelha”.
3 Rs 10,13: "O rei Salomão deu à rainha de Sabá tudo
que ela desejava, como a mão do rei
Salomão", isto é, "...de acordo com a opulência de um rei tal como
Salomão";
Gen 43,34: "A porção de Benjamim era cinco mãos mais
abundante que as porções de todos eles (seus irmãos)", frase em que
"cinco mãos" significam "cinco vezes".
A figura de linguagem "mão curta" ou
'encurtada" designava parcimônia ao dar:
"A mão do Senhor seria curta demais? Verás sem demora
se acontecerá ou não o que te disse!", falava Javé ao anunciar as
codornizes no deserto (Num 11,23);
"A mão do Senhor não é curta demais para salvar."
(Is 59,1.)
"Governar" tinha por sinônimo o termo mais
concreto "julgar", e, em vez de 'Governador", podia-se dizer
"Juiz", visto que, num povo primitivo, a função mais frequente de
quem governa é a de julgar os litígios entre os súditos. Haja vista o título do
livro dos "Juízes" (= governadores de Israel desde os tempos de Josué
até a monarquia).
"Poder, força" era conceito expresso pelo vocábulo
"chifre", pois é neste que parece residir a força de muitos animais:
"(Deus é) meu escudo é o chifre de minha salvação (= a
força que me salva)" (SI 17,3.)
"Abaterei todos os chifres dos malvados, e os chifres
dos justos serão exaltados." (S1 74,11.)
2. A tendência a fixar a atenção sobre os indivíduos
concretos levava o hebreu a realçar o que há de dinâmico em cada ser;
comprazia-se em considerar o comportamento e os efeitos de pessoas e coisas,
mais do que o seu Valor estático, essencial. Assim tudo, de certo modo, se
podia tomar vivo e agente, para o semita. 6
Os substantivos do vocabulário hebraico são os próprios
verbos ou derivam-se de verbos; o verbo (ordinariamente constituído por três
consoantes) é a palavra fundamental do léxico israelita. Isto bem mostra que o
aspecto principal sob o qual o judeu visava cada objeto era o aspecto dinâmico,
ativo. Em particular, note-se que o termo dabhar, que originariamente
significava "palavra", podia igualmente designar "coisa",
pois toda coisa era pelos judeus concebida primariamente como efeito, efeito,
sim, direto ou indireto, da palavra criadora de Deus. Consequentemente às
premissas até aqui expostas, tendia o semita a focalizar, acima de tudo, a
importância vital, a mensagem prática, que pudesse estar ligada às pessoas ou
coisas apreendidas. O orador e o escritor, ao dissertarem, baseavam-se muito na
sua experiência pessoal e visavam despertar impressões semelhantes, muito
vivas, nos seus ouvintes e leitores. Procuravam transmitir da maneira mais
penetrante possível um estado de alma. Isto faz que uma página de literatura
semita seja impregnada de movimento, variedade de pessoas e coisas que se
sucedem com realismo; emoções, afetos diversos a perpassam. Já que a linguagem
semita ficava particularmente ligada à experiência, diz-se que ela evocava
ainda mais do que exprimia.
4. Consciente de que, para transmitir a experiência ou as
intuições, as palavras são por vezes pobres, o semita recorria frequentemente
aos gestos, às pausas, aos artifícios da entoação de voz. O falar dos antigos
judeus terá sido exuberante, teatral, como o de certos povos orientais de
nossos tempos. Dada a sua vivacidade, o israelita era muito dado às expressões
fortes, hiperbólicas ou contrastantes.
Hipérbole muito ousada é a do rei Benadad da Síria, que,
desejando chamar a atenção para o seu numeroso exército, exclamava:
"Tratem-me os deuses com todo o rigor se a poeira da
Sarnaria basta para encher a palma da mão de toda a gente que me segue!"
(3 Rs 20,10.)
Hiperbólicas também são as expressões "a terra inteira,
todos os povos", que certamente se referem a certas regiões ou nações
apenas, em Gên 41.54.57; Dt 2,25; 2 Crôn 20,29; At 2,5.
Visando distinguir entre "amar mais" e "amar
menos", o judeu empregava os termos "amar" simplesmente e
"odiar", a fim de que a oposição mais se evidenciasse. É o que se
verifica, por exemplo, na frase de Jesus: "Se alguém vem a Mim e não odeia
pai, mãe, esposa, filhos, irmãos e irmãs, até mesmo a própria vida, não pode
ser meu discípulo." (Lc 14,26s.)
O "odiar" desta frase é otimamente explicado pelo
texto paralelo de Mt 10,37, onde se lê "amar menos". No mesmo
sentido, em Mal 1,3, diz o Senhor: "Amei Jacó, e odiei Esaú." (Cf. Ram
9,13.) Em Jo 12,25 afirma Jesus:
"Quem ama a sua vida, perde-a; e quem odeia a sua vida
no mundo presente, guarda-a para a vida eterna."
Nesta sentença a oposição "amar-odiar" significa
"satisfazer desregradamente" e "coibir devidamente" as tendências
da alma, podendo a coibição ou renúncia levar até a morte do martírio.
Os judeus eram particularmente dispostos a recorrer aos
contrastes pelo fato de que a língua hebraica carece de forma própria para
indicar o grau comparativo dos adjetivos. O confronto podia ser expresso pela
justaposição de termos opostos, sendo a oposição subentendida como algo de
relativo ou gradativo apenas. Esta observação ajuda a entender o texto do
Antigo Testamento citado por Jesus:
"Desejo (a
prática de) misericórdia, não (a oferta de) sacrifício." (Mt 9,13; cf.
Os 6,6; 1 Sam 15,22.)
A afirmação quer dizer: "Mais do que os sacrifícios
rituais, agrada-me o exercício da caridade e da misericórdia.' Em Mt 22,14
declara ainda o Senhor: "Muitos são chamados, poucos escolhidos."
Axioma que no seu contexto semítico provavelmente significa: "Maior número
é o dos homens chamados (à fé); menor número, o dos escolhidos (para a
bem-aventurança eterna)”.
5. Após quanto foi dito acima, entende-se bem que os
israelitas usassem de frequentes comparações e imagens, visando também por esta
via impressionar mais profundamente os ouvintes. Já Que os hebreus tendiam a
considerar o aspecto dinâmico e vital de cada ser, sabiam aproveitar-se
largamente dos objetos materiais que os cercavam, para ilustrar verdades
abstratas ou sobrenaturais; daí, na Sagrada Escritura, o uso abundante de
símbolos. Estes constituem, sem dúvida, um artifício muito apto a traduzir o
sentido concreto e o valor que para a vida têm as proposições religiosas. 7
As parábolas não são senão símbolos mais desenvolvidos ou
explicados: constam de uma história fictícia, à qual o narrador liga
determinada mensagem doutrinária. Para se depreender esta lição, não se pode
esquecer que na parábola nem todos os elementos são portadores de significado
superior; alguns são envolvidos na narrativa unicamente para sustentar os
elementos-chaves (assim na parábola do filho pródigo, em Lc 15,11-32, não se
queira atribuir valor doutrinário ao anel nem ao calçado dados ao perdulário
que volta, nem ao vitelo abatido, vv. 22s; estes pormenores visam unicamente
tornar mais viva a lição da parábola, que inculca a misericórdia de Deus para
com o pecador).
O simbolismo tinha especial aplicação para exprimir atitudes
ou qualidades de alma; em vez de usar termos próprios, neste árduo setor os
judeus recorriam frequentemente a expressões derivadas do mundo irracional, às
quais não deixam por vezes de nos causar estranheza (contudo o recurso se
compreende bem à luz da mentalidade dos semitas: considerando primariamente a
natureza em função do Criador e do homem, facilmente ligavam o conceito de
determinada qualidade de Deus ou do homem com tal elemento material). Haja
vista um ou outro exemplo:
a) a ideia de fraqueza humana (tanto moral como física) era
expressa pelos termos 'carne, poeira e cinza: "Os egípcios são homens, não
Deus 1 Os seus cavalos são carne, não espirito." (Is 31,3; cf. Gên 18,27;
Jó 30,19);
b) a fortaleza, ao contrário, era associada à ideia de
montanha, rochedo. Por isto Javé é a montanha, é "meu rochedo", no
qual o homem se abriga encontrando amparo (cf. Si 17,3; 18,15; 613.8);
c) a beleza, o encanto (mesmo espiritual) eram significados
por símbolos muito materiais. Particularmente interessante, sob este ponto de
vista, é a figura do esposo no Cântico dos cânticos, cujo aspecto atraente é
assim descrito:
10. "Meu
bem-amado é fresco e rubicundo; Distingue-se entre dez mil.
11. Sua cabeça é ouro
puro, Seus cachos de cabelos, flexíveis como ramos de palmeira, são negros como
o corvo.
12. Seus olhos são
como pombas à margem dos riachos, As quais se banham em leite.
13. Suas faces são
como plantações de bálsamo, como canteiros de plantas aromáticas. Seus lábios
são como lírios dos quais corre a mirra mais pura.
14. Suas mãos são cilindros
de ouro ornados com pedras de Tarsis. Seu busto é obra-prima de marfim,
recoberta de safiros.
15. Suas pernas são
colunas de alabastro, pousadas sobre bases de ouro puro. Seu olhar é como o do
Líbano, elegante como o cedro.
16. Sua palavra é doçura.
Toda a sua personalidade é puro encanto. Tal é meu bem-amado, tal meu amigo, Ó
filhas de Jerusalém!"
(Cânt 5,10-16)
Neste quadro são postas em realce três qualidades do esposo:
fortaleza e virilidade, designadas pela comparação de seus membros com peças de
ouro, mármore, marfim (vv. 11.14.15) ou com os imponentes cedros do Líbano (v.
16); raça e beleza masculinas, significadas pela menção de cores, elementos
aromáticos ou doces (flores, árvores) nos vv. 10.11.13.15.16; pureza e
fidelidade, traduzidas pelas imagens da pomba, da água, do leite (v. 12). A
mente do autor não se deixava perturbar pela combinação de símbolos tão
heterogêneos; de cada um destes focalizava apenas o aspecto que se enquadrava
dentro do conjunto e podia evocar a ideia de encanto masculino. Para desfazer a
impressão de rigidez, talvez suscitada pelos símbolos de pedras e metais
preciosos, o hagiógrafo em outros lugares recorria a imagens de ordem diversa,
que completavam as anteriores:
"Corre meu
bem-amado, e toma-te semelhante à gazela ou ao pequenino da corça sobre as
montanhas de bálsamo!" (8,14; cf. 2,17.)
Por sua vez, a figura da esposa no Cântico dos Cânticos é
descrita com imagens paralelas às do esposo: a beleza feminina aparece sob os
sinais de flores, palmas, objetos perfumados ou doces (cf. 2,1s; 4,10s.14); por
seu encanto e pureza, a jovem é comparada à pomba (6,8s; 1,15; 4,1; 2,14); a
sua fecundidade é assemelhada à de animais domésticos e cereais (4,2; 6,5s;
7,3s); 8
d) a índole agradável, aceitável, de uma oferta feita a Deus
era simbolizada pelo imaginário perfume da oferenda. Para dizer que Javé a
aceitava, o semita afirmava que o Senhor sentia tal aroma com prazer. Foi o
que, conforme Gên 8,24, se deu quando Noé ofereceu o sacrifício após o dilúvio;
Davi, estando para oferecer, esperava que a mesma coisa se desse (cf. 1 Sam
26,19). Em Ap 5,8 (cf. 8,3s), as orações dos santos sobem a Deus como agradável
incenso.
Em suma, os semitas, nossos hagiógrafos, não se detinham em
analisar as linhas e o contorno de cada objeto: em vão se procuraria na Bíblia
a descrição de uma paisagem de sol nascente ou poente, de uma noite de luar ou
de estrelas múltiplas, a evocação de uma floresta com sua vegetação, suas
fontes, suas aves a cantar...
O que estes quadros têm de belo, o semita o exprimia
afirmando diretamente as impressões que tais cenas causam no observador, ou
seja, considerando a ação de tudo isso na sensibilidade e na mente do homem.
Confirma-se assim a observação já feita: não se preocupavam tanto com o valor estático
quanto com o aspecto dinâmico de cada ser. 9
6. Outra particularidade do estilo semita conexa com as
anteriores é a exposição das ideias em frases paralelas coordenadas. O
israelita não era muito propenso a subordinar entre si as proposições do Seu
discurso. Ao contrário, tendia a desenvolver o pensamento conforme um esquema
que se poderia assim reproduzir: numa proposição inicial, o orador afirmava
compendiosamente o que tinha em vista dizer (propunha como que um prelúdio
musical, onde já ressoava antecipadamente todo o grande tema que, a seguir,
seria desenvolvido); feito isto, em frases coordenadas à primeira, repetia a
mesma ideia acrescentando-lhe de cada vez uma circunstância nova, até completar
a enunciação do pensamento ou a enumeração dos pormenores.
Tem-se dito, e com razão, que a arte conforme a qual os
escritores judeus compunham as suas frases, não era a dos arquitetos, que
constroem gradativamente de baixo para cima, mas a dos músicos, que logo de
início propõem o seu tema ou leitmotiv e, no decurso da melodia, o fazem voltar
com variações sempre novas.
A figura de uma espiral que se vai estreitando na direção de
cima para baixo, ilustra igualmente bem o proceder estilístico dos semitas: a
linha, da espiral, percorrendo círculos, volta periodicamente aos lados direito
e esquerdo do eixo; nenhuma dessas voltas, porém, é simplesmente a repetição da
anterior; o observador que faça o trajeto da espiral, voltando aos mesmos
lados, apreende com clareza cada vez maior o ponto final. Assim também as
frases paralelas dos semitas não são meras repetições, mas apresentam-se cada
vez mais densas, dando a perceber ao leitor novos matizes da ideia dominante. O
judeu contemplava o seu objeto de um lado, contemplava-o do outro lado, para ir
aos poucos abrangendo toda a realidade; esta, principalmente quando era
realidade religiosa, lhe parecia grande demais para poder ser abraçada de uma
só vez. 10
A tendência dos hebreus a coordenar as ideias antes do que a
subordiná-las se traduz também num pormenor filológico: para o israelita, o
conceito "compreender" era expresso pelo vocábulo bin, cujo
significado original é "separar, dividir"; bina vem a ser
"compreensão, inteligência". Não quer isto dizer que, para o judeu, o
processo de compreender consistia principalmente em perceber os diversos
aspectos da verdade e formulá-los em justaposição?
Ao contrário, entre os gregos, que tanto cultivaram o
raciocínio e os silogismos (cf. Aristóteles, Porfírio e outros), a
"razão" era dita logos, vocábulo derivado de lego, recolher. Esta
denominação não insinuaria que os gregos atribuíam a razão, como tarefa
primária, o "colecionar" e 'pôr em ordem" as diversas facetas da
realidade?
O silogismo (de syn
e lego) não é, etimologicamente
falando, senão o ato de recolher. O paralelismo semita de que falávamos acima
pode ter caráter sintético ou antitético. Caráter sintético, ele o tem, quando
a frase posterior acrescenta algo de novo (mas acidental) à anterior:
circunstâncias de tempo, lugar, causa, etc. O caráter antitético se verifica
quando a frase paralela repete em termos negativos o que a precedente disse em
termos positivos; a verdade é então realçada pela justaposição dos contrastes;
a segunda proposição tem por finalidade agir mais vivamente sobre o espírito do
leitor. O semita, de resto, comprazia-se em despertar a impressão de
"choques" de ideias. Fala-se também do paralelismo sinônimo dos
hebreus, embora nem todos os estudiosos o reconheçam. Este se verificaria
quando as frases só diferem entre si pelo emprego de termos equivalentes.
Também neste caso a repetição não se torna supérflua; ao contrário, é bem
calculada de modo a impressionar o ouvinte.
A título de exemplos de paralelismo, eis algumas passagens
características:
a) no cap. VI do seu Evangelho, o Apóstolo S. João, após
narrar o milagre da multiplicação dos pães (1-15), refere a longa promessa da
S. Eucaristia que o Senhor fez a seguir (22-72). Notemos o lento desabrochar do
pensamento de Cristo neste sermão:
Os judeus aglomeravam-se em torno do Mestre em Cafarnaum por
causa do pão terrestre ou natural que ele acabara de multiplicar; diz-lhes
então o Salvador:
"Em verdade, em
verdade vos digo: vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque
comestes pão e estais saciados." (v. 26.)
É deste fato que Jesus parte no seu discurso. Começa por
insinuar que a multiplicação dos pães devia ser entendida como sinal de
realidades transcendentes. E quais seriam estas realidades?
Primeiramente em oposição ao pão da terra, que os judeus
procuravam, Jesus anuncia um pão do céu, objeto mais digno das aspirações dos
ouvintes.
Todavia, um pão do céu, superior ao da terra, os judeus já o
conheciam: era o maná, dado por intermédio de Moisés outrora no deserto (cf.
6,31s e Ex 16,13s; Si 77,24s; Sab 16,20). Por isto, repetindo e desenvolvendo a
ideia, Jesus, em ulterior instância, acrescenta tratar-se de novo pão do céu; à
diferença do maná de Moisés, que não preservara da morte os israelitas no
deserto, o maná dado por Cristo poderia ser dito simplesmente o pão da vida
(eterna):
"Em verdade, em
verdade vos digo: Moisés não vos deu o pão do céu, mas é meu Pai que vos dá o
verdadeiro pão do céu; pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá a
vida' ao mundo." (v. 32s.)
Não é tudo... Jesus mais uma vez aprofunda o seu pensamento:
o novo maná, dito não apenas "pão do céu" (como no Antigo
Testamento), mas já "pão da vida", é identificado com a carne e o
sangue do próprio Cristo:
"Eu sou o pão da
vida... Sou o pão vivo, que do céu desci.., e o pão que hei de dar, é a minha
carne, para a vida do mundo... Se não comerdes a carne do Filho do homem e
beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe
o meu sangue, tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia."
(v. 48.51.52.54s.)
Uma derradeira precisão ainda se impunha: tratar-se-ia da
carne e do sangue do Filho do homem, não, porém, tomados em sua realidade
natural e material apenas, mas enquanto vivificados pela Divindade (no caso,
dita "Espirito"), que a eles estaria unida:
"É o Espirito que
vivifica; a carne para nada serve." (v.64.)
Todo este discurso se deixa dispor em círculos concêntricos:
Jesus falou, passando dos conceitos mais vastos e dos elementos visíveis a
conceitos mais precisos, para finalmente atingir o objeto invisível, principal,
contido no Pão da Vida.
Este objeto, visado desde o início do discurso, foi sendo
considerado sob vários aspectos, cada vez mais próximos da realidade final, à
semelhança do que se dá com a águia que, depois de ter fitado a sua futura
prosa, voa sobre ela aproximando-se em círculos concêntricos, para finalmente
"dar o bote" com toda a precisão:
b) outro exemplo, embora menos claro do que o anterior,
encontra-se na epístola de S. Paulo aos Romanos 6,2-8. O Apóstolo ensina que
todo cristão, por efeito do batismo, se acha num estado de morte (ao velho
homem) e vida nova, configurada à de Cristo. Exprime-se no ritmo de
"vai-e-vem" contemplativo a que acenamos:
"Nós que morremos
ao pecado, como ainda viveríamos no pecado? Então não sabeis que nós todos, que
fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados (imersos) em sua morte? Por
conseguinte, fomos com Ele sepultados pelo batismo em sua morte, a fim de que,
como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, vivamos também nós uma
vida nova. Se, por morte semelhante à de Cristo, fomos enxertados em Cristo,
seremos enxertados também por ressurreição semelhante à dEle. Sabemos que nosso
velho homem foi crucificado com Cristo, a fim de que o corpo contaminado pelo
pecado fosse destruído e já não sejamos escravos do pecado... Ora, se morremos
com Cristo, cremos que viveremos também com Ele.”
Este trecho não apresenta propriamente proposições
concatenadas de modo a formar um raciocínio; antes, verifica-se nele a
coordenação de frases que, cada qual com seus matizes, afirmam sempre a mesma
verdade;
c) o paralelismo antitético dos semitas podia tomar a
seguinte modalidade: para exprimir a 'totalidade", o autor enunciava os
termos opostos ou extremos que circunscreviam o seu conceito ou entre os quais
girava o seu pensamento. 11 Assim:
a) a
ideia de "tudo, todas as coisas" podia ser circunscrita pela
expressão "o bem e o mar', já que tudo que existe de concreto é bom ou mau
(cf. Eclo 11,6)
"(O Senhor) encheu-os (os primeiros pais) de ciência e
inteligência; deu-lhes a conhecer o bem e o mal (ciência muito ampla)" 12
Este modo de falar ocorre também nos lábios de Jesus em Mc
3,4, onde se lê verbalmente:
"É permitido em
dia de sábado fazer o bem ou fazer o mal, salvar uma vida ou extingui-la?"
(Cf. Lc 6,9.)
Como conceber que Jesus tenha perguntado se é licito cometer
o mal ou matar em dia de sábado? A tradução, demasiado servil, é infiel ao
pensamento de Cristo, que propõe, sim, a seguinte questão: "Em sábado,
quais, dentre a totalidade das obras possíveis, as que é licito praticar?"
(haja vista o rigor dos fariseus em relação à observância do repouso do
sábado). Ou em termos ainda mais claros: "Em dia de sábado, não será lícito
fazer absolutamente nada? Não será permitido nem mesmo praticar o bem salvando
uma vida?";
b) "homens e
gado" era o binômio equivalente a "todos os seres vivos" (cf.
Ser 36, 29; 50,3);
c) "homens e
mulheres, crianças e anciãos" significava "todos os habitantes, toda
a população" (cf. J05 6,21; Ser 51,22);
d) "alma e
carne" designava "o homem inteiro" (cf. Is 10,18; Já 14,22);
e) "céu e
terra" supria o termo "o Universo", de que carecia o hebraico
(cf. Gên 1,1; Si 123,8);
f) "sair e
entrar", tendo ambos os verbos o mesmo sujeito, servia para exprimir toda
a atividade de um indivíduo, até mesmo as tarefas de administração régia:
"Disse-lhes
(Moisés): Tenho hoje cento e vinte anos, e não posso mais sair nem
entrar," (Dt 31,2.)
em 3 Rs 3,7 diz o rei Salomão ao Senhor: "Sou pequenino e jovem, não sei sair
nem entrar.";
em 2 Cron 1,10 diz o mesmo: "Dai-me sabedoria e
inteligência a fim de que eu possa sair diante deste povo e entrar.";
cf. 1 Sam 18, 13.16; 29,6; 2 Sam 3,25; 3 Rs 15,17; 4 Rs
11,8; 19,27; Is 31,28; Ez 43,11; Sl 120,8; J0 109; At 1,21; 9,28.
"sair e entrar", sendo diversos os sujeitos dos
dois verbos, empregava-se para designar "todos os indivíduos" (sair e
entrar, para o hebreu, parece ser atividade que caracteriza qualquer homem) 13
"Naquele tempo não haverá paz nem para quem sair nem
para quem entrar, mas haverá terror em toda parte para todos os habitantes da
terra." (2 Cron 15,5);
"Para quem sai e para quem entra (= para ninguém), não
há paz." (Zac 8,10); "E retirarei de lá aquele que vai e aquele que
vem (= todos)." (Ez 35,7) 14
g) "estar
assentado e estar em pé", "caminhar e repousar-se" são outras
fórmulas que designam toda a atividade de um indivíduo:
"Sabes quando
estou assentado e quando estou em pé; Tu me observas quando caminho e quando
repouso", diz o salmista ao Senhor querendo inculcar que Deus tudo sabe a
respeito do homem (Si 138,2s); 15
também a expressão "ligar e desligar" indicava
toda a operosidade de um homem, não somente a que se exercia em torno de
vínculos. Assim diz o Senhor a Pedro, usando de uma construção tipicamente
semítica:
"Dar-te-ei as
chaves do reino dos céus; tudo que ligares na terra, será ligado nos céus, e
tudo que desligares na terra, será desligado nos céus." (Mt 16,19.)
Nesta passagem, "as chaves" designam o poder; a
expressão bipartida que se segue exprime a totalidade desse poder, e significa:
'Tudo que na terra fizeres para
introduzir os homens no reino dos céus, será ratificado por Deus." Não
seria condizente com a filologia querer especificar os poderes expressos por
"ligar e desligar".
No Antigo Testamento, lê-se em sentido análogo uni oráculo
do Senhor referente ao Messias:
"Colocarei sobre
as suas espáduas a chave da Casa de Davi. E, quando ele abrir, ninguém fechará;
quando ele fechar, ninguém abrirá." (Is 22,22.)
O que quer dizer: "será detentor de supremo poder,
extensivo a todo e qualquer setor". 16
Eis as principais natas do "gênio" linguístico dos
semitas. Para se avaliar ainda melhor o que acima foi dito, é mister nos
detenhamos agora sobre um ou outro particular do estilo literário semítico. É o
que se fará no parágrafo e capítulo seguinte deste estudo.
Dom Estêvão Bettencourt, OSB
____________________________
4 Charll.er, ob. cit., 144
5 Observamos que as traduções
modernas da sagrada Escritura não raro usam os verbos próprios, em vez de ficar
presas às expressões mais concretas do texto original. Os semitismos não seriam
sempre inteligíveis ao leitor moderno.
6 "Ce que, par ãxemple,
nolLs considérons comme personnification littéraire correspond chez les Sémites
à une perception animée du monde extérietr, car l'esprit sémitique saisit
l'un4vers dans son moizvement; ii est plus sensible au dylZanflSme de la vie
qu'd la cotitemplation des idées et des /orines." (E. Beaucamp,
"Poésie et seus de la nature dans Ia Bible". em Bible et vie
chrétienne 11 [19551 25.)
7 veja-se o Apêndice a este
capítulo.
8 Ao interpretar desta forma
os símbolos do Cântico dos Cânticos, seguimos a autoridade de T. Boman na sua
famosa obra Das hebraeische Denken im Verglelch mit dem griechischen
(Goettingen, 1954), 62-69.
9 O "Les écrivain,s
sacrés te se rnontrent guêre enelins à analyser Les lignes et à dessiner Les
contours. Le dynamisme de la peizsée d'israel te discerne -dans la nature que
ce qui bouge. Aussi La communion entre l'homme et Les réalités extërteures
s'établit-eLle par relation de mouvement à m,ouvement, ei norz par une mise en
correspondance de nos dii férenis états d'àme avec lordonnance du monde
matérieL" Eeaucamp, art. cit., 30.
10 "O semita diz tudo em
cada frase, mas volta sucessivamente à carga, acrescentando de cada vez um
retoque ou nova precisão, enriquecendo incessantemente ora este aspecto, ora
outro aspecto do pensamento, apresentado compendiosamente na fórmula
introdutória. Este proceder lembra um pouco os métodos da Escola de pintura
impressionista de fins do séc. XIX. O escritor semita esboça primeiramente uma
rápida silhueta do conjunto; a seguir, em pinceladas sucessivas, acumula sobre este
esboço multidão de traços aparentemente autónomos e não raro contraditórios,
traços, porém, que o olho da alma sabe polir e combinar num plano
superior." Charlier, La lecture chrétienne de la Bible, 150s.
11 Aliás, não somente entre
os semitas, mas entre os povos antigos em geral, assim como nas línguas
modernas (se bem que em proporções mais restritas), ocorre o mesmo artificio de
estilo. Ainda hoje, por exemplo, se diz: "Farei por ti o possível e o impossível"
no sentido de "tudo farei por ti". Sejam mencionados alguns textos
extra bíblicos da antiguidade:
Um documento egípcio fala do grande deus de Tebas, Amom, o
qual criou "o que existe e o que não existe" (= todas as coisas).
Num relato egípcio do Médio Império, um camponês se dirigia
ao seu juiz nestes termos: "Grande intendente, meu mestre, grande dos
grandes, que governas as coisas que não existem e as que existem (= todas as
coisas) ." Cf. E. Suys, Etude sur te coizte dii FelZah plaidoyeur (Rome,
1933), 1. Plauto, o poeta satirico latino, dizia de um homem glutão:
"Manducavit quod fim et quod non pai. - Comeu o que havia e o que não
havia." Trinummus, 360. Veja-se ainda Eurípides, Bacchantes, 800;
Sófocles, Electro, 305; Ãnttgono 1109; Edipo Rei 300. Estas referências se
devem a O. Lambert, "Lier-Délier. L'ezrpression de la totalíté par
l'opposition de deur contraireC', em Vivre et Penser, 3éme série (1945),
91-103.
12 Verifique-se também: Gên
24,50; 31,24; 2 Sam 14,22; 14,17. Aponta-se na literatura grega um emprego
semelhante da mesma expressão: conforme Sófocles, Antígono 1245, a rainha se
retirou "antes de proferir algo de bom ou de mau". Entenda-se:
"desapareceu sem dizer palavra".
13 A semântica da expressão
"sair e entrar" é assaz curiosa e digna de nota: imagine-se uma
cidade bem defendida por muralhas, como as que os antigos costumavam edificar;
quanto mais fortificado era o reduto, tanto menor era a área que ocupava. Disto
se seguia que qualquer atividade de certa importância implicava geralmente um
"sair da cidade", ao qual se associava naturalmente um
"entrar" após terminados os afazeres; assim é que o "sair"
e o "entrar" (note-se bem a ordem dos termos!) compreendiam e
definiam a atividade dos cidadãos. Com significado idêntico, ocorre algumas
poucas vêzes na Sagrada Escritura o binómio "ir e vir".
14 Muito interessante é que a
versão grega dos LXX traduziu o objeto da frase acima por "homens e
gado".
15 Também se encontram
paralelos desta expressão fora de Israel: O vizir do faraó Huni entregou a seus
filhos, qual tesouro, um escrito em que consignara os resultados de suas longas
experiências. "Então prostraram-se sobre o ventre; leram o livro como
estava redigido, e isto lhes foi mais agradável do que tudo que se encontrava
na terra do Egito; levantaram-se e sentaram-se de acordo com essa
doutrina." (citação de A. Erman, Die Literatur der Aegypter, 100.) Assim
se interpretará a frase final: os filhos do vizir dispuseram toda a sua conduta
em conformidade com as instruções deixadas por seu pai.
16 A expressão também era
usual fora da literatura bíblica. Sófocles, por exemplo, coloca nos lábios de
Ismena a seguinte exclamação: "Ó infeliz, se as coisas chegaram a este
ponto, eu, quer ligue, quer desligue, que poderia ainda conseguir?"
(Antigoizo, 40). Entenda-se: eu, por nenhum expediente, poderia mudar a
situação.
___________________________
Para Entender o Antigo
Testamento
Livraria Agir Editora
Nenhum comentário:
Postar um comentário