Deu-se ampla divulgação ao Responsum que o Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, o Card. Victor Mánuel Fernandez, com aprovação do Papa Francisco, deu aos questionamentos de D. José Negri, bispo diocesano de Santo Amaro, sobre a participação nos sacramentos do batismo e do matrimônio por parte de pessoas trans e homoafetivas. Abaixo, publicamos uma entrevista com o Padre Dr. José Eduardo de Oliveira e Silva, da Diocese de Osasco, doutor em Teologia Moral pela Universidade da Santa Cruz (Roma).
CN – Padre, o que mudou na doutrina da Igreja em relação às pessoas transexuais e homossexuais?
Padre José Eduardo – Substancialmente, nada. O próprio Responsum do Dicastério para a Doutrina da Fé no-lo reafirma, logo na frase inicial do Documento, que, para mim, é a mais importante: “As seguintes respostas repropõem, em substância, os conteúdos fundamentais de quanto, no passado, foi afirmado por este Dicastério sobre tal matéria”.
CN – Então, podemos dizer que nada absolutamente mudou no entendimento da Igreja?
Padre José Eduardo – Precisamos entender que, para a Doutrina Católica, há uma imensa diferença entre a “condição” homo e transexual e os “atos” sexuais dessas pessoas. E, mesmo em relação aos atos, como ensina o Santo Padre, o Papa Francisco, “um juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida” (Amoris Lætitia, n. 302), pois a imputabilidade requer plena advertência e perfeito consentimento, como ensina o Catecismo (cf. n. 1859).
CN – Como isso deve ser entendido, por exemplo, no caso de pessoas trans?
Padre José Eduardo – Uma pessoa que tem disforia de gênero ou alguma inadequação entre o seu corpo e a sua própria autocepção não pode ser culpabilizada por isso, mesmo que tenha se submetido a uma intervenção de redesignação. Tais pessoas podem, perfeitamente, converter-se e entregar a sua vida a Deus, que é o escopo principal do sacramento do batismo.
CN – A Nota do Dicastério para a Doutrina da Fé menciona a hipótese de a pessoa receber o batismo sem estar arrependida dos seus pecados. Isso não é uma inovação em relação ao c. 865, do Código de Direito Canônico, que afirma a necessidade de que o catecúmeno seja exortado a se arrepender de seus pecados?
Padre José Eduardo – Em meu entender, não, pois, se lermos atentamente o Responsum, veremos que ele se refere a uma situação muito mais circunscrita e que tem a ver com a avaliação pastoral a ser feita pelo Pároco: “quando existem dúvidas sobre a situação moral objetiva em que se encontra uma pessoa, ou sobre as suas disposições subjetivas para com a graça divina”. Em outras palavras, isso se refere ao caso de alguém que se demonstra disposto a passar por um caminho de conversão, mas cuja “certeza moral” possa ser dificultosa ao Pároco diante dos indícios apresentados. O Dicastério apenas apresenta a desnecessidade de uma certeza absoluta, circunscrevendo-a nos limites tradicionais do que se entende por “certeza moral”.
CN – Tudo isso, então, refere-se apenas aos aspectos pastorais do problema, não propriamente doutrinais e canônicos…
Padre José Eduardo – Para a Igreja, a pastoral nunca está desvinculada da doutrina e do direito. Porém, a perspectiva do Santo Padre, o Papa Francisco, de uma Igreja de “portas abertas”, que “cria pontes e não muros”, “em saída”, “samaritana”, como ele mesmo a descreve no Documento mais importante do seu pontificado, a Exortação Evangelii Gaudium, nos leva a fazer tudo o que for possível para aproximar uma pessoa de Deus, jamais limitando por nossa iniciativa as amplas portas da Misericórdia.
CN – Mas, no caso de pessoas que adotaram um “nome social”, como se administraria o sacramento?
Padre José Eduardo – O próprio Rito de Iniciação Cristã de Adultos prevê uma “mudança de nome”, que seja um marco para a mudança de vida. Neste caso, o pastor local precisa dedicar-se muito mais à acolhida, ao discernimento, à reflexão juntamente com o catecúmeno, ajudando-o a encontrar não tanto a sua identidade para si, mas a sua identidade para Deus, aquele “nome novo” do qual nos fala o livro do Apocalipse (cf. 2,17). O batismo nunca pode ser entendido como um momento de conquista e autoafirmação, mas como uma humilde recepção da graça, com o pedido a Deus de uma transformação real, que, no itinerário desse percurso, pode estar mais ou menos adiantada.
CN – E com relação aos transexuais serem admitidos como padrinhos de batismo?
Padre José Eduardo – Note-se bem que o Card. Fernández menciona a necessidade de que não haja nenhum “perigo de escândalo”. Nós precisamos entender que, para além do direito, existem circunstâncias familiares complexas, que requerem certa flexibilidade pastoral de nossa parte. Aquilo que a Igreja requer para o batismo de uma criança é que se garanta que ela receberá a educação católica por parte de alguém; no mais, é possível que haja alguma situação em que seja viável, tomadas as devidas medidas de cautela, admitir alguém naquelas condições como padrinho. Observe-se bem que a mesma Nota afirma que este “não é um direito”, pois é a Igreja que habilita alguém para exercer essa função.
Ademais, a celebração do batismo nunca deve ser usada como instrumentalização ideológica, para impulsionar a agenda de nenhum movimento de revolução sexual. Garantidas essas cautelas e sempre com a supervisão do bispo diocesano, é possível que haja situações em que isso seja, de algum modo, viável.
CN – E quanto a ser padrinho de matrimônio?
Padre José Eduardo – A Igreja não fala em “padrinhos” de matrimônio, pois, nesse caso, não se exerce nenhuma função educativa em relação ao casal, mas apenas em “testemunhas”, pois aqueles que estão destacados na assembleia para exercer essa função exercem-na como representantes da mesma assembleia, toda ela testemunha do ato, mas que se faz representar por alguns, escolhidos pelos nubentes, para atestarem seu testemunho por escrito. De fato, não há grandes inconvenientes em relação a isso.
CN – A Nota afirma que dois homoafetivos podem apresentar o seu filho como progenitores do mesmo para o batismo. Como assim?
Padre José Eduardo – Pois é, diante de uma vida concebida, a Igreja deve assegurar-se apenas da condição fundamental, sem a qual não seria lícito batizar, e que é reafirmada pela Nota: “para que a criança seja batizada deve existir a fundada esperança de que será educada na religião católica”. Existem muitos casos em que está por detrás da cerimônia do batismo uma avó católica e sofredora pela condição do seu filho, um avô angustiado e que zela pela salvação do seu neto. Como diz o Papa, “é mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano” (Amoris Lætitia, n. 304).
CN – Mais adiante, a Nota fala de homoafetivos que convivem maritalmente, mas não parece muito explícita. Poderia nos explicar?
Padre José Eduardo – Como o Responsum diz expressamente, a Igreja coloca como ponto principal “salvaguardar o sacramento do Batismo e sobretudo a sua recepção”, sem descuidar em que o padrinho “leve uma vida de acordo com a fé e o encargo que vai assumir”. Por isso, a mesma Nota fala sobre a possibilidade de ser “testemunha do ato batismal”, sem que seja propriamente padrinho.
CN – O mesmo vale para as testemunhas do matrimônio?
Padre José Eduardo – Não. O que a Igreja diz é que não há uma proibição a que pessoas homoafetivas testemunhem o matrimônio. Mas tudo isso deve ser oportunamente avaliado pelo Pároco local, em sintonia com o seu próprio bispo.
CN – Portanto, pelo que o sr. diz, o Responsum não altera nada na doutrina da Igreja.
Padre José Eduardo – Não de acordo comigo, mas de acordo com o próprio Responsum. Basta ler o primeiro parágrafo. E digo mais: essa interpretação não é apenas possível, como é obrigatória, uma vez que nos cabe sempre interpretar ortodoxamente tudo o que diz e ensina a Igreja, em continuidade com a Tradição. Apresentam-se hoje, à nossa cura pastoral, situações novas. A Igreja precisa não apenas aplicar os princípios, mas também ir atrás da ovelha perdida, mostrando a sua benevolência materna em aproximar de Cristo cada pessoa, sabendo que a conversão é um caminho diário, um processo contínuo, em que todos nós estamos.
CN – O sr. acha que foi prudente a publicação desse Responsum, visto que há tantas pessoas que não o compreendem e as manipulações a que se pode prestar?
Padre José Eduardo – O que eu acho não tem importância nenhuma. Cabe-nos ter a humildade e a obediência de acolher de bom coração o que nos ensina a Igreja e que, no caso, não destoa minimamente do seu Magistério multissecular, ainda que adaptado às necessidades atuais. Atitudes de rebeldia e criticismos exagerados não são admissíveis na nossa relação com a Igreja docente.
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Fonte: Canção Nova
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