Discurso
Papa
Francisco fala aos bispos no Encontro Mundial das Famílias
Filadélfia,
Estados Unidos
Queridos Irmãos Bispos!
Sinto-me feliz por ter a oportunidade de partilhar
estes momentos de reflexão pastoral convosco, na jubilosa ocasião do Encontro
Mundial das Famílias.
De facto, para a Igreja, a família não é
primariamente um motivo de preocupação, mas a feliz confirmação da bênção de
Deus à obra-prima da criação. Cada dia, em todos os cantos do planeta, a Igreja
tem motivos para se alegrar com o Senhor pelo dom daquele povo numeroso de
famílias que, mesmo nas mais duras provas, honram as promessas e guardam a fé.
Assim eu diria que o primeiro impulso pastoral, que
nos pede esta desafiadora transição de época, é precisamente um passo decidido
na linha de tal reconhecimento. A estima e a gratidão devem prevalecer sobre o
lamento, apesar de todos os obstáculos que enfrentamos. A família é o lugar
fundamental da aliança da Igreja com a criação de Deus. Sem a família, a Igreja
também não existiria: não poderia ser aquilo que deve ser, isto é, sinal e
instrumento da unidade do gênero humano (cf. Lumen gentium, 1).
Naturalmente a compreensão que dela possuímos,
plasmada com base na integração da forma eclesial da fé e da experiência
conjugal da graça, abençoada pelo sacramento, não deve fazer-nos esquecer a
profunda transformação do contexto atual, que incide sobre a cultura social – e
agora também legal – dos laços familiares e que nos afeta a todos, crentes e
não-crentes. O cristão não está «imune» das mudanças do seu tempo; e este mundo
concreto, com as suas múltiplas problemáticas e possibilidades, é o lugar onde
temos de viver, acreditar e anunciar.
Em tempos passados, vivíamos num contexto social em
que as afinidades entre a instituição civil e o sacramento cristão eram
substanciais e compartilhadas: os dois estavam interligados e apoiavam-se
mutuamente. Agora já não é assim.
Para descrever a situação atual, escolheria duas
imagens típicas da nossa sociedade: duma parte as conhecidas lojas, pequenos
negócios das nossas terras; da outra os grandes supermercados ou centros
comerciais.
Algum tempo atrás, podia-se encontrar numa mesma
loja todas as coisas necessárias para a vida pessoal e familiar – é certo que
expostas pobremente, com poucos produtos e, consequentemente, poucas
possibilidades de escolha.
Havia uma ligação pessoal entre o vendedor e os
clientes da vizinhança. Vendia-se a crédito, isto é, havia confiança,
conhecimento, proximidade. Um fiava-se do outro. Tinha a coragem de fiar-se. Em
muitos lugares, tal negócio era conhecido como «a venda local».
Entretanto, nas últimas décadas, desenvolveram-se e
expandiram-se negócios de outro tipo: os centros comerciais, espaços imensos
com grande variedade de mercadorias. O mundo parece que se tornou um grande
supermercado, onde a cultura adquiriu uma dinâmica competitiva. Já não se vende
a crédito, não se pode confiar nos outros. Não há ligação pessoal, relação de
vizinhança. A cultura atual parece incentivar as pessoas para entrarem na
dinâmica de não se prender a nada nem a ninguém. Não confiar, nem fiar-se. É
que hoje a coisa mais importante parece ser esta: correr atrás da última
tendência ou atividade.
E isto também a nível religioso. O consumo é que
determina o que é importante hoje. Consumir relações, consumir amizades,
consumir religiões, consumir, consumir… Não importa o custo nem as
consequências. Um consumo que não gera ligações, um consumo que pouco tem a ver
com as relações humanas. As ligações são meramente um «meio» para satisfazer as
«minhas necessidades».
O próximo, com o seu rosto, com a sua história, com
os seus afetos, deixou de ser importante.Este comportamento gera uma cultura
que descarta tudo aquilo que já «não serve» ou «não satisfaz» os gostos do
consumidor. Fizemos da nossa sociedade uma imensa vitrine multicultural, atenta
apenas aos gostos de alguns «consumidores», enquanto muitos, muitíssimos outros
«comem as migalhas que caem da mesa de seus donos» (Mt 15, 27).
Isto provoca uma grande ferida. Atrevo-me a dizer
que uma das principais pobrezas ou raízes de muitas situações contemporâneas é
a solidão radical a que se vêem forçadas muitas pessoas. E assim, indo atrás do
que «me agrada», olhando ao aumento do número de «seguidores» numa rede social
qualquer, as pessoas seguem a proposta oferecida por esta sociedade
contemporânea. Uma solidão temerosa de qualquer compromisso, numa busca
frenética de se sentir conhecido.
Devemos condenar os nossos jovens por terem
crescido nesta sociedade? Devemos excomungá-los, porque vivem neste mundo? Será
preciso ouvirem da boca dos seus pastores frases como estas: «dantes era
melhor», «o mundo está um desastre e, se continuar assim, não sabemos como
iremos acabar»? Não, não creio que seja esta a estrada. Nós pastores, seguindo
os passos do Pastor, somos convidados a procurar, acompanhar, erguer, curar as
feridas do nosso tempo. Olhar a realidade com os olhos de quem sabe que é
chamado a mover-se, é chamado à conversão pastoral. O mundo atual pede-nos com
insistência esta conversão. «É vital que hoje a Igreja saia para anunciar o
Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem
repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, não se pode
excluir ninguém» (Evangelii gaudium, 23).
Enganar-nos-íamos se interpretássemos a desafeição,
que a cultura do mundo atual tem pelo matrimônio e a família, só em termos de
puro e simples egoísmo. Será que os jovens deste tempo se tornaram todos
irremediavelmente medrosos, frágeis, inconsistentes? Não nos deixemos cair na
cilada! Muitos jovens, no quadro desta cultura dissuasiva, interiorizaram uma
espécie de medo inconsciente, que os paralisa relativamente aos impulsos mais
belos e mais altos, e também mais necessários. Há muitos que adiam o matrimônio
à espera das condições ideais de bem-estar. Entretanto a vida é consumida, sem
sabor. É que a sabedoria dos verdadeiros sabores matura com o tempo, como fruto
de um generoso investimento da paixão, da inteligência, do entusiasmo.
Estamos vivendo uma cultura que impulsiona e
convence os jovens a não fundar uma família, pela falta de meios e por ter
tantos meios que está cômodo assim. Essa é a tentação, não fundar uma família.
Como pastores, nós bispos, somos chamados a reunir
as forças e a relançar o entusiasmo pelo nascimento de famílias que
correspondam mais plenamente à bênção de Deus, segundo a sua vocação. Devemos
investir as nossas energias não tanto para explicar uma vez e outra os defeitos
da atual condição hodierna e os valores do cristianismo, como sobretudo
convidar com audácia os jovens a serem ousados na opção do matrimônio e da
família. Também aqui é precisa uma santa ousadia! Quantas mulheres se
lamentavam: meu filho tem 30 anos e não se casa!. Temos que entusiasmar
os jovens para que se casem. Temos que acompanhar e fazer amadurecer o
compromisso do matrimônio. Um cristianismo, que pouco «faz» na realidade e
«se explica» infinitamente na formação, vive numa desproporção perigosa; diria,
num verdadeiro e próprio círculo vicioso. O pastor deve mostrar que o
«Evangelho da família» é verdadeiramente a «boa notícia» num mundo em que a
atenção para consigo mesmo parece reinar soberana. Não se trata de fantasia
romântica: a tenacidade em formar uma família e levá-la por diante transforma o
mundo e a história.
O pastor anuncia serena e apaixonadamente a Palavra
de Deus, encoraja os crentes a apostarem alto. Tornará os seus irmãos e irmãs
capazes de acolher e praticar a promessa de Deus, que alarga a própria
experiência da maternidade e da paternidade para o horizonte duma nova
«familiaridade» com Deus (cf. Mc 3, 31-35). O pastor vela pelo sonho, a vida, o
crescimento das suas ovelhas. Este «velar» não nasce dos discursos feitos, mas
do cuidado pastoral. Só é capaz de velar quem sabe estar «no meio», quem não
tem medo das perguntas, do contacto, do acompanhamento. O pastor vela, antes de
tudo, com a oração, sustentando a fé do seu povo, transmitindo confiança no
Senhor, na sua presença. O pastor permanece sempre vigilante, ajudando a
levantar o olhar quando aparecem o desânimo, a frustração ou as quedas. Seria
bom perguntar-nos se, no nosso ministério pastoral, sabemos «perder» tempo com
as famílias.
Sabemos estar com elas, partilhar as suas
dificuldades e as suas alegrias? Naturalmente, viver o espírito desta jubilosa
familiaridade com Deus e propagar a sua emocionante fecundidade evangélica é,
em primeiro lugar, o traço fundamental do estilo de vida do bispo. Assim nós mesmos,
aceitando humildemente a aprendizagem cristã das virtudes familiares do povo de
Deus, assemelhar-nos-emos cada vez mais a pais e mães (como Paulo; veja-se 1 Ts
2, 7.11), evitando transformar-nos em pessoas que aprenderam simplesmente a
viver sem família. De fato, o nosso ideal não é viver sem afetos.
A nós pastores nos tocam duas coisas: a oração e a
pregação. Qual é o primeiro trabalho do bispo? Orar, rezar. O segundo trabalho
que vai junto com esse: pregar. Ajuda-nos esta definição. O bispo tem a missão
de pastorear com a oração e o anúncio.
O bom pastor renuncia a afetos familiares próprios,
para destinar todas as suas forças – e a graça da sua vocação especial – à
bênção evangélica dos afetos do homem e da mulher que dão vida ao desígnio da
criação de Deus, a começar pelos afetos perdidos, abandonados, feridos,
arrasados, humilhados e privados da sua dignidade. Esta entrega total ao amor
de Deus não é, por certo, uma vocação alheia à ternura e ao bem-querer!
Bastar-nos-á olhar para Jesus, para entendermos isso (cf. Mt19,12). A missão do
bom pastor segundo o estilo de Deus – só Deus o pode autorizar, não a sua
presunção! – imita, em tudo e para tudo, o estilo afetivo do Filho para com o
Pai, que se reflete na ternura da sua entrega: em favor, e por amor, dos homens
e mulheres da família humana.
Na perspectiva da fé, este é um tema precioso. O
nosso ministério tem necessidade de desenvolver a aliança da Igreja e da
família. Caso contrário, definha; e, por nossa culpa, a família humana
distanciar-se-á irremediavelmente da Feliz Notícia dada por Deus.
Se formos capazes deste rigor dos afetos de Deus,
usando infinita paciência, e sem ressentimento, com os sulcos nem sempre
lineares onde devemos semeá-los, até uma mulher samaritana com cinco
«não-maridos» se descobrirá capaz de dar testemunho. E, para um jovem rico que
tristemente sente que deve pensar ainda com calma, um maduro publicano descerá
precipitadamente da árvore e far-se-á paladino dos pobres, nos quais nunca
pensara até então.
Deus nos conceda o dom desta nova proximidade entre
a família e a Igreja. A necessidade da família, Igreja e pastores. A família é
o nosso aliado, a nossa janela aberta para o mundo, a evidência duma bênção
irrevogável de Deus destinada a todos os filhos desta história difícil e
maravilhosa da criação que Deus nos pediu para servir!
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Canção Nova