- “Haverá algum critério seguro para se distinguir na Bíblia o que é real e o que é poesia? E o que é dogma de fé e o que não é?” (Aníbal - Rio de Janeiro-RJ).
1. Em primeiro lugar, removamos dois conceitos errôneos neste setor.
Os critérios que nos levam a interpretar certas passagens da Bíblia em sentido literal e outras em sentido alegórico, não são:
a) O caráter maravilhoso ou milagroso como tal dos trechos bíblicos. As intervenções do sobrenatural na natureza não assustam o cristão; este reconhece que são sinais muito lógicos da Onipotência Divina, que ele professa. Note-se, porém, que nem por isto o cristão há de admitir milagres a esmo na História Sagrada. Por serem expressões da Sabedoria Divina, o Senhor realiza sempre os seus portentos — derrogações às leis que o próprio Criador incutiu à natureza — em vista de um fim proporcionalmente grande, e não para ostentar sua Onipotência. Tendo Deus comunicado aos elementos sua maneira própria de agir, o Senhor costuma respeitar o curso ordinário das coisas e utilizá-lo ou encaminhá-lo para obter os efeitos intencionados pela Providência (serve-se habitualmente das chamadas «causas segundas»). Por isto, ensina a exegese que, embora o milagre seja uma realidade na História, a realização de um milagre deve ser provada ou deduzida das expressões mesmas do texto sagrado; não pode ser simplesmente pressuposta; o fato de ser Deus todo-poderoso não implica que tenha realmente manifestado sua Onipotência todas as vezes que a piedade ou a fantasia do leitor da Bíblia o julgue,
b) Também não são as descobertas da Ciência moderna, como tais, que levam o exegeta a dar sentido figurado a muitas expressões da Bíblia. Em outras palavras: não é para estar de acordo com os últimos resultados das pesquisas da astronomia, da geologia, da antropologia etc. (norteando-se diretamente pelas teorias das Ciências Naturais) que o cristão «arranja» suas conclusões exegéticas. Esta atitude, de todo errônea, tem o nome de «Concordismo» (isto é, procura de concórdia, às vezes alheia ao texto bíblico, entre a Ciência e a Escritura).
E por que é errônea? Haverá então discórdia ou apenas semiconcórdia?
É errônea simplesmente porque pressupõe que a Bíblia tenha a mesma finalidade que a Ciência, isto é, que vise ensinar aos homens qual a natureza intrínseca dos fenômenos biológicos, astronômicos, geológicos. Se as Escrituras tivessem em mira ensinar isto, então é claro que haveria justificativa para procurarmos ler as teorias da Ciência Moderna, clara ou veladamente formuladas, na Bíblia. — Acontece, porém, que a Sagrada Escritura visa apenas expor aos leitores o sentido religioso que cabe às criaturas e aos seus fenômenos no plano de Deus; não quer senão dizer de onde vêm os seres, para onde vão, qual o seu valor e a sua função aos olhos de Deus e do cristão, sem se preocupar com a estrutura físico-química das criaturas.
Em consequência, a Bíblia, tendo que aludir aos diversos elementos deste mundo, menciona-os na linguagem simples de seus primeiros leitores, que eram judeus rudes (esta linguagem é suficiente à finalidade da Sagrada Escritura), e começa seu ensinamento propriamente dito onde o cientista termina suas afirmações. Este analisa o que lhe cai sob os olhos e vai retrocedendo no curso dos fenômenos até chegar aos mínimos componentes da matéria; depois disto, nada mais sabe dizer. Pois bem, é justamente neste ponto que as Escrituras começam a ensinar; expõem a metafísica ou o sentido transcendente da matéria, do homem e das suas atividades neste mundo. Não há, pois, coincidência entre o ponto de vista das Ciências Naturais e o da Bíblia. De onde se vê quão absurdo seria interpretar tal ou tal passagem escriturística em sentido alegórico a fim de a acomodar às últimas teorias científicas.