Esperava que alguém importante levantasse a
voz em defesa de Dom Walmor de Oliveira Azevedo, presidente da CNBB, e de Dom
Ricardo Hoepers, presidente da Comissão Vida e Família da CNBB, diante dos
ataques injustos liderados por ninguém menos que Genésio Boff (ex-frei
Leonardo), o qual, segundo o site Brasil 247, encabeçou uma afrontosa carta em
que protesta, em escândalo farisaico, contra o justo posicionamento destes dois
bispos contra o estupro de uma menina de dez anos, seguido de um aborto
absurdo.
Diante do silêncio ensurdecedor, faço algumas
considerações.
1. Pressupostos doutrinais imprescindíveis
Embora o autor do abaixo-assinado escreva que
os seus subscritores se apresentam “como parte plena da Igreja Católica, em
comunhão com tantas pessoas que animam essa Igreja”, é preciso dizer que todo
católico deve crer em tudo aquilo que ensina a Santa Igreja, em absoluta
obediência às Sagradas Escrituras, à Tradição e ao Magistério.
Ora, é o Magistério dos Papas que nos
assevera, sem nenhuma contradição, que o aborto é, em si, um ato intrínseca e
gravemente desordenado, e que deve ser combatido com força por todos os membros
da Igreja.
São João Paulo II reafirmou esta doutrina,
vedando-a com a sua suprema autoridade pontifícia, nos seguintes termos:
“Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores,
em comunhão com os Bispos — que de várias e repetidas formas condenaram o
aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo
mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina — declaro que o aborto
direto, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem
moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente” (JOÃO PAULO
II, S., Encíclica Evangelium vitæ [25.03.1995], n. 62).
Vale notar que o pontífice polonês quis
empenhar o seu magistério papal de maneira solene neste compromisso, de modo a
não deixar margens para interpretações alternativas, o que coloca tal
ensinamento, de maneira especialmente sublinhada, na esteira do magistério
infalível dos romanos pontífices.
Recentemente, numa entrevista a Jordi Evole, o
Papa Francisco foi questionado sobre a licitude do aborto no caso de uma menina
estuprada (“chica violada”), e a sua resposta foi enfática: “eu a entenderia em
seu desespero, mas também sei que não é lícito violar uma vida humana para
resolver um problema”. O jornalista perguntou: “mas mesmo em circunstâncias tão
extremas?”, ao que o papa respondeu: “é lícito eliminar uma vida humana para
resolver um problema? É lícito pagar para que alguém a elimine?” O jornalista
fica sem resposta… E o papa conclui: “do ponto de vista humano, eu pergunto: é
lícito eliminar uma vida humana para resolver um problema? É justo pagar um
sicário para resolver o problema?”.
De tal modo que não adianta querer usar o
magistério do Papa Francisco de modo ideológico, tentando justificar de algum
modo a conivência diante do aborto, ainda mais de uma criança em idade
gestacional tão avançada e viável. Isto é tão somente uma desonestidade
intelectual, além de uma profunda demonstração de anti-eclesialidade.
2. Aborto direto ou indireto
Numa certa altura, o texto afirma que: “a
moral tradicional sempre ensinou, e supomos que o bispo Hoepers deveria saber
disso, que se a vida da menina corre risco, a intervenção para salvar sua vida
que implica indiretamente a morte do feto, não deve ser considerada aborto.
Este não é intencionado, mas é entendido como um efeito não voluntário e mal
menor face ao bem maior que é o de salvar a vida da mãe sob risco”.
Esta afirmação é absurda, ainda mais aplicada
ao caso em concreto. Quem escreveu este texto é um completo desconhecedor da
teologia moral (ou um malicioso que está querendo confundir a todos), ao menos
em termos minimamente sérios.
Como lemos na afirmação de S. João Paulo II
acima reportada, o aborto direto, querido como fim ou como meio, é sempre
gravemente ilícito. O papa não mencionou aí o que se chama de aborto indireto.
Para entendê-lo, precisamos entender antes aquilo que os moralistas chamam de
ação de duplo efeito.
Explicando-o em termos simples, diríamos que,
excluída uma ação diretamente abortiva (sempre moralmente ilícita em nível
máximo), existem ações que em si mesmas não são abortivas (diretamente), mas
que podem ser indiretamente abortivas (como, por exemplo, uma ação terapêutica
que possa comportar como efeito colateral, conhecido mas não querido, um
aborto). Ora, nestes casos, aplicam-se os princípios morais para o voluntário
indireto (daí o nome aborto indireto), que são basicamente três: a ação deve
ser intrinsecamente boa, não se deve obter o fim positivo por meios negativos
e, por fim, deve haver uma razão proporcionada para que se cumpram tais atos.
Qualquer pessoa minimamente informada sobre o
caso em questão sabe que não se trata de um aborto indireto, mas de um aborto
diretamente querido como fim, obviamente não pela menina gestante, mas por
aqueles que o viabilizaram (ou seja, ela não estava operando de um câncer ou
fazendo outra terapia que indiretamente resultou num aborto, mas os médicos
estavam realmente realizando um aborto direto).
Os médicos que atenderam a menina no Espírito
Santo deram o laudo de que a gravidez não comportava riscos iminentes, que
poderia ser serenamente levada adiante por mais algumas semanas, o que seria
suficiente para a realização de um parto seguro, de um puerpério viável, de
modo que se salvariam as duas vidas, encaminhando-se o bebê para uma adoção
certa, pois já havia casais que se tinham oferecido para cuidar da criança, e a
própria menina tinha sido apoiada e assistida pela sua diocese de origem.
Por fim, não se aplica aí o alegado princípio
do “mal menor”, visto que a escolha não se deu entre dois males irremediáveis,
mas sim entre um mal (o aborto) e um bem (o parto seguro para a gestante e para
o bebê).
3. Defesa do aborto “em tese”
Depois de dizer que um ato abortivo não pode
ser considerado aborto desde que se queira salvar a vida da mãe, o texto diz:
“ninguém que conhecemos considera o aborto um método de contracepção
equivalente a qualquer outro, e nenhuma mulher recorre a esse procedimento com
a mesma serenidade com que vai ao dentista. Estamos convencidos de que o aborto
é sempre uma decisão muito grave e deve ser tratada com respeito”.
Em outras palavras, o autor está simplesmente
defendendo o aborto “em tese”, ou seja: 1. um aborto só pode ser considerado
como tal se for querido enquanto método contraceptivo; 2. ninguém recorre ao
aborto como tal; 3. portanto, devemos respeitar a decisão abortiva.
Alguém não conseguirá perceber que este texto
é uma apologia disfarçada de um ato que o magistério solene da Igreja já
definiu como intrinsecamente mau e que, portanto, aqueles que subscreveram este
texto, especialmente Genésio Boff, estão em aberta oposição ao magistério da
Igreja Católica e estão a defender uma tese abertamente contrária tanto à
ortodoxia da fé quanto à lei natural?
Será um exagero dizer que Boff et caterva
recaem na pena de excomunhão latæ sententiæ pelo simples fato de escreverem
tais heresias sem poderem alegar ignorância em seu próprio favor? Caso não
incorram nisto, não deveriam ser processados num tribunal eclesiástico
imediatamente? São perguntas que todo católico sério deveria fazer-se.
O texto afirma, ainda: “estima-se que, no
Brasil, a cada ano mais de um milhão de mulheres recorrem ao aborto. As que
podem pagar o procedimento numa clínica, o fazem com segurança; mas as mulheres
pobres arriscam a sua vida e muitas, inclusive jovens e adolescentes, morrem. E
são milhares. Por isso, o debate deve ser feito com seriedade, levando em conta
os conhecimentos científicos, a Ética e – para os cristãos – os preceitos
bíblicos de defesa da Vida”.
Como alguém pode alegar os “princípios
bíblicos de defesa da vida” apresentando tais argumentos em favor do… aborto
(que é a mais covarde forma de matar)? Como alguém pode exigir conhecimentos
científicos, dizendo que, “no Brasil, a cada ano mais de um milhão de mulheres
recorrem ao aborto”?? Este número foi desmentido publicamente em nossa
audiência pública no STF e a nossa argumentação foi séria e nunca foi refutada.
Os próprios defensores do aborto já retrocederam na apresentação deste número e
dizem, com muito exagero, que o número é de no máximo 500 mil. O autor deste
texto é uma pessoa completamente desinformada e deveria se envergonhar, e os
signatários não passam de embalistas, que também não entendem nada do assunto.
4. Falácias menores
Os autores do texto apelaram para diversas
falácias que também precisam ser devidamente expostas.
Acerca do texto de Dom Walmor, dizem que o
mesmo “dá a impressão de que o crime de estupro é menos hediondo do aquele do
aborto. Fala que devemos ser ‘compassivos’ mas não mostra em sua comunicação
esta compaixão, própria da prática de Jesus e tão pregada pelo Papa Francisco”.
A afirmação do autor, neste ponto, é
simplesmente risível. Ele finge escândalo por uma impressão que ele mesmo tem
do texto – “dá a impressão!”. Mas não para por aí. Ele ademais se escandaliza
por que, segundo ele, Dom Walmor insinuaria que “o estupro é menos hediondo que
o aborto”… Quer dizer que, numa escala de crimes hediondos, “matar” não é pior
que “abusar sexualmente”? É isto que o autor está afirmando? E ele quer
realmente ser levado à sério?
Mais abaixo, o autor continua rasgando as
vestes e dando as “razões” de sua indignação: “o simplismo intelectual dessas
falas, que, seguindo a linguagem vulgar, não distingue embrião, feto e bebê, e
ainda qualifica como pena capital um procedimento cirúrgico destinado a salvar
a vida de uma menina, procedimento este feito dentro da estrita observância da
legislação oficial brasileira para o caso” e, mais abaixo, “de uma autoridade
episcopal nós esperaríamos uma linguagem pastoral de moderação, evitando
excessos emotivos moralistas e juvenis que ao ser reproduzida pelas redes
digitais pode causar confusão em não poucas pessoas”.
Primeiramente, o autor apela para um
argumentum ad hominem (ataque pessoal) muito baixo, bem ao estilo da arrogância
intelectual do Boff: “simplismo intelectual”, “excessos emotivos moralistas e
juvenis”, desqualificações próprias de pessoas que evitam argumentar
verdadeiramente e querem apenas desmerecer o seu oponente, de modo desleal e
intelectualmente abjeto, esnobando-o.
Além disso, ele afirma a ideia mentirosa de
que houve um “procedimento cirúrgico destinado a salvar a vida da menina”, pois
o único objetivo do procedimento foi matar o bebê. Quanto à reclamada distinção
entre “embrião, feto e bebê”, passando por alto o fato de que estas distinções
são bastante discutíveis, já não é cabível tratar deste modo uma gestação de
quase seis meses, quando o parto era viável em termos obstetrícios (há
muitíssimos casos similares).
Por fim, é simplesmente absurdo o autor alegar
como critério de moralidade que o procedimento foi “feito dentro da estrita
observância da legislação oficial brasileira para o caso”, visto que a própria
norma técnica que rege estes casos proíbe o aborto, mesmo o resultante de
estupro, depois da 22a semana de gestação (além de sumamente imoral, o ato foi
ilegal).
5. Motivação e conclusão
No final da carta, o autor diz: “a outra causa
de nossa perplexidade é pelo destaque eclesiástico dado a essas manifestações
enquanto a Carta ao Povo de Deus, endossada por mais de 150 bispos foi
oficialmente ignorada pela CNBB (…) Praticamente todos nós temos vivido
bastante para ver, não sem tristeza, o apequenamento da CNBB e a perda do
fervor profético face às desgraças que assolam nosso povo, especialmente os
mais vulneráveis”.
Na verdade, o que o autor da carta escreve
depõe contra a comunhão eclesial. O risco de se vazar uma carta não consensual
foi justamente este, o de não ter vazão. Agora, as autoridades eclesiais
precisam administrar os mal-entendidos para não permitirem que haja uma divisão
na Igreja. É uma posição delicada e que requer muita serenidade e sabedoria.
Quando duas mulheres foram brigar por um filho
diante do rei Salomão, a mãe verdadeira preferiu perder o filho, enquanto a mãe
falsa preferiu dividi-lo. A divisão nunca é obra de Deus, mas do divisor por
excelência. Infelizmente, essas pessoas querem assanhar mais a divisão.
Por fim, os autores concluem dizendo:
“esperamos viver ainda o suficiente para ver também o seu ressurgimento, com
esses novos bispos que, em sintonia com a proposta de Igreja em saída e com a
valiosa colaboração das Pastorais Sociais, denunciam os sistemas e os
governantes que destroem a Vida das pessoas e de nossa Natureza”. Ora, eles
estão aqui legitimando a destruição de uma vida em nome de que? Da vida? É
impressionante a incoerência dessas pessoas.
Diante de tais absurdidades, não podemos senão
concluir que estes ataques depõem contra a integridade doutrinal dos seus autores
e que os mesmos dão matéria, inclusive, para ações mais incisivas da autoridade
eclesiástica, visando proteger os fieis contra tão prejudiciais confusões, que
atingem não apenas a unidade da Igreja, mas até a integridade física de
indivíduos e, portanto, a segurança da sociedade, pois o aborto mata. Isto é um
fato, não uma mera alegação ideológica.
Padre José Eduardo
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Centro Dom Bosco