Bizarro mundo este em que vivemos. Tínhamos como certo, há menos de uma década, que opinião pública, imprensa e “formadores de opinião” (os bem-pensantes) eram coisas inseparáveis, condenadas a viverem e a permanecerem juntas até o fim dos tempos. Inesperadamente, no entanto, a opinião pública tornou-se um campo de batalha, a imprensa tradicional entrou em colapso e os formadores de opinião, os indefectíveis “especialistas”, foram lançados num quase ostracismo. Tais seres, inclusive, que se tinham e eram tidos socialmente em alta conta, foram condenados a falar praticamente uns para os outros e, o que é pior, se viram, num passe de mágica, substituídos por uma personagem inusitada que, embora prevista na trama das sociedades democráticas, tardou a ter mais voz no espetáculo: o cidadão comum.
Lançando mão das facilidades comunicacionais propiciadas pelas novas tecnologias da informação, donas e donos de casa dos mais variados cantos atiraram-se numa aventura de tons “iluministas”: usaram de sua razão, de seu “bom senso”, esclareceram-se, saíram da “menoridade” e resolveram marcar presença no debate público. Uma vez aí instalados, descobriram similares e seguidores, muitos similares e muitos seguidores; e isso sem nunca recorrerem à autoridade dos títulos acadêmicos ou à chancela dos bem-pensantes; ao contrário, a legitimidade do que dizem é retirada da adesão dos tais similares e seguidores, da gente que compartilha de um mesmo universo de valores – cristãos, familiares e patrióticos –, valores comumente julgados desprezíveis e grosseiros pelos que se querem progressistas e esclarecidos.
A emergência dessas novas personagens no debate público e a tal guerra de narrativas que se instalou no espaço virtual é, no entanto, somente um dos sintomas de um mal de enormes proporções que há tempos, e num crescendo, vem comprometendo a estabilidade das sociedades ocidentais: o divórcio entre o grosso das populações nacionais e suas elites política, econômica e, sobretudo, intelectual. Para se ter uma ideia do tamanho do embrolho e de como o mesmo evoluiu rápido e numa direção inusitada, vale uma breve comparação. Em 1994, poucos dias antes de morrer, o historiador americano Christopher Lasch finalizou o seu premonitório A revolta das elites e a traição da democracia. A obra, tida por muitos como o testamento intelectual de Lash, propõe uma ampla reflexão sobre o futuro da democracia ocidental, melhor, sobre as soluções democráticas para um impasse inédito vivido pelas sociedades ocidentais: o crescente distanciamento entre as elites e os extratos médios e baixos da população, entre os que ocupam o topo da pirâmide social e as ditas maiorias silenciosas.
Lasch parte de uma constatação curiosa: a outrora temida revolta das massas, tidas como mesquinhas, ignorantes, imediatistas e descompromissadas com os interesses nacionais, deu lugar, no ocaso do século XX, a uma outra revolta, a das elites, elites igualmente desterrorializadas, afastadas dos interesses da res publica e avessas aos ditos valores nacionais. Essa revolta das elites globalizadas e o seu crescente descompromisso com o bem comum deixou as sociedades ocidentais acéfalas e cindidas: de um lado, as massas, apegadas a valores familiares e nacionais, ciosa de sua moral e ansiosa por vê-la defendida por aqueles que ocupam o topo da hierarquia social e que, aos seus olhos, deveriam ser os guardiões do modo de vida tradicional; de outro, elites hedonistas, que cultuam as formas marginais e alternativas de vida e que enxergam os antigos valores familiares e nacionais como coisa retrógrada, defendida por gente rústica e politicamente incorreta. Diante de tão radical ruptura, decisiva para os destinos das sociedades ocidentais, Lasch pergunta-se: é possível sair do impasse, preservando os valores que norteiam as democracias? Que caminho podemos tomar?