“Mas, quando chegou a
plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a
lei, para resgatar os súditos da lei e nós recebêssemos a condição de filhos de
Deus” (Gl 4,4)
Esse texto está na Carta de
São Paulo aos Gálatas. A Galácia, hoje Turquia, fazia parte do Império romano e
tinha sido evangelizada por São Paulo. Sua carta é um alerta contra a
influência dos cristãos judaizantes, que insistiam em obrigar os cristãos
gálatas, não judeus, à observância da Torá, a começar da circuncisão. Isso
criou divisão na Comunidade. Por isso, São Paulo faz a defesa de que a salvação
vem pela graça de Jesus e não pela lei. Ele reafirma que o batismo e não a
circuncisão era o sinal que marcava o discípulo de Jesus, independentemente de
sua raça e origem. Ninguém compra a salvação com boas obras e ninguém pode tirar
a libertação da lei dada por Jesus. A relação salvífica com Jesus e o amor
fraterno oferecem o critério da liberdade cristã, que jamais pode ser sufocada
por outras obrigações, impostas pelas tradições ou pelas leis. Por isso, o que
importa é viver no Espírito, de quem brota a verdadeira liberdade. O cap. 4
fala exatamente da liberdade dos filhos de Deus, conquistada por Jesus. Somos
todos herdeiros das promessas de Abraão, que são anteriores à Torá dos judeus.
Contudo, porque éramos menores de idade, ficamos sujeitos a leis e a crenças,
como escravos. Contudo, quando Deus envia seu Filho, n’Ele e por Ele, todos
nós, judeus e não judeus, recebemos a dignidade de filhos de Deus e nos
tornamos livres dessa escravidão. Essas afirmações de São Paulo são tão contundentes
para a fé cristã, que ele se decepciona com os gálatas, que se deixavam
enfeitiçar pelos judaizantes, chamando-os de insensatos (Gl 3,1) e se irrita
fortemente com os pregadores judaizantes, que insistiam na lei da circuncisão,
dizendo que eles deveriam se mutilar totalmente, e não só circuncidar-se (Gl
5,12).
Vejamos, então, que horizonte
esse texto da Carta aos Gálatas descortina para nós e o sentido das expressões
“plenitude dos tempos” e “nascido de uma mulher” para este tempo de
Natal.
"Plenitude dos
Tempos"?
O que significa “plenitude
dos tempos”? Em grego o termo é “pléroma”. Ambas as expressões são
onomatopaicas, isto é, produzem o efeito sonoro de preenchimento completo.
Trata-se do ápice da história humana? De modo algum. De fato, não se trata de
uma plenitude cronológica, mas de plenitude do kairós, isto é, do tempo de
Deus. É a iniciativa gratuita de Deus que confere ao tempo a sua plenitude. Por
outro lado, a Encarnação se insere bem dentro de um tempo e de uma história
concreta, como certamente São Paulo quis afirmar. Enfim, estava maduro o tempo
para acolher a Encarnação ou foi a Encarnação que fez o tempo amadurecer?
São Lucas deixa bem claro o contexto histórico em que aconteceu o nascimento de
Jesus. Basta ler os dois primeiros capítulos do seu Evangelho. O imperador
romano era César Augusto, Quirino era governador na Síria, Herodes o grande era
o rei na Judéia. Tempos e lugares bem definidos, não se trata de uma narração
qualquer, mas de um acontecimento dentro da História humana. E São Paulo nota
que ele nasceu de uma mulher, ou seja não irrompeu do céu, mas, como toda
pessoa concreta, passou pela concepção e pelo parto.
Dentro desse contexto
histórico, é importante notar primeiramente que o império romano encontrava-se
num tempo de consolidação
política, econômica, sócio-cultural, sem tantas guerras de conquista.
Amadurecia um sistema de direito que conferia cidadania e segurança tanto
pessoal como grupal a todos os habitantes do império, independente de sua
religião e de seus costumes locais. Bastava a sujeição ao imperador e o
pagamento dos impostos para usufruir da “pax romana”. Um sistema eficaz de
estradas e de rotas marítimas facilitavam tanto a comunicação como o trânsito
de um lugar para outro. A língua grega “koiné” era a língua mais popular em
todas as cidades do império. A filosofia grega conseguiu criar uma elite
intelectual e a tecnologia romana era capaz de enfrentar os desafios de
engenharia e de meios práticos para garantir a segurança e o bem-estar da
maioria.
Em segundo lugar, o mundo
judeu era aquele que oferecia uma estrutura
religiosa sólida, baseada na Lei e nos Profetas, com resistência suficiente
para não se dobrar diante das influências de outros grupos. Suas tradições e
seus livros sagrados, sua vida religiosa comunitária centrada nas sinagogas,
sua presença em todo o império (diáspora), faziam do povo judeu uma referência
religiosa necessária mais forte do que as religiões e cultos dos outros
povos.
Notamos ainda que já havia um resto de Israel, que foi amadurecendo e interiorizando
a sua esperança messiânica, sinalizado por Qunrã e pelo povo simples, como
Isabel e Zacarias, Maria e José. Vivem uma espiritualidade de relação próxima
com Deus e de capacidade de ler os sinais dos tempos. Possivelmente, já não
alimentavam expectativas de glórias militares ou de dominação sobre outros
povos, mas sim, de liberdade, de misericórdia e de paz. Mais do que cultos e
leis, havia um anseio de vivência moral e espiritual, de autêntica experiência
de Deus. Ao longo de sua história, os acontecimentos e a voz dos profetas,
haviam relativizado o valor dos cultos oficiais, apelando sempre para a aliança
original com Deus e para a fidelidade ao único Deus, através da oração.
Não se pode negar que esses fatores favoreceram a
primeira Evangelização, que conseguiu estender-se até mesmo para além das
fronteiras do império romano. Mas, são fatores, e não se pode deduzir que a
expressão de São Paulo “plenitude dos tempos” pudesse estar se referindo a
essas circunstâncias. Se por um lado, elas foram favoráveis, por outro lado,
foram a causa das terríveis perseguições que desabaram sobre a Igreja
nascente.
Há ainda quem interprete a
“plenitude dos tempos” como uma referência ao ápice
da dominação política e militar dos romanos, sujeitando todos os povos do
ocidente ao seu domínio e já encaminhando-se para o oriente. Seria a plenitude
da maldade humana, que estaria clamando por um Libertador. Sem dúvida, havia
quem assim interpretasse aqueles tempos e é possível que o próprio Judas
Iscariotes fizesse parte dessa ideologia. Para eles, Jesus teria sido uma
decepção. Mas, a dominação romana nem sempre significou uma escravização
violenta dos inúmeros povos. Pelo contrário, para muitos foi uma libertação das
eternas guerras tribais, uma experiência de unidade política maior e um acesso
cultural mais amplo, que não sacrificava suas próprias tradições, porque a
autoridade romana costumava respeitar as diversas religiões dos povos
conquistados, como fizeram com os próprios judeus.
Dentro do contexto da Carta
aos Gálatas,
é possível compreender o sentido da expressão paulina. De fato, São Paulo se
debate com a tradição das Escrituras sagradas dos judeus, denominadas Leis e
Profetas. Ele não tem dúvida em afirmar, como o fez na Carta aos Romanos, que a
justificação ou salvação não vem pelo cumprimento da “Torá” (Leis), mas pela
graça de Jesus Cristo. Insiste em que o
regime da “Torá” encerrou-se com a vinda de Cristo. Ela já não tem poder
sobre os cristãos. Sob esse ponto de vista, a expressão “plenitude dos tempos”
poderia ser traduzido também por: “completou-se o prazo de vigência da Torá,
cumpriu-se o tempo da antiga Aliança”. Termina o tempo da Lei, inicia-se o
tempo da Graça, inaugura-se um novo Povo, uma nova Aliança, sacramentada pelo
sangue de Jesus, em que os membros desse Povo são convocados de todos os povos,
raças e lugares. Contudo, se a “Torá” caducou totalmente para os cristãos, em relação aos Profetas, a
expressão “plenitude dos tempos” surge como a realização plena das promessas
divinas. Jesus é aquele que consuma tudo o que foi prometido (Jo 19,30). De
fato, várias vezes os Evangelistas notam que os fatos de sua vida cumprem as
Escrituras: Mt 5,17; 26,54-56; Lc 18,31; 24,44. Ou seja, Jesus plenifica ou
cumpre plenamente tudo o que havia sido anunciado pela Palavra de Deus,
iniciando com a sua Ressurreição uma nova história e um novo tempo. Enfim, em
relação à “Torá”, a “plenitude dos tempos” indica o fim; em relação aos
Profetas, indica o tempo do cumprimento pleno.
Qualquer que seja a
interpretação, nós cremos no projeto
de Deus de intervenção na história humana para
resgatar o ser humano e recapitular tudo em Cristo. Por isso, o “kairós”
pertence a Ele, porque a iniciativa histórica da Encarnação veio de Deus e não da
história humana. “Deus enviou o seu Filho”: é essa iniciativa de amor que faz o
tempo humano se plenificar, se completar totalmente. Porque então, como diz
Hebreus, Deus, que outrora falara pelos profetas, “nos últimos dias nos falou
pelo Filho, que constituiu herdeiro de tudo e por quem criou também o mundo”
(Hb 1,1-2). É Cristo quem plenifica o tempo e não um suposto tempo plenificado
que exigiria Cristo. Como diz Santo Afonso de Ligório: “Essa expressão marca a plenitude
da graça que o Filho de Deus veio comunicar aos homens pela redenção”.[1]
"Nascido de uma
Mulher"
O que significa essa
expressão paulina? Por que não é citado o nome de Maria de modo explícito? De
fato, o que mais importa a São Paulo é a afirmação da humanidade de Jesus, que
foi assumida de uma mulher concreta. Por isso, essa rápida informação surge no
texto como uma cortina que se abre e deixa acompanhar uma história
profundamente humana, cheia de personagens maravilhosos, cujas vidas deixam
transparecer a presença de um Deus compassivo e atuante no dia-a-dia da
história humana.
Essa “mulher” é a mesma do Evangelho da Infância de Lucas,
capítulos 1 e 2. Nesses dois capítulos nós contemplamos os mistérios do Anúncio
do nascimento de João Batista, da Anunciação a Maria, da Visita a Isabel com o
“Magnificat” de Maria, do Nascimento de João Batista, com o “Benedictus” de
Zacarias, do Nascimento de Jesus em Belém, da Visita dos Pastores, da Apresentação
no templo e da perda e encontro de Jesus menino no templo de Jerusalém. Ela é
também a mesma que encontramos no início do Evangelho de Mateus 1 e 2, em que
afirma, através da cena da perplexidade de José, a origem divina de Jesus como
sendo o Emanuel – Deus conosco, prometido por Isaías 7,14. E continua com a
visita dos Magos do Oriente e o infanticídio cometido por Herodes, que levou à
sagrada Família a exilar-se no Egito. Tanto Lucas como Mateus terminam seus
relatos localizando Jesus em Nazaré, na Galiléia.
A expressão “nascido de uma
mulher” evoca também a promessa
divina de Gênesis 3,15, quando Deus amaldiçoa a serpente: “Porei inimizade entre
ti e a mulher, entre tua descendência e a descendência dela: esta te ferirá a
cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”. Haverá
uma nova descendência, distinta daquela de Adão e Eva, que não será enganada
pela serpente. A descendência de Adão e Eva estava inevitavelmente contaminada
por essa infidelidade original. A corrupção do pecado penetrara na própria
natureza do ser humano, conferindo-lhe a fragilidade do pecado e da morte. Ora,
o que é a nossa fé na Encarnação? É crer que “Deus,
de tal modo amou o mundo que lhe enviou o seu Filho único” (Jo 3,16). E não o envia como um
mensageiro importante ou como um personagem de fora, mesmo que se apresentasse
com aparência humana. Ele o envia para encarnar-se na própria natureza do ser
humano. Deus queria penetrar por dentro dessa natureza frágil e pecadora e
assim redimi-la de sua corrupção intrínseca. “O
Verbo se fez carne e veio morar no meio de nós” (Jo 1,14). A expressão “carne” expressa
exatamente aquilo que chamamos de natureza humana, de que participa todo homem
e toda mulher. E a mesma Palavra com a qual Deus criara o universo, é
pronunciada novamente, não sobre o mundo, mas sobre a natureza do ser humano. “Faça-se em mim segundo a tua
Palavra!”: com esta resposta de Maria ao Anjo inicia-se uma nova criação.
Ou seja, a natureza divina penetra a natureza humana e une-se a ela, na unidade
de uma só pessoa, o Verbo eterno. A partir da Encarnação, começa a existir uma
nova descendência humana: existe um ser humano não corrompido pelo pecado e
vivendo em íntima união com o divino. O humano e o divino fundiram-se numa só
pessoa. E essa nova descendência depende da iniciativa do amor de Deus e também
da colaboração de uma mulher. Ele é “nascido de uma mulher”. Ele é alguém
concreto, visível, inserido bem dentro da nossa história num momento
determinado e num lugar bem conhecido.
É de Maria e somente dela a
natureza humana
na qual o Verbo eterno se
encarnou.
Todo filho traz marcas
genéticas do pai e da mãe. Jesus as traz apenas de Maria. Suas tendências
naturais, seus gostos, sua sensibilidade, sua saúde, sua aparência humana, seu
jeito de ser provém tudo de Maria. Ela oferece a Deus sua vontade e seu corpo
por inteiro, torna-se a matéria prima do mistério da Encarnação, não somente do
ponto de vista físico, mas também psicológico e espiritual. Sua própria
virgindade é o selo da origem divina de seu Filho. Caso contrário, ele poderia
ser mais um ser humano
divinizado, como já acontecia em outras crenças. Por isso, Maria se faz
necessária para realizar essa união divino-humana, um milagre somente possível
pelo amor e pela misericórdia infinita do nosso Deus.
É nessa natureza humana,
recebida de Maria, que a
natureza divina vai humilhar-se, esconder-se, aniquilar-se, despojar-se de
sua divindade, para se tornar igual aos homens em tudo, exceto no pecado,
porque fez-se obediente ao Pai até a morte e morte na cruz. Diz Santo Afonso: “O Verbo eterno desce à terra para
salvar o homem. De onde desce Ele? A sua saída é do mais alto dos céus. Desce
do seio de Deus, seu Pai, onde foi gerado desde toda a eternidade entre os
esplendores dos santos. E aonde desce? Desce ao seio de uma Virgem, filha de
Adão, isto é, a um lugar que, comparado ao seio de Deus, não é senão um horror.
Daí, o cântico da Igreja: ‘Não tivestes horror do seio da Virgem’. Sim, porque
o Verbo estando no seio do Pai, é Deus como o Pai, é imenso, onipotente,
infinitamente feliz, soberano Senhor do universo, em tudo igual a seu Pai. Mas,
no seio de Maria, ele é criatura, é pequeno, fraco, padecente, servo, inferior
a seu Pai.”[2]
Essa “kénosis” ou aniquilamento foi real, foi
histórica. Mais uma vez, Santo Afonso, ao ler o texto emblemático de São Paulo
sobre a “kénosis” em Fl 2,6-11, faz-nos perceber que ao aniquilamento total do
Verbo eterno corresponde a elevação progressiva do ser humano, como se Deus
houvesse estabelecido um efeito gangorra entre o seu Filho e as criaturas
humanas. “O Filho de Deus se
fez pequeno para nos fazer grandes; ele deu-se a nós, a fim de que nós nos
demos a Ele...”[3] Em suas Considerações sobre a
Infância de Jesus, nos próprios títulos, Santo Afonso contempla como o Verbo
eterno de grande se fez pequeno, de senhor se fez servo, de inocente se fez
réu, de forte se fez fraco, de seu se fez nosso, de feliz se fez padecente, de
rico se fez pobre, e de sublime se fez humilde. Tudo para que o homem superasse
seu orgulho, vencesse a ganância, voltasse a recuperar sua dignidade perdida,
sobrevivesse ao sofrimento, fosse libertado da escravidão do pecado,
deixasse de ser réu, recebendo a remissão de todo o mal praticado e fosse
também capaz de se doar por amor. Eis o desapego total da sua divindade, para
redimir a nossa humanidade. Não é sem razão que as primeiras comunidades cristãs
viam os cânticos dolorosos do Servo de Javé de Isaías realizar-se na paixão de
Jesus. Por isso, ele foi exaltado, não mais como Verbo, em sua natureza divina,
mas também em sua natureza humana, para se tornar o “Senhor”, o Alfa e o Ômega
de toda a história humana. (Fl 2,6-11; Ap 22,13).
Encarnação e Redenção
Não existe espaço de tempo
entre Encarnação e Redenção. Desde a Encarnação, Jesus é o nosso Santíssimo Redentor. Por
isso, a festa do Natal é uma festa de Redenção e não apenas a lembrança de um fato
passado. São duas dimensões simultâneas e concomitantes. Essa união é redentora
e redentiva. Porque a nossa Redenção realiza-se fundamentalmente pela oblação
que o Filho faz da sua vida ao Pai. Diz Santo Afonso: “Esta oblação realizou-se no
momento da Encarnação, quando ofereceu-se voluntariamente para expiar os
pecados dos homens... E essa oferta que nosso divino Salvador fez então de si
mesmo, não se limitou a esse momento, que não foi senão o início, para depois
continuar sempre durar eternamente”.[4] A Encarnação foi um processo
constante, em que o divino vai assumindo o humano e o humano vai sendo
resgatado pelo divino do seu condicionamento natural para a morte e do seu
condicionamento moral para o pecado. O último momento da Encarnação acontecerá
na morte na cruz e o último momento da Redenção será a Ressurreição. Por isso,
o papel de Maria é tão ativo na Encarnação como na Redenção. O seu “Fiat” a Deus
a envolveu por completo na missão do Filho, desde o primeiro instante da
concepção até a parusia, quando se completará a obra da Redenção.
Normalmente, nós costumamos
ver a maternidade eclesial de Maria no momento em que Jesus, morrendo na cruz,
confia-lhe seu discípulo João como filho e a entrega a João como mãe. Sem
dúvida, é o momento-ápice, que encerra a cena da Anunciação e do “Fiat” de
Maria. Mas, não foram essas palavras de Jesus que inauguraram a maternidade
eclesial de Maria. Desde o primeiro instante da Encarnação do Verbo eterno,
começou a maternidade de Maria também em relação a todos nós. O Filho de Deus
havia encarnado cada segundo de uma existência humana, mergulhando por completo
na aventura de ser o filho de Maria e de José. Mesmo que sua consciência divina
de ser eternamente Deus fosse desabrochando com a evolução normal de sua
natureza humana, de fato ele vivia a cada instante em união substancial com o
Pai e o Espírito, porque possuía uma natureza divina. Todavia, tudo o que vivia
e realizava, era sempre expressão de suas duas naturezas, que existiam de forma
inseparável em sua pessoa. Ao dizer mãe e pai, ao trabalhar e pregar, no orar e
no caminhar, Deus estava com o jovem de Nazaré e o jovem de Nazaré estava em
Deus. Assim, cada instante novo de sua vida, cada etapa de seu crescimento era
uma experiência de Encarnação do divino no humano. E ao mesmo tempo, era um ato
de Redenção intrínseca da natureza humana, porque a libertava da sua
dependência natural que a sujeitava ao pecado e a levaria à morte total. Esse
mistério das duas naturezas convivendo em Jesus faz com que Encarnação e
Redenção caminhassem sempre juntas. Mesmo que sua vida não tivesse terminado na
tragédia dolorosa que sofreu e assumiu com amor, o próprio fato de viver como
ser humano teria redimido a natureza humana do pecado e da morte.
Ora, Maria era a geradora
dessa natureza humana redimida. Portanto, necessariamente, sua maternidade se
estende a todos aqueles que acolhem ser descendentes desse novo Adão, de tal
modo que ela pode ser chamada de nova Eva. Sua maternidade eclesial começou com
a Anunciação, quando se inaugurou o mistério da Encarnação do divino no humano.
Se ela é verdadeiramente a mãe de Jesus, ela é necessariamente nossa mãe
também. Somos da mesma natureza do seu Filho bendito, que foi dada a ele por
ela, e que Ele redimiu do poder do mal e da morte. Não há dúvida, embora de
modo análogo, que assim como Jesus, por sua natureza divina, nos deu o direito
de chamar o seu Pai de “Pai nosso”, assim também, por sua natureza humana
solidária ontologicamente com a nossa, nos deu o direito de chamar a sua Mãe de
nossa Mãe.
Maria no Processo da
Encarnação do Filho
Não foi fácil para as
primeiras comunidades cristãs manterem a fé no mistério da Encarnação. O
anúncio da Ressurreição e glorificação de Jesus soava de forma tão maravilhosa,
que dificilmente cabia no imaginário cristão a imagem de um ser humano frágil,
igual a qualquer outro ser humano em tudo, exceto no pecado. Por isso, logo
surgiu uma ideia chamada de “docetismo”,
que afirmava que a natureza humana de Jesus era apenas uma aparência, não era
real. Por isso, quando se afirmou o dogma da Maternidade divina de Maria, de
fato, o núcleo dessa afirmação era a natureza humana do Verbo eterno como uma
realidade plena. Jesus não fez de conta que era gente. Ele era homem de verdade,
tanto quanto era Deus de verdade. Naquela criança de Nazaré, naquele jovem
carpinteiro e naquele homem adulto habitava a plenitude da divindade. Contudo,
a consciência de sua personalidade divina foi se manifestando segundo a
evolução de sua natureza humana.
Mais de uma vez, Lucas faz uma observação
interessante sobre Maria. Referindo-se ao nascimento de Jesus e à visita
dos pastores, como também aos fatos anteriores, ele diz no cap. 2, 19: “Maria, porém, guardava todas essas
coisas, meditando-as no seu coração”. Repete
a mesma observação, quando Maria reencontra Jesus no templo de Jerusalém, cap.
2, 51: “Sua mãe guardava todas
estas coisas no coração”. O que significa essa atitude de Maria? Apenas que
ela não compreendia o que estava acontecendo ou não seria exatamente o
contrário, ou seja, ela tinha consciência do segredo messiânico de seu Filho,
da sua origem divina. Podemos afirmar que Maria, que guardava tudo em seu
coração, trazia consigo esse segredo
messiânico a respeito de sua
criança e de seu jovem filho, porque ela recebera a mensagem do Anjo e ela
havia concebido de modo virginal, por ação do Espírito Santo. Se o seu esposo
José, que compartilhava desse segredo e também fora convocado para ser
protagonista do desígnio ou projeto divino da Encarnação, morrera quando Jesus
ainda não era adulto, coube a Maria acompanhar o filho e, pedagogicamente,
fazê-lo crescer na consciência
de sua verdadeira origem. Talvez, ela não soubesse a hora em que esse Filho
tão especial tomaria também consciência plena dessa realidade. Por isso, devia
esperar a hora de Jesus com paciência e sabedoria. Algumas passagens
evangélicas podem ser lidas sob esse prisma, como Lc 1,39-56; 1,41-52; Jo
2,1-11.
Ao receber a notícia de que
sua prima Isabel também estava grávida e a criança que iria nascer já fazia
parte do projeto da Encarnação, ela sai
às pressas ao encontro de sua prima. Certamente, não foi para certificar-se
se a informação do Anjo era verdadeira ou não. Nada disso diz o Evangelho da
Infância. Pelo contrário, o que vemos são duas primas muito conscientes da ação
de Deus, cheias de alegria, que se abraçam e louvam o Senhor por tudo o que
estava acontecendo. O que o Evangelista nota é que a presença do Verbo
tornando-se homem no seio de Maria já provoca reações em Isabel e na criança
que está esperando. Maria demonstra ter consciência de que o seu Filho
não viera para ela, mas para os outros. O segredo que traz em ventre é o
Salvador da humanidade, cuja missão, desde a concepção, será levar a esperança,
a alegria e a libertação a todas as pessoas. Era preciso levá-los a todos e
torná-lo presente onde quer que fosse. E Maria é a primeira a colaborar com
essa missão, movida pela caridade para com Isabel. Por isso, aquela criança especial
já provoca a alegria messiânica de João Batista. E desde então, todas as
manifestações de Maria ao longo da nossa história cristã têm sido sempre com a
finalidade de levar o seu
Filho a todas as pessoas, a todos os povos, em todos os tempos, como que
numa continuação constante da Encarnação.
Outra cena emblemática é a da perda e encontro de Jesus no templo,
quando ele já completara doze anos. Creio que tem a ver com o processo de
Encarnação-Redenção. A consciência de sua filiação divina eterna vai aflorando
em Jesus, na medida em que ele vai crescendo e desenvolvendo suas
potencialidades humanas. É um processo gradativo e pedagógico. Quando ele alega
aos pais que deve cuidar das coisas de seu Pai, sua mãe guarda bem essas
palavras no coração, porque ela conhecia bem o seu segredo divino. E sabe que
sua missão não é no templo. Por isso, leva-o para casa de volta. Vai
ensinar-lhe que sua missão não será continuação do culto e das tradições do
templo nem do povo da antiga aliança. É algo muito maior, que tem a ver com o
próprio fato de ser homem e ser Deus. Ainda não era a sua hora, a hora da plena
consciência de sua filiação divina, em que tudo o que existia de religião e de
culto no mundo ficaria relativizado pela sua própria presença. Era nele que estava
a plenitude da divindade (Cl 2,9), era em sua natureza humana que o divino
habitava, não mais em templos, cultos, símbolos e fórmulas religiosas.
Possivelmente, Maria tinha mais consciência dessa nova realidade do que aquele
menino de 12 anos.
Outra cena interessante é a
sua intervenção no casamento
em Caná da Galileia. Agora,
ela intervém porque a sua hora
já chegou, ainda que ele afirme que não. É a hora em que se manifesta, como
se fosse uma união esponsal, a unidade indissolúvel entre a natureza divina e a
natureza humana em Jesus. São as bodas entre o divino e o humano na pessoa de
Jesus de Nazaré. E é Maria, a dona do segredo messiânico que provoca esse
sinal, que faz seus discípulos crerem nele. Ela, em certo sentido, apressa a
hora do Filho, levando-o a atuar como Verbo encarnado, aquele que Deus enviou
como esposo da nova humanidade, para que a festa da união entre Deus e o ser
humano não termine nunca. É como se a Mãe dissesse ao Filho: chegou a hora,
tome consciência da sua personalidade divina e faça acontecer aquilo pelo qual
eu o concebi e dei à luz: a presença de Deus na família humana, porque você é
verdadeiramente o “Deus-conosco”.
Concluindo
A Encarnação inaugurou a “plenitude dos
tempos”. Maria surge nesse momento como a representante mais digna de toda a
humanidade, sobre a qual o Espírito de Deus podia pousar e fazer frutificar o
mistério da Encarnação. Por isso, ela é a Mulher. É, ao mesmo tempo, mãe e
esposa, uma nova Eva, ponto de origem de um novo Povo de Deus, figura referencial
de toda a natureza e missão da Igreja. Como a ação da Encarnação e da Redenção
é vinculada, como um só ato do amor divino, que redime o ser humano no Filho e
pelo Filho, o “Fiat” de Maria a vinculou inseparavelmente a essa iniciativa de
Deus. E ela soube guardar o segredo divino, colaborando ativamente para que seu
Filho a crescesse em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens (Lc
2,52).
Por isso, não é possível falar em
Encarnação continuada, sem a mediação humana e contínua de Maria. Ao “Eis que
venho para fazer a tua Vontade...” (Hb 10,9) de Jesus corresponde o “Eis aqui a
serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua Palavra” (Lc 1,38) de Maria.
Desde esse instante, Ela é a nossa Mãe, a mãe da nossa Redenção e sua
colaboração vai continuar até que a “plenitude dos tempos” atinja sua parusia,
quando tudo e todos estiverem reconciliados e recapitulados em Cristo (Col
1,12-20).
Somente nos resta contar com a
intercessão dessa bondosa Mãe, para chegar a uma verdadeira resposta de amor a
esse Deus que tanto nos amou. Em nossas preces a Maria, é preciso repetir
sempre com Santo Afonso: “Não te esqueças de mim, pecador; faz que meu
coração ame quem sempre me amou” (canção “Evviva Maria”)
“O
Espírito e a Esposa dizem: ‘Vem!’ Quem ouve também diga: ‘Vem!’ Quem tem sede
venha, e quem quiser receba gratuitamente a água viva....Amém! Vem, Senhor
Jesus!” (Ap 22,17.20).
Pe. J. Ulysses da Silva.CSsR
[1] Santo Afonso M. de Ligório, Encarnação,
nascimento e infância de Jesus, Meditações para o tempo do advento, IV. pg.
126, Ed. Vozes 1946.
[2] S. Afonso M. de Ligório, Encarnação,
nascimento e infância de Jesus, I Meditações para o tempo do advento, V. pg.
128, Ed. Vozes 1946.
[3] S. Afonso M. de Ligório, Encarnação,
nascimento e infância de Jesus, II Meditações para o tempo do advento, III. pg.
159-160, Ed. Vozes 1946
[4] Santo Afonso M. de Ligório, citado por Colin,
Louis, Alphonse de Liguori, Doctrine Spirituelle 2, pg. 76, Ed. Salvator –
Mulhouse, 1971.
______________________________
Disponível em: Santuário Nacional
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