Embora o jejum seja uma prática muito antiga que faz parte da cultura religiosa de vários povos e o jejum praticado pelos cristãos tenha suas raízes na experiência do povo de Deus, muitas pessoas ainda tem dúvidas em relação a prática cristã. Para ajudar os leitores a entender o jejum, comum na Quaresma, a Voz de Nazaré conversou com Agostinho Filho. Confira:
Por que é importante para o cristão fazer Jejum durante a Quaresma?
Uma vez que se considerando a dignidade do homem e da condição decaída da humanidade, a mortificação corporal é encarada e aceita como um meio livremente escolhido para conseguir manter a sujeição das tendências naturais do homem aos interesses superiores do espírito. Entre essas mortificações corporais, encontra-se o jejum. É uma prática que remonta a experiência bíblica. O motivo espiritual do jejum também deve ser ressaltado, pois, “para uma vida de verdadeira glorificação de Deus os interesses do espírito devem ser antepostos aos interesses da natureza humana. Devido à tendência da natureza humana “decaída”, tal intento não se concretizará se o homem não tiver aprendido, através da força da graça redentora de Cristo, a vencer-se a si mesmo. Ora, um desses meios de mortificação é precisamente o jejum. Eis a exortação de São Pedro Crisólogo, bispo (Séc. IV): “homem a Deus a tua alma, oferece a oblação do jejum, para que seja uma oferenda pura, um sacrifício santo, uma vítima viva que ao mesmo tempo permanece em ti e é oferecida a Deus. Quem não dá isto a Deus não tem desculpa, porque todos podem se oferecer a si mesmos”, exorta-nos o bispo São Pedro Crisólogo (séc. IV). Além de que, a Igreja não recomenda somente o jejum neste tempo quaresmal; fazem parte da vida de mortificação e penitência dos cristãos a oração e a esmola (caridade feita a outro) (cf. Tb 12, 8; Mt 6, 1-18), que exprimem a conversão com relação a si mesmo, a Deus e aos outros.
Por que a Igreja orienta a abstinência de carne às quartas e sextas-feiras da Quaresma?
Os mandamentos da Igreja situam-se nesta linha de uma vida moral ligada à vida litúrgica e que dela se alimenta[5]. O quarto mandamento que a Santa Igreja dispõe aos seus filhos que peregrinam na fé, é o de “Jejuar e abster-se de carne”. Este preceito “determina os tempos de ascese e penitência que nos preparam para as festas litúrgicas; contribuem para nos fazer adquirir o domínio sobre os nossos instintos e a liberdade de coração[6]. Para a Igreja, não somente na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira da Paixão do Senhor é que se deve jejuar, mas toda sexta-feira deve-se buscar a abstinência de carne, segundo as orientações da Igreja no Brasil[7]. O tempo da Quaresma e cada sexta-feira em memória da Paixão e Morte de Nosso Senhor, são momentos singulares para que os fiéis pratiquem a penitência[8]; é um tempo de graça favorável para crescer no amor a Deus e melhorar sua vida espiritual com “apropriados exercícios espirituais, liturgias penitenciais, peregrinações em sinal de penitência, via sacras, privações voluntárias como o jejum e a esmola, à partilha fraterna”[9]
Muitos católicos costumam escolher durante a Quaresma algo específico para abster-se, como refrigerantes ou chocolates. Isso é correto?Qual seria a forma indica pela Igreja para viver o Jejum?
A Igreja orienta a abstinência de carne, mas também abre possibilidades para outras práticas de mortificações, desde que sejam motivadas por um verdadeiro ato de conversão, de que isso leve o praticante a melhorar sua vida espiritual, aproximando-o mais de Deus e dos irmãos. Não podemos esquecer que, “a conversão se realiza na vida cotidiana por meio de gestos de reconciliação, cuidado dos pobres, do exercício e da defesa da justiça e do direito (cf. Am 5, 24; Is 1, 17), pela confissão das faltas aos irmãos, pela correção fraterna, pela revisão de vida, pelo exame de consciência, pela direção espiritual, pela aceitação dos sofrimentos, pela firmeza na perseguição por causa da justiça. Tomar sua cruz de cada dia, e seguir Jesus é o caminho mais seguro da penitência (cf. Lc 9,23)[10]. Em conformidade com a legislação eclesiástica, “a abstinência pode ser substituída pelos próprios fiéis por outra prática de penitência, caridade ou piedade, particularmente pela participação nesses dias na Sagrada Liturgia”[11]
Esta prática é vista por muitas pessoas como uma espécie de martírio, de sofrimento. Fazer jejum é passar fome? Jejum acompanha sofrimento?
Realmente, quando se fala de penitência tem-se em mente algo doloroso, sofrido, e que nos limita. A penitência tem seu caráter martirial, pois a palavra martírio significa “testemunho”; logo, o penitente é alguém que testemunha na sua vida, no seu corpo, com seus gestos a ação salvadora de Cristo, imitando-o em sua humilhação pela remissão dos pecados da humanidade inteira. Ainda que possamos comparar com um “martírio”, não de sangue, mas de nossas vontades, “não se trata de passar fome no jejum da Quaresma, mas de ter uma alimentação menos variada e que ponha menos obstáculo à concentração. Esse jejum também tem uma função simbólica, fazendo nitidamente da Quaresma uma preparação para a Páscoa. Na verdade, sem jejum prévio, não há festa, celebração jubilosa de um momento particular”[12]. Jesus nos orienta, no Evangelho de São Mateus, para não cairmos em nossas práticas exteriores no rigorismos e na hipocrisia, achando que somos os melhores, ou mais dignos de compaixão pelos sacrifícios que fazemos, eis sua orientação: “Quando jejuardes, não tomeis um ar sombrio como fazem os hipócritas, pois eles desfiguram seu rosto para que seu jejum seja percebido pelos homens. Em verdade, vos digo, já receberam sua recompensa. Tu, porém quando jejuares, unge tua cabeça e lava o teu rosto, para que os homens não percebam que estás jejuando, mas apenas teu Pai, que está lá no segredo; e teu Pai, que vê no segredo te recompensará” (Mt 6, 16-18).
O que o jejum traz para a nossa relação pessoal com Deus? Qual a contribuição espiritual do Jejum?
O jejum é em sua essência um antídoto que a Igreja nos oferece para combater em nós toda inclinação de satisfação de nossas vontades, sejam corporais ou não. É interessante e vale a pena ressaltar a idéia que São Francisco deixou como herança acerca do jejum: “Devemos também jejuar e nos abster dos vícios e dos pecados e do supérfluo no comer e no beber” (2 CtFi 32)[13]. No pensamento de Francisco o jejum também tem valor enquanto é meio, ou pelo menos ajuda, no processo de conversão que, por sua vez, é vitória do Senhor sobre o espírito do próprio eu. “O objetivo do jejum é treinar o homem para dizer não a si mesmo, para estar, de alguma maneira, livre de todo impedimento e assim poder dizer sim a Deus e às exigências do reino”[14]. E, jamais poderíamos deixar se salientar o dinamismo da conversão provocada pela penitência. Exemplo claro encontramos na parábola do “filho pródigo”, cujo centro é “o Pai misericordioso” (cf. Lc 15, 11-24). O filho que se desfaz de seus bens; experimenta a miséria; a humilhação; o abandono e a solidão; mas que encontra forças no seu propósito de regresso à casa do Pai, sujeitando-se a ser um entre os servos da casa. Isso prova-nos que o coração do homem é capaz de Deus; o homem tem desejo de Deus, basta que queira voltar; Deus, assim como o Pai da parábola, é misericordioso, e aguarda a volta de seus filhos. Portanto, a Quaresma, com suas práticas e exigências para uma autêntica vida cristã, irradia a força da graça divina encorajando a todos, homens e mulheres, crianças e jovens a uma caminhada na fé, peregrinando sob a tutela da Igreja, a qual Cristo, seu Esposo, ornou-a com todos os dons para que todos os homens possam encontrar nela, o Senhor de suas vidas. Aproveitemos este tempo de conversão e abramo-nos a graça redentora de Cristo, para chegarmos alegremente às comemorações de sua Páscoa.Assim ensina-nos o grande teólogo, Santo Agostinho: “Com efeito, nossa vida, enquanto somos peregrinos neste mundo, não pode estar livre de tentações, pois é através delas que se realiza o nosso progresso e ninguém pode conhecer-se a si mesmo sem ter sido tentado. Ninguém pode vencer sem ter combatido, nem pode combater se não tiver inimigos e tentações”[15]. De outro modo, combatamos o nosso combate com os meios que nos dispõe a Santa Igreja: o jejum, a oração e a esmola.
REFERÊNCIAS
[1] BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nota explicativa do capítulo 58, 3.
[2] DOS SERMÕES DE SÃO LEÃO MAGNO, papa. Ofício das leituras, quinta-feira depois das Cinzas.
[3] DOS SERMÕES DE SÃO PEDRO CRISÓLOGO, bispo (séc. IV). Ofício das leituras da terça-feira da 3ª Semana da Quaresma.
[4] DIRETÓRIO DA LITURGIA E DA ORGANIZAÇÃO DA IGREJA NO BTASIL. CNBB: Brasilia-DF, 2010. p. 20-21.
[5] Catecismo da Igreja Católica,nº 2041.
[6] Cf. Catecismo da Igreja Católica, nº 1246-1248.
[7] Diretório da Liturgia e da Organização da Igreja no Brasil. CNBB, 2010. p. 20.
[8] Sacrosanctum Concilium, nº 109-110.
[9] Catecismo da Igreja Católica, nº 1438.
[10] Catecismo da Igreja Católcia, nº1435.
[11] Diretório da Liturgia e da Organização da Igreja no Brasil. Brasília- DF: CNBB, 2010. p. 20-21.
[12] LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas/ Loyola, 2004.
[13] CAROLI, Ernesto. Dicionário Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 350.
[14] CAROLI, Ernesto. Dicionário Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 350.
[15] Santo Agostinho (Comentários sobre os Salmos: Ps 60, 2-3: Ofício das leituras do 1º Domingo da Quaresma).
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Fonte: http://www.fundacaonazare.com.br/voz/ler.php?id=2915&edicao=91
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Fonte: http://www.fundacaonazare.com.br/voz/ler.php?id=2915&edicao=91
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