“É cedo! Fiquem mais um pouco!” (“Nossa! Será que eles não desconfiam que já deveriam ter ido?”). “Muito prazer em conhecê-lo. Apareça lá em casa!” (“Nem vou dar meu endereço, pois pode ser que apareça mesmo!”). “Que lindo o seu vestido! Quem o fez? (“Que falta de gosto! Como é capaz de andar com uma roupa assim?”). As frases variam conforme as circunstâncias ou a conveniência. A hipocrisia domina de tal modo a nossa vida que parece ser natural ou, mesmo, necessária. Os convites se renovam, os elogios se repetem e as formalidades se multiplicam. Seria, pois, uma gafe enorme ficar mais um pouco na casa do amigo, aparecer na casa da pessoa que pouco antes lhe foi apresentada ou acreditar piamente no elogio recebido.
Os elogios se multiplicam. Todos são elogiados com os adjetivos mais pomposos. Se alguém tiver a ingenuidade de acreditar neles e for somando todos os que receber, acabará tendo um autoconceito totalmente deformado. Ficará pensando que é o que os outros nem julgam que ele realmente seja; apenas falaram o que a conveniência lhes ditou. Estavam longe, contudo, de realmente pensar e acreditar no que disseram.
Há possibilidade de se acabar com tanta formalidade? Há! A primeira solução é utópica, arriscada e não recomendável. Consistiria, antes de tudo, em aceitar todos os convites feitos – por exemplo: permanecer na casa visitada, enquanto os donos fossem dizendo: “É cedo! Fique mais um pouco!”, mesmo que com isso se corresse o risco de ver os donos da casa bocejando; depois, visitar todas as pessoas que lhe disserem para “aparecer lá em casa” e, se convidado para o jantar, sentar-se imediatamente à mesa; além disso, começar a dizer o que realmente está pensando, sabendo que, quando se trata da sinceridade, estamos num mundo curioso, pois ela é sempre desejada; já os sinceros, nem sempre são bem vistos... Não leve adiante, pois, tais propostas.
O que precisamos fazer, isso sim, é lutar contra as formalidades e as mentiras. Assim, não se deve elogiar uma pessoa, se tal elogio não for sincero; também não se faça algum convite se, de fato, ele não nascer do coração; enfim, evitem-se comentários que não expressem a verdade. Na linguagem de Jesus, trata-se de se ter uma linguagem que seja na linha do “sim, sim, não, não” (cf. Mt 5,37).
Quando aborda a verdade, o Catecismo da Igreja Católica nos ensina que ela é uma virtude “que consiste em mostrar-se verdadeiro no agir e no falar, guardando-se da duplicidade, da simulação e da hipocrisia” (nº 2468). Santo Agostinho, sempre atento ao comportamento das pessoas, comentou que ao longo de sua vida havia encontrado muitas pessoas que enganavam os outros; nunca encontrou alguém que gostasse de ser enganado.
A Palavra de Deus nos ensina que somos continuamente tentados a desviar nosso olhar do Deus vivo e verdadeiro para dirigi-lo aos ídolos, à mentira. Ora, quando trocamos “a verdade de Deus pela mentira” (Rm 1,25) a nossa capacidade para conhecer a verdade fica ofuscada. Sem a verdade, não seremos livres: “A verdade vos libertará” (Jesus Cristo).
Volto à questão das formalidades. Um dos maiores teólogos da Igreja, Santo Tomás de Aquino (†1274), afirmou que “Os homens não poderiam viver juntos se não tivessem confiança recíproca; quer dizer, se não manifestassem a verdade uns aos outros”.
Claro que deve haver equilíbrio entre o que deve ser expresso e o que não convém expressar; entre o que é preciso ser dito e o que é segredo, que deve ser guardado. Mas vale o princípio, também de Santo Tomás: “Um homem deve honestamente a outro a manifestação da verdade”.
O discípulo de Cristo procura viver na verdade, “isto é, na simplicidade de uma vida conforme o exemplo do Senhor, permanecendo em sua verdade” (CIC 2470). São João nos lembra de que, “Se dissermos que estamos em comunhão com ele e andamos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade” (1Jo 1,6).
O mundo de Deus é o mundo da verdade, da justiça e do amor. Se esse é o mundo de Deus, tal deve ser, também, o nosso mundo.
Dom Murilo Krieger
Arcebispo de Salvador (BA)
Arcebispo de Salvador (BA)
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