O
CHAMADO UNIVERSAL DOS CRISTÃOS À SANTIDADE
Há poucos dias comemoramos o quinquagésimo
aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II e entramos no ano jubilar
da misericórdia, pelo qual, Santo Padre, somos-lhe muito gratos. Devemos dizer
que não é nem um pouco arbitrária a ligação existente entre o tema da
misericórdia e o concílio vaticano II. No discurso de abertura, no dia 11 de
outubro de 1962, São João XXIII indicou na misericórdia a novidade e o estilo
do concílio:
“Sempre, escrevia, a Igreja se opôs aos erros;
muitas vezes, também, condenou-os com a máxima severidade. Agora, porém, a
Esposa de Cristo prefere usar o remédio da misericórdia, mais do que o da
severidade”[1]
Em certo sentido, à distância de meio século, o ano
da misericórdia celebra a fidelidade da Igreja àquela sua promessa. Às vezes,
surge a pergunta de se insistir muito na misericórdia não é correr o risco de
se esquecer o outro atributo de Deus que é a justiça. Mas, a justiça de Deus,
não só não contradiz a sua misericórdia, mas consiste justamente nessa! Deus se
faz justiça, fazendo misericórdia. Deus é amor; por isso faz justiça a si mesmo
– ou seja, se demonstra verdadeiramente por aquilo que é – quando faz
misericórdia. Bem antes de Lutero Santo Agostinho tinha escrito: ‘A justiça de
Deus’ é aquela, pela qual, por sua graça, Deus nos torna justos, exatamente
como ‘a salvação do Senhor’ (salus Domini) (Sl 3, 9) é aquela, pela qual, Deus
nos salva[2]”.
Isso não esgota todos os sentidos da expressão
“justiça de Deus”, mas é certamente o significado principal dela. Um dia
existirá, também, uma justiça de Deus retributiva, que dará a cada um de acordo
com os próprios méritos (cf Rom 2, 5-10); mas, não é dessa que o Apóstolo fala
quando diz: “Agora se manifestou a justiça de Deus” (Rom 3, 21). Aquela é um
evento futuro, esta um evento presente. Em outro lugar o próprio apóstolo
explica assim: “Quando se manifestou a bondade de Deus e o seu amor pelos
homens, ele nos salvou, não em virtude de obras de justiça realizadas, mas pela
sua misericórdia” (Tt 3, 4-5).
1. “Sejam
santos porque eu, vosso Deus, sou santo”
O tema desta meditação é o capítulo V da Lumen
gentium, intitulado “A vocação universal à santidade na Igreja”. Nas histórias
do Concílio este capítulo só é lembrado por uma questão, digamos, de redação.
Os vários Padres conciliares, membros de ordens religiosas, pediram com
insistência que fosse dedicado um tratado a parte sobre a presença dos religiosos
na Igreja, como tinha sido feito para os leigos. Foi assim que aquilo que tinha
sido lembrado até então como um capítulo unicamente relacionado à santidade de
todos os membros da Igreja, foi dividido em dois capítulos, dos quais o segundo
(VI da LG), dedicado especificamente aos religiosos[3].
O chamado à santidade foi formulado desde o início
com estas palavras:
“Por isso, todos na Igreja, quer pertençam à
Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a
palavra do Apóstolo: «esta é a vontade de Deus, a vossa santificação»” (1 Tess.
4,3; cfr. Ef. 1,4)[4].
Este chamado à santidade é o ponto mais necessário
e urgente do concílio. Sem isso, todos os outros requisitos são impossíveis ou
inúteis. De fato, normalmente, isso é deixado de lado porque só Deus e a
consciência que a exigem e pedem, e não as pressões ou interesses de grupos
humanos particulares da Igreja. Às vezes, parece que em certos ambientes e em
certas famílias religiosas, depois do concílio, focaram mais no compromisso de
“fazer os santos” do que no de “fazer-se santos”, ou seja, mais esforço para
levar aos altares os próprios fundadores ou correligionários do que em imitar
os exemplos e as virtudes.
A primeira coisa que deve ser feita, quando se fala
de santidade, é libertar esta palavra da submissão e do medo que dá, por causa
de certas deturpações que fizeram dela. A santidade pode acarretar fenômenos e
provas extraordinárias, mas não se identifica com essas coisas. Se todos são
chamados à santidade, é porque, devidamente compreendida, ela está ao alcance
de todos, faz parte da normalidade da vida cristã. Os santos são como as
flores: não existem só aqueles que são colocados no altar. Quantos deles
desabrocham e morrem escondidos, depois de terem lançado silenciosamente seu
perfume no ambiente! Quantas dessas flores escondidas floresceram e florescem
continuamente na Igreja
A motivação de fundo da santidade é clara desde o
início e é que Deus é santo: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou
santo" (Lv 19, 2). A santidade é a síntese, na Bíblia, de todos os
atributos de Deus. Isaías chama Deus de "o Santo de Israel", aquele
que Israel conheceu como o Santo. “Santo, santo, santo”, Qadosh, qadosh,
qadosh, é o grito que acompanha a manifestação de Deus no momento do seu
chamado (Is 6, 3). Maria reflete fielmente essa ideia de Deus dos profetas e
dos Salmos, quando exclama no Magnificat: "Santo é o seu nome".
Quanto ao conteúdo da ideia de santidade, o termo
bíblico qadosh sugere a ideia de separação, de diversidade. Deus é santo porque
é o totalmente outro com relação a tudo o que o homem pode pensar, dizer ou
fazer. É absoluto, no sentido etimológico de ab-solutus, solto de tudo e à
parte. É o transcendente, no sentido de que está por acima de todas as nossas
categorias. Tudo isso no sentido moral, antes mesmo que metafísico; diz
respeito ao atuar de Deus e não só ao seu ser. Na Escritura define-se como
“santos” principalmente os juízos de Deus, as suas obras e os seus caminhos[5].
Contudo, santo não é um conceito principalmente
negativo, que indica separação, ausência de mal e de mistura em Deus; é um
conceito sumamente positivo. Indica uma “pura plenitude”. Em nós, a “plenitude”
nunca se mistura totalmente com a “pureza”. Sempre conquistamos a nossa pureza,
purificando-nos e tirando o mal das nossas ações (Is 1, 16). Em Deus não;
pureza e plenitude coexistem e constituem juntas a suma simplicidade de Deus. A
Bíblia expressa perfeitamente esta ideia de santidade quando fala que a Deus
"nada pode ser acrescentado e nada tirado" (Sir 42, 21). Em quanto
suma pureza, nada lhe deve ser tirado; em quanto suma plenitude, nada lhe pode
ser acrescentado.
Quando se procura entender como o homem entra na
esfera da santidade de Deus e o que significa ser santo, logo prevalece, no
Antigo Testamento, a ideia ritualística. Os trâmites da santidade de Deus são
objetos, lugares, ritos, prescrições. Seções inteiras do Êxodo e do Levítico se
intitulam “códigos de santidade” ou “lei de santidade”. A santidade está
contida em um código de leis. É tal esta santidade que é profanada se alguém se
aproxima do altar com uma deformidade física ou depois de ter tocado num animal
imundo: "santificai-vos e sede santos ..., não se contaminem com qualquer
um destes animais" (Lv 11, 44; 21, 23).
É possível ler diferentes vozes nos profetas e nos
salmos. À pergunta; “Quem subirá o monte do Senhor, quem entrará em sua santa
habitação?”, ou: “Quem dentre nós pode habitar com um fogo abrasador?",
responde-se com indicações requintadamente morais: "Quem tem mãos puras e
inocente coração”, e “quem caminha na justiça e fala com lealdade” (cf. Sl 24,
3; Is 33, 14 s.). São vozes sublimes que, porém, permanecem isoladas. Ainda no
tempo de Jesus, nos fariseus e em Qumram prevalece a ideia de que a santidade e
a justiça consistem na pureza ritual e na observância de certos preceitos,
especialmente o do Sábado, embora se, na teoria, ninguém esquece que o primeiro
e maior mandamento é o do amor a Deus e ao próximo.