O
CHAMADO UNIVERSAL DOS CRISTÃOS À SANTIDADE
Há poucos dias comemoramos o quinquagésimo
aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II e entramos no ano jubilar
da misericórdia, pelo qual, Santo Padre, somos-lhe muito gratos. Devemos dizer
que não é nem um pouco arbitrária a ligação existente entre o tema da
misericórdia e o concílio vaticano II. No discurso de abertura, no dia 11 de
outubro de 1962, São João XXIII indicou na misericórdia a novidade e o estilo
do concílio:
“Sempre, escrevia, a Igreja se opôs aos erros;
muitas vezes, também, condenou-os com a máxima severidade. Agora, porém, a
Esposa de Cristo prefere usar o remédio da misericórdia, mais do que o da
severidade”[1]
Em certo sentido, à distância de meio século, o ano
da misericórdia celebra a fidelidade da Igreja àquela sua promessa. Às vezes,
surge a pergunta de se insistir muito na misericórdia não é correr o risco de
se esquecer o outro atributo de Deus que é a justiça. Mas, a justiça de Deus,
não só não contradiz a sua misericórdia, mas consiste justamente nessa! Deus se
faz justiça, fazendo misericórdia. Deus é amor; por isso faz justiça a si mesmo
– ou seja, se demonstra verdadeiramente por aquilo que é – quando faz
misericórdia. Bem antes de Lutero Santo Agostinho tinha escrito: ‘A justiça de
Deus’ é aquela, pela qual, por sua graça, Deus nos torna justos, exatamente
como ‘a salvação do Senhor’ (salus Domini) (Sl 3, 9) é aquela, pela qual, Deus
nos salva[2]”.
Isso não esgota todos os sentidos da expressão
“justiça de Deus”, mas é certamente o significado principal dela. Um dia
existirá, também, uma justiça de Deus retributiva, que dará a cada um de acordo
com os próprios méritos (cf Rom 2, 5-10); mas, não é dessa que o Apóstolo fala
quando diz: “Agora se manifestou a justiça de Deus” (Rom 3, 21). Aquela é um
evento futuro, esta um evento presente. Em outro lugar o próprio apóstolo
explica assim: “Quando se manifestou a bondade de Deus e o seu amor pelos
homens, ele nos salvou, não em virtude de obras de justiça realizadas, mas pela
sua misericórdia” (Tt 3, 4-5).
1. “Sejam
santos porque eu, vosso Deus, sou santo”
O tema desta meditação é o capítulo V da Lumen
gentium, intitulado “A vocação universal à santidade na Igreja”. Nas histórias
do Concílio este capítulo só é lembrado por uma questão, digamos, de redação.
Os vários Padres conciliares, membros de ordens religiosas, pediram com
insistência que fosse dedicado um tratado a parte sobre a presença dos religiosos
na Igreja, como tinha sido feito para os leigos. Foi assim que aquilo que tinha
sido lembrado até então como um capítulo unicamente relacionado à santidade de
todos os membros da Igreja, foi dividido em dois capítulos, dos quais o segundo
(VI da LG), dedicado especificamente aos religiosos[3].
O chamado à santidade foi formulado desde o início
com estas palavras:
“Por isso, todos na Igreja, quer pertençam à
Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a
palavra do Apóstolo: «esta é a vontade de Deus, a vossa santificação»” (1 Tess.
4,3; cfr. Ef. 1,4)[4].
Este chamado à santidade é o ponto mais necessário
e urgente do concílio. Sem isso, todos os outros requisitos são impossíveis ou
inúteis. De fato, normalmente, isso é deixado de lado porque só Deus e a
consciência que a exigem e pedem, e não as pressões ou interesses de grupos
humanos particulares da Igreja. Às vezes, parece que em certos ambientes e em
certas famílias religiosas, depois do concílio, focaram mais no compromisso de
“fazer os santos” do que no de “fazer-se santos”, ou seja, mais esforço para
levar aos altares os próprios fundadores ou correligionários do que em imitar
os exemplos e as virtudes.
A primeira coisa que deve ser feita, quando se fala
de santidade, é libertar esta palavra da submissão e do medo que dá, por causa
de certas deturpações que fizeram dela. A santidade pode acarretar fenômenos e
provas extraordinárias, mas não se identifica com essas coisas. Se todos são
chamados à santidade, é porque, devidamente compreendida, ela está ao alcance
de todos, faz parte da normalidade da vida cristã. Os santos são como as
flores: não existem só aqueles que são colocados no altar. Quantos deles
desabrocham e morrem escondidos, depois de terem lançado silenciosamente seu
perfume no ambiente! Quantas dessas flores escondidas floresceram e florescem
continuamente na Igreja
A motivação de fundo da santidade é clara desde o
início e é que Deus é santo: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou
santo" (Lv 19, 2). A santidade é a síntese, na Bíblia, de todos os
atributos de Deus. Isaías chama Deus de "o Santo de Israel", aquele
que Israel conheceu como o Santo. “Santo, santo, santo”, Qadosh, qadosh,
qadosh, é o grito que acompanha a manifestação de Deus no momento do seu
chamado (Is 6, 3). Maria reflete fielmente essa ideia de Deus dos profetas e
dos Salmos, quando exclama no Magnificat: "Santo é o seu nome".
Quanto ao conteúdo da ideia de santidade, o termo
bíblico qadosh sugere a ideia de separação, de diversidade. Deus é santo porque
é o totalmente outro com relação a tudo o que o homem pode pensar, dizer ou
fazer. É absoluto, no sentido etimológico de ab-solutus, solto de tudo e à
parte. É o transcendente, no sentido de que está por acima de todas as nossas
categorias. Tudo isso no sentido moral, antes mesmo que metafísico; diz
respeito ao atuar de Deus e não só ao seu ser. Na Escritura define-se como
“santos” principalmente os juízos de Deus, as suas obras e os seus caminhos[5].
Contudo, santo não é um conceito principalmente
negativo, que indica separação, ausência de mal e de mistura em Deus; é um
conceito sumamente positivo. Indica uma “pura plenitude”. Em nós, a “plenitude”
nunca se mistura totalmente com a “pureza”. Sempre conquistamos a nossa pureza,
purificando-nos e tirando o mal das nossas ações (Is 1, 16). Em Deus não;
pureza e plenitude coexistem e constituem juntas a suma simplicidade de Deus. A
Bíblia expressa perfeitamente esta ideia de santidade quando fala que a Deus
"nada pode ser acrescentado e nada tirado" (Sir 42, 21). Em quanto
suma pureza, nada lhe deve ser tirado; em quanto suma plenitude, nada lhe pode
ser acrescentado.
Quando se procura entender como o homem entra na
esfera da santidade de Deus e o que significa ser santo, logo prevalece, no
Antigo Testamento, a ideia ritualística. Os trâmites da santidade de Deus são
objetos, lugares, ritos, prescrições. Seções inteiras do Êxodo e do Levítico se
intitulam “códigos de santidade” ou “lei de santidade”. A santidade está
contida em um código de leis. É tal esta santidade que é profanada se alguém se
aproxima do altar com uma deformidade física ou depois de ter tocado num animal
imundo: "santificai-vos e sede santos ..., não se contaminem com qualquer
um destes animais" (Lv 11, 44; 21, 23).
É possível ler diferentes vozes nos profetas e nos
salmos. À pergunta; “Quem subirá o monte do Senhor, quem entrará em sua santa
habitação?”, ou: “Quem dentre nós pode habitar com um fogo abrasador?",
responde-se com indicações requintadamente morais: "Quem tem mãos puras e
inocente coração”, e “quem caminha na justiça e fala com lealdade” (cf. Sl 24,
3; Is 33, 14 s.). São vozes sublimes que, porém, permanecem isoladas. Ainda no
tempo de Jesus, nos fariseus e em Qumram prevalece a ideia de que a santidade e
a justiça consistem na pureza ritual e na observância de certos preceitos,
especialmente o do Sábado, embora se, na teoria, ninguém esquece que o primeiro
e maior mandamento é o do amor a Deus e ao próximo.
2. A
novidade de Cristo
Passando agora para o Novo Testamento, vemos que a
definição de "nação santa" estende-se bem cedo aos cristãos. Para
Paulo, os batizados são "santos por vocação”, ou “chamados a ser
santos”[6]. Ele designa habitualmente os batizados com o termo “os santos”. Os
fieis são “escolhidos para ser santos e imaculados diante dele no amor"
(Ef 1, 4). Mas sob a aparente identidade de terminologia vemos mudanças
profundas. Santidade não é mais um fato ritual ou legal, mas moral, até mesmo
ontológico. Não reside nas mãos, mas no coração; não se decide fora, mas dentro
do homem e resume-se na caridade. "Não é o que entra pela boca que
contamina o homem; o que sai da boca, isso contamina o homem "(Mt 15, 11).
Os mediadores da santidade de Deus não são mais
lugares (o templo de Jerusalém ou o monte Carizim), ritos, objetos e leis, mas
é uma pessoa, Jesus Cristo. Ser santo não consiste tanto em um estar separado
disto ou daquilo, mas em um estar unido a Jesus Cristo. Em Jesus Cristo está a
própria santidade de Deus que nos alcança pessoalmente, não em uma luz distante
dele. "Tu és o Santo de Deus!": duas vezes ressoa esta exclamação
dirigida a Jesus nos Evangelhos (Jo 6, 69; Lc 4, 34). O livro do Apocalipse
chama Cristo simplesmente "O Santo” (Ap 3,7) e a liturgia ecoa exclamando
no Glória "Tu solus Sanctus", Só Tu és o Santo.
Há duas maneiras de entrar em contato com a
santidade de Cristo e esta é comunicada a nós: por apropriação e por imitação.
Dessas, a mais importante é a primeira que se realiza na fé e por meio dos sacramentos.
A santidade é, antes de mais nada, graça e é obra de toda a Trindade. Porque,
de acordo com o Apóstolo, nós pertencemos a Cristo mais do que a nós mesmos
(cf. 1 Cor 6, 19-20), segue-se que, inversamente, a santidade de Cristo nos
pertence mais do que a nossa própria santidade. "O que é de Cristo -
escreve o teólogo bizantino Nicolau Cabasilas - é mais nosso do que aquilo que
é nosso”[7]. Essa é a ideia genial, ou ato corajoso, que temos que realizar na
vida espiritual. A sua descoberta não se faz, geralmente, no começo, mas no
final do próprio itinerário espiritual; não no noviciado, mas mais tarde,
quando já se experimentou todas as outras estradas e vemos que não levam muito
longe.
Paulo nos ensina como fazer este “ato corajoso”,
quando declara solenemente não querer ser encontrado com a sua própria justiça,
ou santidade, resultante do cumprimento da lei, mas apenas com aquela que
deriva da fé em Cristo (cf. Fl 3, 5-10). Cristo, diz, se tornou para nós
"justiça, santificação e redenção" (1 Cor 1,30). "Para
nós": portanto, podemos exigir a sua santidade como nossa em todos os
efeitos. Um ato corajoso é também o que faz São Bernardo, quando grita: “eu,
quando me falta, o aproprio (literalmente, o usurpo) do lado de Cristo”[8].
“Usurpar” a santidade de Cristo, “arrebatar o reino dos céus”! Isso é ato
corajoso que deve ser repetido muitas vezes na vida, especialmente, no momento
da comunhão eucarística.
Dizer que nós participamos da santidade de Cristo,
é como dizer que participamos do Espírito Santo que vem dele. Ser ou viver “em
Cristo Jesus” equivale, para São Paulo, ser ou viver “no Espírito Santo”.
"A partir disso - por sua vez, escreve São João – se reconhece que nós
permanecemos nele e ele em nós: ele nos fez o dom do seu Espírito” (1 Jo 4,
13). Cristo permanece em nós e nós permanecemos em Cristo, graças ao Espírito
Santo.
É o Espírito Santo, portanto, que nos santifica.
Não o Espírito Santo no geral, mas o Espírito Santo que foi em Jesus de Nazaré,
que santificou a sua humanidade, que se recolheu nele como em um vaso de
alabastro e que, da sua cruz e em Pentecostes, ele derramou sobre a Igreja. Por
isso, a santidade que está em nós não é uma segunda e diferente santidade, mas
é a mesma santidade de Cristo. Nós somos verdadeiramente “santificados em
Cristo Jesus” (l Cor 1,2). Como no batismo, o corpo do homem está imerso e
lavado na água, assim a sua alma é, por assim dizer, batizada na santidade de
Cristo: “Fostes lavados, fostes santificados, fostes justificados no nome do
Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus”, diz o Apóstolo referindo-se
ao batismo (1 Cor 6,11).
Ao lado deste meio fundamental da fé e dos
sacramentos, deve estar também a imitação, as obras, o esforço pessoal. Não
como meio independente e diferente, mas como o único meio adequado de
manifestar a fé, traduzindo-a em ato. A oposição fé – obras é um falso problema
que se manteve por causa da controvérsia histórica. As boas obras, sem a fé,
não são obras “boas” e a fé sem as obras boas não é verdadeira fé. Basta que
por “obras boas” não se entendam principalmente (como infelizmente era no tempo
de Lutero) indulgências, peregrinações e práticas piedosas, mas a observância
dos mandamentos, especialmente o do amor fraterno. Jesus disse que no juízo
final alguns serão excluídos do Reino por não terem vestido o nu e alimentado o
faminto. Não há salvação, portanto, pelas obras boas, mas não há salvação sem
as obras boas. Podemos resumir assim a doutrina do concílio de Trento.
Acontece igual à vida física. A criança não pode
fazer absolutamente nada para ser concebida no seio da mãe; precisa do amor dos
pais (pelos menos foi assim até hoje!). Uma vez que nasceu, deve fazer
trabalhar os seus pulmões para respirar, sugar o leite; em suma, deve
trabalhar, senão a vida que recebeu morre. A frase de São Tiago: “A fé, sem as
obras é morta” (Tg 3, 26) deve ser entendida neste sentido, isto é, no
presente: a fé sem as obras morre.
No Novo Testamento, dois verbos são usados para
referir-se à santidade, um no indicativo e um no imperativo: “Sois Santos”,
“Sede santos”. Os cristãos são santificados e santificantes[9]. Quando Paulo
escreve: “Esta é a vontade de Deus, a vossa santificação”, é claro que se
refere justamente a esta santidade que é fruto de compromisso pessoal.
Acrescenta, de fato, como para explicar em que consiste a santificação da qual
está falando: “Que vos abstenhais da imodéstia, que cada um saiba manter o
próprio corpo com santidade e respeito” (cf. 1 Ts 4: 3-9).
O nosso texto da Lumen Gentium enfatiza claramente
estes dois aspectos, um objetivo e outro subjetivo, da santidade, baseados
respectivamente na fé e nas obras. Diz:
"Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e
justificados em Jesus Cristo, não segundo as suas obras, mas segundo o desenho
e a graça Dele, no batismo da fé foram feitos realmente filhos de Deus e
coparticipantes da natureza divina, e, por isso, realmente santos. Esses devem,
portanto, com a ajuda de Deus, manter e aperfeiçoar, vivendo-a, a santidade que
receberam”[10].
Porque, de acordo com Lutero, a Idade Média tinha
se desviado sempre mais para acentuar o lado de Cristo como modelo, e ele
acentuou o outro, afirmando que ele é dom e que este dom corresponde à fé
aceitar”[11]. Hoje estamos todos de acordo que não se deve contrapor as duas
coisas, mas mantê-las unidas. Cristo é, antes de mais nada, dom a ser recebido
por meio da fé, mas é também modelo a ser imitado na vida. Ele próprio fala
isso no Evangelho: "Eu vos dei o exemplo, para que façais como eu vos fiz
(Jo 13, 15); "Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração" (Mt
11, 29).
3. Santos ou
fracassados
Este é o ideal novo de santidade do Novo
Testamento. Um ponto permanece inalterado, e é possível aprofundá-lo na
passagem do Antigo ao Novo Testamento e é a motivação de fundo do chamado à santidade,
o “porquê” é necessário ser santos: porque Deus é santo. “À imagem do santo que
vos chamou, sede também vós santos". Os discípulos de Cristo devem amar os
inimigos, “para ser filhos do Pai celeste que faz chover sobre justos e sobre
injustos" (Mt 5, 45). A santidade não é, portanto, uma imposição, um fardo
que nos é colocado sobre os ombros, mas um privilégio, um dom, uma honra
suprema. Uma obrigação, sim, mas que deriva da nossa dignidade de filhos de
Deus. Aplica-se à ela, no sentido pleno, o ditado francês "noblesse
oblige".
A santidade é exigida pelo próprio ser da criatura
humana; não diz respeito aos acidentes, mas à sua própria essência. Ele deve
ser santo para realizar a sua identidade profunda que é de ser “a imagem e
semelhança de Deus”. Para a Escritura, o homem não é principalmente, como para
a filosofia grega, o que é determinado a ser pelo seu nascimento (physis), ou
seja, um “animal racional”, mas o que é chamado a se tornar, com o exercício da
sua liberdade, na obediência a Deus. Não é tanto natureza, mas vocação.
Se, portanto, somos "chamados a ser
santos", se somos "santos por vocação”, então fica claro que seremos
pessoas verdadeiras, realizadas, na medida em que formos pessoas santas. Caso
contrário, seremos pessoas fracassadas. O contrário de santo não é pecador, mas
fracassado! Pode-se fracassar na vida de muitas formas, mas são fracassos
relativos que não comprometem o essencial; aqui se fracassa radicalmente
naquilo que se é, não só naquilo que se faz. Tinha razão Madre Teresa quando
perguntada à queima roupa por uma jornalista o que ela sentia quando era
aclamada santa por todo o mundo, respondeu: “A santidade não é um luxo, é uma
necessidade”.
O filósofo Pascal formulou o princípio das três
ordens ou níveis de grandeza: a ordem dos corpos ou da matéria, a ordem da
inteligência e a ordem da santidade. Uma distância quase infinita separa a
ordem da inteligência da dos corpos, mas uma distância “infinitamente mais
infinita” separa a ordem da santidade da ordem da inteligência. Os genes não
precisam das grandezas materiais; não podem tirar ou acrescentar nada a eles.
Da mesma forma, os santos não precisam das grandezas intelectuais; a sua
grandeza é de outra ordem. “Eles são vistos por Deus e pelos anjos, não pelos
corpos e pelas mentes curiosas; basta-lhes Deus”.
Este princípio permite avaliar da forma certa as
coisas e as pessoas que nos rodeiam. A maioria das pessoas permanecem paradas
no primeiro nível e nem sequer suspeitam da existência de um plano superior.
São aqueles que passam a vida preocupados só em acumular riquezas, cultivar a
beleza física, ou aumentar o próprio poder. Outros acreditam que o valor
supremo e o vértice da grandeza seja o da inteligência. Procuram se tornar
célebres no campo das letras, da arte, do pensamento. Só poucos sabem que existe
um terceiro nível de grandeza, a santidade.
Esta grandeza é superior porque eterna, porque é
tal aos olhos de Deus que é a verdadeira medida da grandeza e também porque
realiza o que há de mais nobre no ser humano, ou seja, a sua liberdade. Não
depende de nós nascermos fortes ou fracos, bonitos ou menos bonitos, ricos ou
pobres, inteligentes ou pouco inteligentes; depende de nós, sim, sermos
honestos ou desonestos, bons ou maus, santos ou pecadores. Tinha razão o musico
Gounod, ele próprio um gênio, quando dizia que “um gota de santidade vale mais
do que oceano de gênio[12]”.
A boa notícia, sobre a santidade, é que não se é
obrigado a escolher um destes três tipos de grandeza. Pode-se ser santos em
cada um deles. Houve, e há santos entre os ricos e entre os pobres, entre os
fortes e entre os fracos, entre os gênios e as pessoas sem cultura. Ninguém
está excluído desta magnitude do terceiro nível.
4. Voltar ao
caminho da santidade
O nosso tender à santidade é semelhante ao caminho
do povo eleito no deserto. Esse também é um caminho feito de contínuas paradas
e partidas. De tanto em tanto o povo parava e acampava; ou porque estava
cansado, ou porque tinha encontrado água e comida, ou simplesmente porque cansa
caminhar sempre. Mas eis que chega de improviso a ordem do Senhor a Moisés de
levantar as tendas e recomeçar a caminhada: “Levante, saia daqui, tu e o teu
povo, rumo à terra que prometi” (Ex 15, 22; 17, 1).
Na vida da Igreja, essas chamadas para voltar à
caminhar são ouvidas, especialmente, no início dos tempos fortes do ano
litúrgico ou por ocasiões particulares como é o jubileu da misericórdia divina
aberto recentemente pelo Papa. Para cada um de nós, tomados individualmente, o
tempo de levantar as tendas e recomeçarmos a caminhada rumo a santidade é
quando nos damos conta, no íntimo, da misteriosa chamada que vem da graça. No
começo, há como que um momento de parada. A pessoa para no turbilhão de suas
ocupações, toma, como se costuma dizer, as distâncias de tudo para olhar a sua
vida quase que de fora ou do alto, sub specie aeternitatis. Surgem, então, as
grandes perguntas: “Quem sou? O que quero? O que estou fazendo da minha vida?”
Embora fosse um monge, São Bernardo teve uma vida
muito movimentada: concílios que presidiu, bispos e abades que reconciliou,
cruzadas que pregou. De vez em quando, diz o seu biógrafo, ele parava e, quase
entrando em diálogo consigo mesmo, se perguntava: “Bernardo, a que viestes?”
(Bernarde, ad quid venisti?)[13]. Por que deixastes o mundo e entrastes no
mosteiro? Nós podemos imitá-lo; pronunciar o nosso nome (também isso serve) e
perguntar-nos: Por que es cristão? Por que es sacerdote ou religioso? Estás
realizando aquilo pelo qual estás no mundo?
No Novo Testamento se descreve um tipo de conversão
que poderíamos definir como a conversão-despertar, ou a conversão da
mediocridade. No Apocalipse se leem sete cartas escritas aos anjos (segundo
alguns exegetas aos bispos) de várias outras Igrejas da Ásia Menor. Na carta ao
anjo de Éfeso, ele começa reconhecendo o que o destinatário fez de bom:
“Conheço as tuas obras, o teu cansaço e a tua constância... És constante e tens
sofrido muito pelo meu nome, sem cansar-te”. Depois passa a listar o que, pelo
contrário, não lhe agrada: “Abandonastes o teu primeiro amor!”. E eis que, neste
ponto, ressoa, como uma trombeta entre adormecidos, o grito do Ressuscitado:
Metanòeson, ou seja, converte-te! Levanta-te! Sacode-te! (Ap 2, 1 ss.).
Essa é a primeira das sete cartas. Muito mais
severa é a última dessas, aquela dirigida ao anjo da Igreja de Laodiceia:
“Conheço as tuas obras: tu não eres nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou
quente!”. Converte-te e volte a ser zeloso e fervoroso: Zeleue oun kai
metanòeson! (Ap 3,15 ss). Também esta, como todas as outras, termina com aquele
misterioso aviso: "Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às
igrejas" (Ap 3, 22).
Santo Agostinho nos dá uma dica: começar a
despertar em nós o desejo de santidade: “Toda a vida do bom cristão – escreve –
consiste em um santo desejo [ou seja, em um desejo de santidade]: Tota vita
christiani boni, sanctum desiderium est”[14]. Jesus disse: “Bem aventurados
aqueles que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5, 6). A
justiça bíblica, se sabe, é a santidade. Nos deixamos, por isso, com uma
pergunta para meditar: “Eu tenho fome e sede de santidade, ou estou me
contentando com a mediocridade?”
Pe. Raniero
Cantalamessa, OFMCap,
pregador da casa pontifícia
_____________________________________________
[1] Concilio Vaticano II. Documenti, Edizioni
Dehoniane, Bologna 1967, p.47.
[2] S. Agostino, Lo Spirito e la lettera, 32,56 (PL
44, 237).
[3] Cf. Storia del concilio Vaticano II, organizado
por G. Alberigo, vol. IV,
Bologna 1999, pp. 68 ss.
[4]
Lumen gentium, 39.
[5]
Cf. Dt 32,4; Dn 3, 27; Ap 16, 7.
[6] Cf. Rom 1, 7 e 1 Cor 1, 2.
[7] N. Cabasilas, Vita in Cristo IV, 6 (PG 150,
613).
[8] S. Bernardo, Omelie sul Cantico, 61, 4-5 (PL
183, 1072).
[9]
Cf. 1 Cor 1, 2; 1 Pt 1,2; 2, 15.
[10]
Lumen gentium, 40
[11]
Cf. Søeren Kierkegaard, Diario X 1,A 154 (ed. Organizada por C. Fabro,
Brescia 1962, vol. I, p. 821).
[12] B. Pascal, Pensieri 593.
[13] Guglielmo di St. Thierry, Vita prima, I, 4 (PL
185, 238).
[14]
S. Agostinho, In Epist. Joh. 4, 6 (PL 35, 2008).
_______________________________
ZENIT
Tradução:
Thácio Siqueira
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