Nos autos de Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26, de relatoria do Ministro Celso
de Mello, o Supremo Tribunal Federal decidiu, já por maioria de votos, que as
chamadas condutas de homofobia ou transfobia são consideradas como crimes de
racismo, ao menos até que o Poder Legislativo emita normativa específica sobre
o tema. [1]
Vale advertir, desde logo, que este texto não
tem o objetivo de admitir, ou pior, defender a legitimidade ou legalidade de
qualquer prática discriminatória contra homossexuais ou transexuais. A conduta
preconceituosa ou discriminatória contra qualquer pessoa, por que motivo for, é
sempre e invariavelmente abominável e passível de sanções morais e legais.
O grande problema é que a Lei de Racismo (Lei
7.716/89) trata tão somente do preconceito e discriminação de “raça, cor, etnia
e religião”. Nada mais evidente do que o fato de que o preconceito referente à
orientação sexual, à homossexualidade ou à transexualidade, não se coaduna com
nenhuma das hipóteses taxativas da lei. Ademais, é preciso ter prudência com
essa interpretação ampliativa para outros preconceitos ou discriminações em equiparação
com o racismo, mesmo por via legislativa. Ocorre que se há uma excessiva
ampliação, a tendência é que outros grupos venham a pleitear o mesmo
reconhecimento em uma espécie de processo que caracteriza o que já foi chamado
de “Cultura da Vitimização”. [2] De repente poderemos nos deparar com a
criminalização qual racismo da obesofobia, da esqueleticofobia, da
gerontofobia, da misoginia, da nanofobia e da gigantofobia (afinal, os anões e
as pessoas de baixa estatura, assim como os gigantes também são gente), da veganofobia, da alopeciofobia (Alopecia Areata é uma
doença que faz faltarem pelos em regiões do corpo, no corpo todo ou ao menos na
cabeça – os carecas também são vítimas de preconceito), dentre outras situações
imprevisíveis “ad infinitum”.
É bem verdade que a Constituição Federal
considera ilegal qualquer forma de discriminação, como resta claro diante do
disposto no artigo 3º, IV e artigo 5º., XLI. Isso não deixa dúvidas quanto à
existência de um bem jurídico constitucional a ser tutelado pelo Direito
interno. Entretanto, logo de início, há que apontar para o fato de que a
existência de um bem jurídico constitucional é fator necessário, mas não
suficiente, por si só, para indicar a via da proteção pelo instrumento de
“ultima ratio” que é o Direito Penal.
É bom lembrar com Tavares que a própria gênese
do instituto do bem jurídico – penal está ligada ao intuito de limitar e não de
fundamentar o “ius puniendi” estatal. [3]
Assim sendo, a existência de um bem jurídico
constitucionalmente tutelado, não impõe a proteção necessariamente pela via
penal. A tutela de dado bem jurídico (e.g. a vida humana) pelo Direito Penal,
não se dá simplesmente porque há sua previsão constitucional, mas porque essa
espécie de proteção é “considerada concretamente necessária para aquele bem”.
[4]
Ainda que essa proteção pela via extrema da
criminalização de condutas seja considerada viável e necessária, tal função,
qual seja, a de prever crimes e penas, compete ao Poder Legislativo e não ao
Poder Judiciário ou ao Poder Executivo. Nesse passo a divisão de poderes deve
ser respeitada de forma bastante rígida. Quando há invasão de searas, seja pelo
Judiciário, seja pelo Executivo, descamba-se para o mais puro totalitarismo,
com uma Ditadura Política ou uma Ditadura do Judiciário.
Como bem aduz Frankenberg:
“Segundo os paradigmas liberais, a separação
dos poderes estatais não é apenas uma questão de divisão do trabalho na
organização estatal; a ela cabe também uma função de garantia da liberdade.
Isso se tornou inquestionável desde o Segundo Tratado sobre o governo de Locke
e Do Espírito das Leis de Montesquieu. Desde a Declaração Francesa de 1789, a
separação dos poderes – a par da garantia dos direitos do homem e dos cidadãos
– é considerada elemento constituinte da Constituição democrática e elemento
central da promessa de coerência e transparência da Modernidade”. [5]
Foi exatamente com vistas a uma reação aos abusos inquisitoriais, seja
por excesso, seja por leniência, que se moldou, após a Revolução Francesa, a
ideia matriz de que “o juiz é um funcionário que diz a lei, não que a faz”, de
forma que:
“posto diante de um caso concreto a ser
julgado, ele procura, entre as normas, aquela na qual tal caso recai. No
limite, não encontrando uma, renuncia ao juízo porque ‘o fato não constitui
crime’”. [6]
Desde então o Princípio da Legalidade ou da Reserva Legal exerce papel
central na conformação do Direito Penal (artigo 5º., XXXIX, CF e artigo 1º.,
CP).
Mas, o que ocorre quando a Suprema Corte,
supostamente guardiã da constitucionalidade, simplesmente despreza a
tripartição dos poderes e a garantia da legalidade penal?
Ocorre uma espécie de “ativismo judicial”
deletério, o qual supera até mesmo a adjetivação de “ativismo” para
conformar-se como uma verdadeira “usurpação judicial”. [7] Como com maestria destaca Badaró: “Não
temos mais, portanto, garantia da legalidade no direito penal! Descanse em paz
‘nullum crimen, nulla poena, sine lege’”. [8] Olvida-se a lição básica de que
“ao julgador cabe interpretar a lei, mas não a reescrever”. [9]
É inadmissível um suposto “abuso legítimo da
lei por parte dos poderes estatais”, seja por que motivação for. [10]
Badaró, com absoluta propriedade, cita
Natalino Irti:
“reconhecer ou aceitar o poder normativo dos
juízes significa – como adverte um eminente estudioso alemão, Bernd Rütheres –
realizar uma revolução clandestina ou secreta (Heimlich), e subverter os
princípios da democracia representativa” (grifos no original). [11]
E prossegue o autor em destaque, demonstrando que tal postura diante dos
limites aos juízes pela legalidade se impõe de forma ainda mais intensa no que
tange à matéria criminal:
“Mormente quando se está cogitando do conteúdo
de um tipo penal, em relação ao qual há garantia constitucional de reserva de
lei é inaceitável que o julgador possa considerar crime condutas que o
legislador não tipificou. Admitir isso seria substituir o princípio da
legalidade por um de ‘jurisdicionalidade’! Isso porque a conduta criminosa
estará sendo determinada, em última análise, não pelo legislador, mas por um
órgão judiciário”. [12]