domingo, 9 de junho de 2019

Criminalização da homofobia pelo STF: uma aberração jurídica


Nos autos de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26, de relatoria do Ministro Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal decidiu, já por maioria de votos, que as chamadas condutas de homofobia ou transfobia são consideradas como crimes de racismo, ao menos até que o Poder Legislativo emita normativa específica sobre o tema. [1]

Vale advertir, desde logo, que este texto não tem o objetivo de admitir, ou pior, defender a legitimidade ou legalidade de qualquer prática discriminatória contra homossexuais ou transexuais. A conduta preconceituosa ou discriminatória contra qualquer pessoa, por que motivo for, é sempre e invariavelmente abominável e passível de sanções morais e legais.

O grande problema é que a Lei de Racismo (Lei 7.716/89) trata tão somente do preconceito e discriminação de “raça, cor, etnia e religião”. Nada mais evidente do que o fato de que o preconceito referente à orientação sexual, à homossexualidade ou à transexualidade, não se coaduna com nenhuma das hipóteses taxativas da lei. Ademais, é preciso ter prudência com essa interpretação ampliativa para outros preconceitos ou discriminações em equiparação com o racismo, mesmo por via legislativa. Ocorre que se há uma excessiva ampliação, a tendência é que outros grupos venham a pleitear o mesmo reconhecimento em uma espécie de processo que caracteriza o que já foi chamado de “Cultura da Vitimização”. [2] De repente poderemos nos deparar com a criminalização qual racismo da obesofobia, da esqueleticofobia, da gerontofobia, da misoginia, da nanofobia e da gigantofobia (afinal, os anões e as pessoas de baixa estatura, assim como os gigantes também são gente),  da veganofobia,  da alopeciofobia (Alopecia Areata é uma doença que faz faltarem pelos em regiões do corpo, no corpo todo ou ao menos na cabeça – os carecas também são vítimas de preconceito), dentre outras situações imprevisíveis “ad infinitum”.

É bem verdade que a Constituição Federal considera ilegal qualquer forma de discriminação, como resta claro diante do disposto no artigo 3º, IV e artigo 5º., XLI. Isso não deixa dúvidas quanto à existência de um bem jurídico constitucional a ser tutelado pelo Direito interno. Entretanto, logo de início, há que apontar para o fato de que a existência de um bem jurídico constitucional é fator necessário, mas não suficiente, por si só, para indicar a via da proteção pelo instrumento de “ultima ratio” que é o Direito Penal.

É bom lembrar com Tavares que a própria gênese do instituto do bem jurídico – penal está ligada ao intuito de limitar e não de fundamentar o “ius puniendi” estatal. [3]

Assim sendo, a existência de um bem jurídico constitucionalmente tutelado, não impõe a proteção necessariamente pela via penal. A tutela de dado bem jurídico (e.g. a vida humana) pelo Direito Penal, não se dá simplesmente porque há sua previsão constitucional, mas porque essa espécie de proteção é “considerada concretamente necessária para aquele bem”. [4]

Ainda que essa proteção pela via extrema da criminalização de condutas seja considerada viável e necessária, tal função, qual seja, a de prever crimes e penas, compete ao Poder Legislativo e não ao Poder Judiciário ou ao Poder Executivo. Nesse passo a divisão de poderes deve ser respeitada de forma bastante rígida. Quando há invasão de searas, seja pelo Judiciário, seja pelo Executivo, descamba-se para o mais puro totalitarismo, com uma Ditadura Política ou uma Ditadura do Judiciário.

Como bem aduz Frankenberg:

“Segundo os paradigmas liberais, a separação dos poderes estatais não é apenas uma questão de divisão do trabalho na organização estatal; a ela cabe também uma função de garantia da liberdade. Isso se tornou inquestionável desde o Segundo Tratado sobre o governo de Locke e Do Espírito das Leis de Montesquieu. Desde a Declaração Francesa de 1789, a separação dos poderes – a par da garantia dos direitos do homem e dos cidadãos – é considerada elemento constituinte da Constituição democrática e elemento central da promessa de coerência e transparência da Modernidade”. [5]

            Foi exatamente com vistas a uma reação aos abusos inquisitoriais, seja por excesso, seja por leniência, que se moldou, após a Revolução Francesa, a ideia matriz de que “o juiz é um funcionário que diz a lei, não que a faz”, de forma que:

“posto diante de um caso concreto a ser julgado, ele procura, entre as normas, aquela na qual tal caso recai. No limite, não encontrando uma, renuncia ao juízo porque ‘o fato não constitui crime’”. [6]

            Desde então o Princípio da Legalidade ou da Reserva Legal exerce papel central na conformação do Direito Penal (artigo 5º., XXXIX, CF e artigo 1º., CP).

Mas, o que ocorre quando a Suprema Corte, supostamente guardiã da constitucionalidade, simplesmente despreza a tripartição dos poderes e a garantia da legalidade penal?

Ocorre uma espécie de “ativismo judicial” deletério, o qual supera até mesmo a adjetivação de “ativismo” para conformar-se como uma verdadeira “usurpação judicial”.  [7] Como com maestria destaca Badaró: “Não temos mais, portanto, garantia da legalidade no direito penal! Descanse em paz ‘nullum crimen, nulla poena, sine lege’”. [8] Olvida-se a lição básica de que “ao julgador cabe interpretar a lei, mas não a reescrever”. [9]

É inadmissível um suposto “abuso legítimo da lei por parte dos poderes estatais”, seja por que motivação for. [10]

Badaró, com absoluta propriedade, cita Natalino Irti:

“reconhecer ou aceitar o poder normativo dos juízes significa – como adverte um eminente estudioso alemão, Bernd Rütheres – realizar uma revolução clandestina ou secreta (Heimlich), e subverter os princípios da democracia representativa” (grifos no original). [11]

                E prossegue o autor em destaque, demonstrando que tal postura diante dos limites aos juízes pela legalidade se impõe de forma ainda mais intensa no que tange à matéria criminal:

“Mormente quando se está cogitando do conteúdo de um tipo penal, em relação ao qual há garantia constitucional de reserva de lei é inaceitável que o julgador possa considerar crime condutas que o legislador não tipificou. Admitir isso seria substituir o princípio da legalidade por um de ‘jurisdicionalidade’! Isso porque a conduta criminosa estará sendo determinada, em última análise, não pelo legislador, mas por um órgão judiciário”. [12]

            Ao Estado em qualquer de seus poderes, inclusive o Judiciário, não cabe agir de maneira usurpadora de funções, ainda mais em clara atuação inconstitucional com lesão franca ao Princípio da Legalidade Penal e à Tripartição dos Poderes. Não é possível admitir que de Estado Constitucional de Direito nos convertamos em um “Estado de Exceção” (“ad aeternum”). Retomando Frankenberg, o qual se vale das lições de Fraenkel e Blanke, é inviável a admissão de um “Estado de Medidas”, o qual supostamente “executa valores fundamentais superiores de modo metalegal e, além disso, na medida do necessário, desobrigando-se do princípio da legalidade”. [13]

A verdade é que se atualmente um Promotor de Justiça elaborar uma denúncia por racismo em caso, por exemplo, de homofobia, não se estará alicerçando em legislação penal alguma, mas numa decisão jurisdicional metalegal. Como bem ilustra jocosamente, mas muito apropriadamente Lamas, a redação da peça, em seu cabeçalho seria mais ou menos assim:

“Ante o exposto, ofereço a presente denúncia pela prática do crime previsto na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão combinada com analogia ‘in mallam partem’…”. [14]

Fernandes chama a atenção para o fato de que na doutrina estrangeira, especialmente na italiana, se costuma estabelecer uma proibição “de efeito manipulativo deletério ao réu em matéria penal”. [15] E no direito brasileiro, essa reserva, esse necessário retraimento quanto a decisões manipulativas penais “in mallam partem” ganha contornos ainda mais drásticos:

“Todavia, no direito brasileiro, além da reserva legal qualificada comum a outros ordenamentos jurídicos, há um argumento de reforço à vedação de sentenças manipulativas no âmbito penal: a proibição constitucional de medidas provisórias sobre matéria penal aponta para a especial relevância dessa temática a obstar a atuação do Executivo e exigir a exclusividade da atuação do legislador, por meio de lei formal”. [16] 

            Vale ainda mencionar o problema que é gerado com tais decisões que criam condutas criminosas pela via jurisdicional no que se refere à devida aplicação do Princípio da Anterioridade e da Proibição da Retroatividade de Lei Penal que prejudique o réu. Acontece que uma decisão judicial não se faz como uma lei, que é publicada e tem uma “vacatio legis” estabelecida ou a previsão expressa de que entra em vigor na data de sua publicação.  O órgão colegiado, como neste caso concreto ocorre, forma uma maioria e, portanto, já se sabe de antemão o resultado do julgamento que é positivo para a criminalização da conduta em testilha. Afinal, a partir desse ponto, formada a maioria, já ocorre a criminalização e aí está o marco da irretroatividade? Ou será que a efetiva criminalização somente se dará com a decisão final, ainda que meramente formal, e seu trânsito em julgado? Diz-se meramente formal, porque, tendo em vista a maioria já estabelecida, dificilmente haverá alteração no quadro, salvo no caso de alguma improvável “iluminação” mental ou reencontro da própria identidade de magistrado e não de legislador por algum dos Ministros que já manifestaram seus votos, mas poderiam alterar sua posição. Dada a baixa probabilidade dessa ocorrência, possivelmente seria a criminalização efetiva somente válida após a decisão final transitada em julgado. Mas, um vácuo ficaria existindo entre a formação da maioria e a formal finalização do julgamento. Uma situação, no mínimo, estranha, geradora de insegurança jurídica, até mesmo de certa perplexidade.

Ainda pior será a situação em que havendo a decisão final de reconhecimento da homofobia e da transfobia como crimes de racismo, advier a aprovação pelo Congresso Nacional de nova lei específica sobre o tema. Então haverá problemas intertemporais entre a lei aprovada pelo Legislativo e a decisão do Judiciário. Se a lei for mais benéfica, retroagirá e tornará letra morta a decisão judicial enfocada. Se for mais rígida, então alguns serão julgados mais beneficamente de acordo com a decisão do STF e outros, no futuro, mais rigorosamente nos termos da legislação de regência. Isso se o STF não resolver também inviabilizar a eventual lei aprovada pelo Congresso Nacional, gerando então ainda mais confusão.

Outro aspecto importante é que se o Congresso, como está ocorrendo, não promove uma simples adição à Lei de Racismo, mas sim à criação de uma lei especial tratando da homofobia e da transfobia, então teremos condutas que por um dado período foram consideradas como gravíssimos crimes de racismo, imprescritíveis e inafiançáveis e adiante serão consideradas como configuradoras de delitos comuns, inclusive prescritíveis, já que ao legislador não é dado criar imprescritibilidades à margem da Constituição Federal. Essa situação é deveras teratológica. As condutas da homofobia e da transfobia seriam espécies de “transformers” legais; ora racismo, ora crimes comuns! A não ser que se entenda que a decisão do STF vincula o legislador, de modo que estaria ele obrigado a criminalizar essas condutas como espécies de racismo. Não poderia sequer criar lei nova, mas tão somente fazer mero acréscimo à Lei 7.716/89 já existente.  Mas, então o legislador seria um estafeta ou contínuo dos Ministros do STF, mero cumpridor de suas determinações, sem qualquer margem de discricionariedade, oportunidade, conveniência ou livre convicção. Tratar-se-ia de sobreposição, ou melhor, de submissão do Poder Legislativo ao Poder Judiciário de uma forma absolutamente inadmissível num regime democrático, a não ser que se chame de democracia a uma “Ditadura do Judiciário”. Observe-se que ao invés dos magistrados terem de se curvar aos limites da lei, estaria ocorrendo o justo oposto, a lei teria de se adequar aos contornos estabelecidos pelos magistrados, a despeito até mesmo das normas constitucionais em contrário. O voluntarismo que se escancara nessa situação é totalmente incompatível com os contornos de um Estado Democrático de Direito, cuja índole deve ser nitidamente normativa.

Fato é que houve uma verdadeira prestidigitação jurídica malsã conduzida pelo STF. Nas apropriadas palavras de Badaró, o Ministro Celso de Mello, que começa seu voto destacando a impossibilidade de o Judiciário se sobrepor ao Legislativo, em suma, dizer a lei, ao invés de dizer o direito, acaba realizando um “truque de ilusionista” ao concluir afirmando que não se pode “criar” um novo tipo penal por via jurisprudencial, mas é permitido usar um tipo penal já previsto em lei “para considerar como crime algo que nele não está descrito”. [17]

Ora, isso nada mais é do que a institucionalização, por via judicial pervertida, mediante um jogo de palavras em circunlóquio e petição de princípio, da aplicação da analogia “in mallam partem” no Direito Penal. E não se pode dizer que essa foi a primeira vez, inclusive sobre o tema específico do racismo. O STJ já equiparou indevidamente a injúria preconceito (artigo 140, § 3º., CP) ao crime de racismo e quando o tema chegou ao STF, este simplesmente se omitiu, sob a alegação de que a matéria versava sobre interpretação de lei federal e não havia questão constitucional a ser discutida. [18]  Note-se que essa decisão do STF sobre homofobia deve gerar também efeitos na aplicação do crime de injúria preconceito, tendo em vista a institucionalização da analogia “in mallam partem”. Embora a injúria racial também não mencione nada sobre homofobia, passaria esta a ser abrangida em nova analogia, agora com a decisão do STF, completando a absurdidade da consideração como crime de racismo.

Realmente parece que para o STF o Princípio da Legalidade Penal e a Tripartição dos Poderes não são matérias com dignidade constitucional.


Eduardo Cabette
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REFERÊNCIAS


CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Para o STJ, injúria é crime de racismo. Será? Disponível em https://jus.com.br/artigos/52141/para-o-stj-injuria-e-crime-de-racismo-sera, acesso em 05.06.2019.

CAMMILLERI, Rino. A Verdadeira História da Inquisição. Trad. Luciano Machado Tomaz e Ulisses Trevisan. Campinas: Ecclesiae, 2013.

CAMPBELL, Bredley, MANNING, Jason. Microaggresion and Moral Cultures. Comparative Sociology. Disponível em https://www.academia.edu/10541921/Microaggression_and_Moral_Cultures, acesso em 05.06.2019.

D’AGOSTINHO, Rosanne, OLIVEIRA, Mariana. Maioria do STF vota por enquadrar homofobia como crime de racismo; julgamento suspenso. Disponível em www.g1.globo.com , acesso em 05.06.219.

FERNANDES, André Dias. Modulação de efeitos e decisões manipulativas no controle de constitucionalidade brasileiro – possibilidades, limites e parâmetros. Salvador: Juspodivm, 2018.

FRANKENBERG, Günter. Técnicas de Estado. Trad. Gercelia Mendes. São Paulo: Unesp, 2018.

LAMAS, Fabrício. SEM título. Disponível em https://twitter.com/fabriciolamas/status/1131767427178614784, acesso em 05.06.2019.

PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003.

SILVA, Claudio Henrique Ribeiro da. Microagressões e a Cultura da Vitimização. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=hOA7L1a54d4, acesso em 05.06.2019.

TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.

USURPAÇÃO Judicial. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=95iAuq8D6c4&t=28s, acesso em 05.06.2019.

[1] D’AGOSTINHO, Rosanne, OLIVEIRA, Mariana. Maioria do STF vota por enquadrar homofobia como crime de racismo; julgamento suspenso. Disponível em www.g1.globo.com , acesso em 05.06.219.

[2] Vide: CAMPBELL, Bredley, MANNING, Jason. Microaggresion and Moral Cultures. Comparative Sociology. Disponível em https://www.academia.edu/10541921/Microaggression_and_Moral_Cultures, acesso em 05.06.2019. Ver também vídeo elucidativo: SILVA, Claudio Henrique Ribeiro da. Microagressões e a Cultura da Vitimização. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=hOA7L1a54d4, acesso em 05.06.2019.

[3] TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 181.

[4] Cf. PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003, p. 148.

[5] FRANKENBERG, Günter. Técnicas de Estado. Trad. Gercelia Mendes. São Paulo: Unesp, 2018, p. 226.

[6] CAMMILLERI, Rino. A Verdadeira História da Inquisição. Trad. Luciano Machado Tomaz e Ulisses Trevisan. Campinas: Ecclesiae, 2013, p. 50.

[7] Cf. USURPAÇÃO Judicial. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=95iAuq8D6c4&t=28s, acesso em 05.06.2019.


[9] Op. Cit.

[10] Cf. FRANKENBERG, Günter, Op. Cit., p.239.

[11] BADARÓ, Gustavo, Op. Cit.

[12] Op. Cit.

[13] FRANKENBERG, Günter, Op. Cit., p. 241.

[14] LAMAS, Fabrício. SEM título. Disponível em https://twitter.com/fabriciolamas/status/1131767427178614784, acesso em 05.06.2019.

[15] FERNANDES, André Dias. Modulação de efeitos e decisões manipulativas no controle de constitucionalidade brasileiro – possibilidades, limites e parâmetros. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 256.

[16] Op. Cit., p. 258.

[17] BADARÓ, Gustavo, Op. Cit.

[18] Sobre o tema, veja-se artigo elaborado anteriormente: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Para o STJ, injúria é crime de racismo. Será? Disponível em https://jus.com.br/artigos/52141/para-o-stj-injuria-e-crime-de-racismo-sera, acesso em 05.06.2019.
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Estudos Nacionais

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