domingo, 5 de novembro de 2017

O Magistério da Igreja e o Direito secular


Um amigo perguntou, dia desses, se o Papa era como o STF da Igreja Católica. A analogia na qual ele estava pensando era a seguinte: assim como é o Supremo Tribunal Federal quem diz definitivamente o que é constitucional e o que não é constitucional dentro da ordem jurídica brasileira, seria, na Igreja Católica, o Papa quem por último diria o que é ortodoxo e o que é herético dentro da Doutrina Católica. Assim como o STF diz o que é que a Constituição diz, o Papa seria aquele que diz o que é que a Revelação diz.

O Direito me parece fortemente tributário da Teologia, sem dúvidas, e é possível — mais até, é fácil — encontrar diversos paralelos entre os juristas e os teólogos. Não obstante, penso que é preciso ressaltar as diferenças entre um acórdão do STF e uma bula papal, a despeito de a metáfora acima parecer sedutora. Ou melhor, é preciso enfatizar, por todas, uma única diferença crucial e insuperável entre as duas esferas: o direito é essencialmente mutável, a doutrina não pode mudar jamais.

Isso porque o direito deve se adaptar às peculiaridades (obviamente, apenas àquelas legítimas) dos diversos tempos e lugares, dos usos e dos costumes dos homens. Com a doutrina acontece exatamente o contrário: são os homens que devem se adaptar a ela, às suas consequências e suas exigências. Daí porque é legítimo (mais até, é perfeitamente razoável, é até esperado) que um Tribunal modifique o seu entendimento a respeito de determinada norma jurídica levando em conta as transformações sociais, ao passo em que a Igreja não pode mudar jamais um jota da lei de Deus mesmo que uma centena de cidades dos homens sejam edificadas sobre os escombros da Cidade de Deus.

Sim, é claro que existe um direito natural imutável do qual o direito positivo deriva — ou ao menos deve derivar. Ainda assim a lei humana pode (e, em muitos casos, até deve) mudar. É o que ensina Santo Tomás (Summa, I-IIae, q. 97, a. 1): conquanto a lei natural não mude nunca, deve a lei positiva mudar por um duplo motivo. Primeiro, porque a razão humana é imperfeita e, portanto, as leis por ela ditadas podem ser sempre aperfeiçoadas a fim de que correspondam melhor aos ditames do direito natural. E, segundo, porque mudam naturalmente as condições dos homens, e a estes «convêm coisas diversas segundo as suas diversas condições» (id. ibid, Resp.).

sábado, 4 de novembro de 2017

Bento XVI: A causa da crise na Igreja é Deus ter perdido a prioridade na Liturgia


A nada se dê prioridade senão ao Culto Divino. Com estas palavras São Bento estabelece na regra de vida que criou a absoluta prioridade do Culto Divino em relação a todas as restantes atividades da vida monástica (ponto 43,3). Este facto não era óbvio nem mesmo para a vida monástica, pois para os monges era essencial o trabalho científico e agrícola, áreas em que podia, certamente, surgir urgências que podiam fazê-las parecer mais importantes que a liturgia. Perante tudo isto, São Bento coloca a prioridade na liturgia, realçando inequivocamente a prioridade do próprio Deus na nossa vida: “Na hora do Ofício Divino, mal se oiça o sinal, deixa-se tudo o que se tiver em mãos e corresponda-se ao chamamento com a máxima solicitude” (43,1). 

Na consciência dos homens de hoje as coisas de Deus e em particular a liturgia não surgem como um assunto urgente. Há urgência para todo o tipo de coisas, mas a causa de Deus não parece que o seja alguma vez. Pode-se dizer, com justiça, que a vida monástica é diferente da vida dos homens que estão no mundo – mas ainda assim a prioridade de Deus, que esquecemos, vale em ambos os casos. Se Deus já não é importante, então alteramos os critérios para estabelecer o que é importante. Quando o homem coloca Deus numa das suas gavetas, está a colocar-se sob condicionalismos que o fazem escravos de coisas materiais e que são, portanto, opostas à sua dignidade. 

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Por que a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) devia preocupar as famílias brasileiras?


Com a proximidade da homologação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), que deve ocorrer neste mês de novembro, ativistas e entidades em defesa da família intensificaram o alerta à população sobre os riscos que o atual texto pode trazer à formação moral dos alunos. O principal problema é o uso, em vários trechos do documento, do termo “questões de gênero”, o que pode ser interpretado como obrigatoriedade de se ensinar o controverso conceito da ideologia de gênero na educação básica.

Rede Nacional de Direitos e Defesa da Família, presidida pelo pedagogo Felipe Nery, é uma das entidades que trabalha para mudar o texto que pode ser homologado pelo Ministério da Educação neste mês. O grupo produziu e publicou um vídeo nas redes sociais em que o próprio Nery mostra como a ideologia de gênero tem avançado pelo mundo e como ela pode ser nociva às crianças. De acordo com o educador, na Inglaterra, o número de crianças que se submeteram a tratamento transgênero aumentou em 1000% nos últimos cinco anos e que na Escócia o crescimento dos casos foi de 500% em quatro anos. “Isso não é por acaso. O número de crianças confusas a respeito do próprio sexo está explodindo nos países que promovem a ideologia de gênero em suas escolas”, alerta.

O propósito da BNCC é o de ser um documento orientador sobre de que maneira os conteúdos disciplinares devem ser ofertados nas redes pública e privada do país. Por meio dele, a intenção é garantir que os estudantes, independentemente da região em que estejam, recebam o mínimo comum de conhecimentos que sejam essenciais ao seu desenvolvimento. Se for aprovada com a menção ao termo “questões de gênero”, portanto, ficaria muito mais difícil para um diretor de escola ou professor negar-se a ensinar aos seus alunos teses como a de que existem dezenas gêneros sexuais, e que cada criança pode ser escolher o seu.

Trechos problemáticos

Um dos trechos mais problemáticos estaria na página 159, onde o documento diz que “o professor de artes deve desenvolver as aulas, discutindo experiências corporais pessoais e coletivas, de modo a problematizar questões de gênero e corpo”. Em outro momento, na página 165, diz que o professor de artes também “deve refletir sobre as experiências pessoais e coletivas desenvolvidas em aula ou vivenciadas em outros contextos, de modo a problematizar questões de gênero, corpo e sexualidade” e, na página 305, o texto estabelece que “na área de ciências humanas a diversidade de gênero deve ganhar especial destaque”. Já nas páginas 351 e 378, respectivamente, a BNCC sugere que o professor de história “coloque em destaque as temáticas voltadas para as questões de gênero” e o motiva a trabalhar em suas aulas as “questões de gênero, o anarquismo e protagonismos femininos mostrando as transformações ocorridas no debate sobre as questões de gênero no Brasil durante o século XX”.

Para pressionar o governo federal a não homologar o documento tal como está, uma petição online foi lançada pelo site CitizenGo, incentivando a população a manifestar-se contra a ideologia de gênero nas escolas.

Em 2014, numa disputa semelhante, a pressão popular prevaleceu quando o Ministério da Educação (MEC) tentou manipular a decisão de 2014 do Congresso, que retirou do Plano Nacional de Educação (PNE) as menções à ideologia. Naquele ano, foram enviados aos 6 mil municípios brasileiros que estavam votando seus planos, um documento que apontava a ideologia de gênero, como uma diretriz educativa. No entanto, grupos contrários se reuniram em suas cidades, na frente das Câmaras Municipais e, mobilizados, conseguiram que as propostas não fossem aprovadas.  Em quase sua totalidade, os municípios não incluíram o gênero como meta dos sistemas estaduais e municipais de educação.

Em entrevista ao Sempre Família, Nery reforça que, assim como ocorreu em 2014, é preciso um maior envolvimento da população para que a BNCC não seja homologada. Por mexer com a educação dos filhos, ele avalia como essencial que pais estejam em contato com os deputados federais, seja por e-mail ou telefone, pressionando para que eles estejam atentos ao conteúdo trazido pela proposta. “Parece algo inalcançável, mas não é. Quando o PNE foi votado, houve manifestação popular e o Congresso foi sensível ao povo dizendo não às menções de gênero no documento. É possível sim”, comenta. 

Papa Francisco autoriza debate sobre possibilidade de homens casados virarem padres


A pedido do cardeal brasileiro dom Claudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, o papa Francisco autorizou o debate em torno da possibilidade de se ordenar homens casados para o sacerdócio, ao menos em regiões remotas com escassez de padres, como na região amazônica. A informação, ainda não confirmada pelo Vaticano, foi publicada pelo jornal italiano Il Mensaggero.

A proposta defendida por Hummes, que hoje é presidente da Comissão Episcopal da Amazônia, órgão da CNBB,  é a de que homens atuantes em suas comunidades possam assumir a direção de uma paróquia e administrar sacramentos, sendo liberados do celibato. A opção é chamada no meio católico como viri probati (homens provados) e o tema provavelmente estará na pauta do recém anunciado Sínodo Pan-Amazônico, convocado para 2019, e que deve reunir bispos dos países da região amazônica. 

Pedagogia Litúrgica para Novembro de 2017: "Liturgia e fim dos tempos"


A Liturgia reserva as últimas celebrações do Ano Litúrgico para celebrar e refletir sobre o final dos tempos. Mesmo que a Palavra fala de momentos catastróficos, a linguagem é apocalíptica, e isso tem causado incompreensões e até mesmo temor. Uma aproximação equivocada, do senso comum, por relacionar a linguagem apocalíptica a acontecimentos trágicos, extremamente catastróficos e, por isso, destruidores.

Apocalipse é uma palavra de origem grega que significa “revelação”. Disso se conclui que a linguagem apocalíptica é uma linguagem reveladora, não no sentido de anunciar o futuro, mas de chamar atenção à vigilância de cada um para não perder a fé, a esperança e a alegria no momento que as seguranças da terra começarem a desaparecer. A Liturgia, portanto, em suas celebrações não anuncia o terror da destruição, mas celebra a força da esperança, apoiada na virtude da vigilância. Em nenhum momento, a Liturgia profetiza de catástrofes, nas celebrações de fim de ano. Ao contrário, continua sendo profeta e promotora da esperança em Deus.

Mas, vamos colocar uma questão: — esta esperança pode diminuir ou até mesmo desaparecer devido à desconfiança pessoal? Sim! Disso se entende o empenho da Liturgia em manter a esperança através da vigilância. Vamos considerar como isso acontece a partir de algumas considerações de celebrações do Ano A.

A santidade como realização da vida

A santidade divina é a primeira proposta apocalíptica celebrada na Liturgia. É a celebração de uma revelação festiva e repleta de esperança: todo homem e mulher são chamados a participar da santidade divina. É a comunhão de todos os santos, que professamos no Credo da Igreja e celebrada na Solenidade de todos os santos e santas, em dia 1º novembro. Por motivos pastorais, aqui no Brasil, é transferida para o primeiro Domingo depois da data.

Minha reflexão considera a proposta pastoral pedagógica do Ano Litúrgico. Neste caso, antes de celebrar a morte cristã, no dia seguinte (2 de novembro), a pedagogia litúrgica celebra o destino da vida: viver e participar da santidade divina. Antes de refletir sobre a morte, a Liturgia, pedagogicamente, mostra que somos destinados a ser santos e santas. A morte não é o fim de tudo, não é o fim da vida, mas é uma passagem para participar da vida plena que acontece na santidade divina, na comunhão de todos os santos e santas.

Por isso, as duas celebrações — de Todos os Santos e dos Fiéis Defuntos — do ponto de vista pedagógico, estão próximas porque indicam duas realidades da vida humana: a realidade da morte e a realidade do destino da vida humana. Entende-se que a celebração do dia 2 de novembro celebra a fé e a esperança na "comunhão dos santos", como professamos no Credo, sustentando-se na Palavra desta celebração que promete e garante a vida eterna para quem viver em Jesus Cisto. É um contexto celebrativo marcado essencialmente pela esperança e pela fé na vida eterna.

Além da fé e da esperança, existe também a já citada “comunhão dos santos”, pelo qual nós, como Igreja que vive na terra, intercedemos à Igreja que vive no céu, que acolha aqueles que partiram desta vida na esperança do repouso eterno. Existe esta “comunhão dos santos” que, em outras palavras, pode ser denominada como “comunhão de batizados”, aqueles que foram lavados na água do Batismo e, por receberem a filiação divina, tornam-se santos e santas. A segunda dimensão é que os santos que vivem na terra (os batizados) intercedem para que os falecidos participem da santidade plena da vida divina. Isso não é feito somente no dia 2 de novembro, mas diariamente, em todas as Missas celebradas na Igreja.

A celebração dos santos e santas, para finalizar, não é, apenas, um convite para refletir sobre a santidade, mas principalmente entender a santidade como realização da vida humana, algo que nem a morte pode destruir, porque somos redimidos no Sangue do Cordeiro vitorioso e revestidos com a veste dos eleitos.

Palavra de Vida: “O maior de entre vós será o vosso servo” (Mt 23,11).


Jesus, falando à multidão que   o seguia, anunciou a novidade   do estilo de vida daqueles que   querem ser seus discípulos. É   um estilo “contracorrente”, em   relação com a mentalidade da   época (1).

Naquele tempo, como também   agora, era fácil fazer discursos   moralistas, mas não viver coerentemente. Pelo contrário, cada um procurava, para si próprio, lugares de prestígio no ambiente social, formas de subir, e servir-se dos outros para obter vantagens pessoais.

Aos seus, Jesus pede para terem uma outra lógica, no relacionamento com os outros: aquela que Ele próprio viveu.

«O maior de entre vós será o vosso servo».

Chiara Lubich, comunicando a sua experiência espiritual, num encontro com pessoas desejosas de saber como viver o Evangelho, disse:

«Devemos sempre dirigir o nosso olhar para o único Pai de muitos filhos. Depois, olhar para todas as criaturas como filhos de um único Pai… Jesus, nosso modelo, ensinou-nos apenas duas coisas que são uma só: sermos filhos de um único Pai e irmãos uns dos outros… Portanto, Deus convida-nos à fraternidade universal» (2).

Esta é a novidade: amar todos como fez Jesus, porque todos são – como eu, como tu, como qualquer pessoa sobre a Terra – filhos de Deus, por Ele amados e por quem Ele espera desde sempre.

Descobre-se assim que o irmão que devemos amar concretamente, também com os músculos, é cada uma das pessoas que encontramos no dia-a-dia. É o pai, a sogra, o filho pequeno e o rebelde; o prisioneiro, o mendigo e o deficiente; o chefe de serviço e a senhora das limpezas; o companheiro de partido, e aqueles que têm ideias diferentes das nossas; aqueles que professam a mesma fé e cultura, e também os estrangeiros.

A atitude tipicamente cristã de amar o irmão é pôr-se ao seu serviço:

«O maior de entre vós será o vosso servo».

O Amor não é Amado


Um dia, Frei Leão, o fiel "secretário" do Poverello, sempre atento a tudo o que acontecia na vida do Pai e Irmão Francisco, o ouviu a chorar, a poucos metros desta Basílica, e, mesmo com certa dificuldade, conseguiu ouvir aquelas célebres palavras do “Estigmatizado da Verna”: “o amor não é amado”, “o amor não é amado”. Com muito respeito, como o que tem aquele que entra no santuário da mais profunda intimidade de um homem de Deus, Leão pergunta: “Porque choras, Frei Francisco?”. Francisco não responde, apenas continua a dizer: “o amor não é amado”, “o amor não é amado”…

Leão, talvez para consolá-lo, mas totalmente convencido do que dizia, interrompe o choro de Francisco e lhe diz: “Mas Francisco, não te parece que já fizeste o bastante por Jesus deixando o teu pai e a tua mãe, os teus amigos e um futuro de glória?” E Francisco responde: “Não, não é o bastante”.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Eles dormem na Paz


No dia 2 de novembro, fazemos a comemoração de todos os fiéis defuntos, dos nossos falecidos, daqueles que estiveram conosco e hoje estão na eternidade, os “finados”, aqueles que chegaram ao fim da vida terrena e já começaram a vida eterna. Portanto, não estão mortos, estão vivos, mais até do que nós, na vida que não tem fim, “vitam venturi saeculi”. Sua vida não foi tirada, mas transformada. Por isso, o povo costuma dizer dos falecidos: “passou desta para a melhor!” Olhemos, portanto, a morte com os olhos da fé e da esperança cristã, não com desespero, pensando que tudo acabou. Uma nova vida começou eternamente.

Para nosso consolo, ouçamos a Palavra de Deus: “Deus não criou a morte e a destruição dos vivos não lhe dá alegria alguma. Ele criou todas as coisas para existirem... e a morte não reina sobre a terra, porque a justiça é imortal” (Sb 1, 13-15).

Os pagãos chamavam o local onde colocavam os seus defuntos de necrópole, cidade dos mortos. Os cristãos inventaram outro nome, mais cheio de esperança, “cemitério”, lugar dos que dormem. É assim que rezamos por eles na liturgia: “Rezemos por aqueles que nos precederam com o sinal da fé e dormem no sono da paz”.

Os santos encaravam a morte com esse espírito de fé e esperança. Assim São Francisco de Assis, no cântico do Sol: “Louvado sejais, meu Senhor, pela nossa irmã, a morte corporal, da qual nenhum homem pode fugir. Ai daqueles que morrem em pecado mortal! Felizes dos que a morte encontra conformes à vossa santíssima vontade! A estes não fará mal a segunda morte”. “É morrendo que se vive para a vida eterna!”. S. Agostinho nos advertia, perguntando: “Fazes o impossível para morrer um pouco mais tarde, e nada fazes para não morrer para sempre?”