Um amigo perguntou, dia desses, se o Papa era como o STF da Igreja Católica. A analogia na qual ele estava pensando era a seguinte: assim como é o Supremo Tribunal Federal quem diz definitivamente o que é constitucional e o que não é constitucional dentro da ordem jurídica brasileira, seria, na Igreja Católica, o Papa quem por último diria o que é ortodoxo e o que é herético dentro da Doutrina Católica. Assim como o STF diz o que é que a Constituição diz, o Papa seria aquele que diz o que é que a Revelação diz.
O Direito me parece fortemente tributário da Teologia, sem dúvidas, e é possível — mais até, é fácil — encontrar diversos paralelos entre os juristas e os teólogos. Não obstante, penso que é preciso ressaltar as diferenças entre um acórdão do STF e uma bula papal, a despeito de a metáfora acima parecer sedutora. Ou melhor, é preciso enfatizar, por todas, uma única diferença crucial e insuperável entre as duas esferas: o direito é essencialmente mutável, a doutrina não pode mudar jamais.
Isso porque o direito deve se adaptar às peculiaridades (obviamente, apenas àquelas legítimas) dos diversos tempos e lugares, dos usos e dos costumes dos homens. Com a doutrina acontece exatamente o contrário: são os homens que devem se adaptar a ela, às suas consequências e suas exigências. Daí porque é legítimo (mais até, é perfeitamente razoável, é até esperado) que um Tribunal modifique o seu entendimento a respeito de determinada norma jurídica levando em conta as transformações sociais, ao passo em que a Igreja não pode mudar jamais um jota da lei de Deus mesmo que uma centena de cidades dos homens sejam edificadas sobre os escombros da Cidade de Deus.
Sim, é claro que existe um direito natural imutável do qual o direito positivo deriva — ou ao menos deve derivar. Ainda assim a lei humana pode (e, em muitos casos, até deve) mudar. É o que ensina Santo Tomás (Summa, I-IIae, q. 97, a. 1): conquanto a lei natural não mude nunca, deve a lei positiva mudar por um duplo motivo. Primeiro, porque a razão humana é imperfeita e, portanto, as leis por ela ditadas podem ser sempre aperfeiçoadas a fim de que correspondam melhor aos ditames do direito natural. E, segundo, porque mudam naturalmente as condições dos homens, e a estes «convêm coisas diversas segundo as suas diversas condições» (id. ibid, Resp.).
O Papa (ou, melhor dizendo, o Magistério da Igreja) é infalível em determinadas condições, e aquilo que é verdadeiro não pode simplesmente passar a ser falso depois: o aprofundamento da Revelação no curso da história da Igreja, que existe, só pode ser integrativo e não superativo. Isso quer dizer que coisas distintas podem vir a se acumular no corpo doutrinário e moral da Igreja Católica, mas aquilo que era doutrinariamente certo não pode passar um dia a ser incerto, e aquilo que era moralmente ilícito não pode passar a ser lícito nem vice-versa. Com o direito é diferente, as diversas teses jurídicas podem (e em alguns casos até devem) se superar umas às outras, inclusive eivando de ilicitude aquilo que em outros tempos era perfeitamente jurídico, e isso é completamente natural. Não dá para estabelecer nenhuma comparação entre o ordenamento jurídico e o magistério eclesiástico desconhecendo essas coisas.
Certamente não faltará entre meus interlocutores quem me interpele sobre os juros, ou a tortura ou a escravidão. A isso é preciso responder sucintamente, primeiro, que nenhuma dessas coisas é intrinsecamente má; segundo, que em tempos passados determinadas condições dos homens, distintas das atuais, autorizaram-nas ou as vedaram, legitimamente; terceiro, que a consciência moral da humanidade encontra-se hoje em um patamar superior — quando menos de acúmulo de experiências históricas –, em melhores condições portanto de apreciar o que melhor convém à comunidade humana. Antes do ensino da Igreja, portanto, o que mudaram foram as condições dos homens; outrossim, o rol exíguo, restritíssimo destes exemplos históricos aponta antes para o caráter extraordinário do fenômeno do que para uma superabilidade essencial da moral católica que a pudesse tornar análoga ao direito humano.
Voltando à comparação entre o Magistério e o Judiciário, o maior problema com ela é o pressuposto que ela enseja: assim como o direito deve ser sempre revisto para melhor corresponder às mudanças sociais, então assim também o Magistério católico deveria (ao menos eventualmente) superar o seu ensino em atenção às modificações sofridas pela sociedade. Tal compreensão é falsa e ignora as sensíveis diferenças existentes entre a Igreja e o Direito secular, conforme exposto. E, por conta disso, a fim de evitar nefastas confusões, não convém traçar analogias entre os dois campos sem atentar criteriosamente para aquilo que é próprio de cada um.
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Deus lo Vult!
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