A liturgia do 28º domingo do tempo comum nos
apresenta um tema bem caro ao evangelista Lucas e muito esquecido em nossa
sociedade: a gratidão. Em nossos dias de individualismo e de egocentrismo
exacerbado, por causa do mito do bem-estar e da idolatria do mercado, a gratidão
brilha como uma luz nas trevas.
Vivemos num mundo em que a vida humana
transformou-se num grande comércio onde tudo se compra e tudo se paga… É a
época do descartável! Diante dessa realidade, muitos perderam o valor da
gratuidade e da gratidão. “Obrigado” é uma palavra tão simples, mas tão
esquecida por muitos! No Evangelho (Lc. 17, 11-19) Jesus cura dez leprosos, mas
apenas um volta para agradecer.
Com freqüência, temos melhor memória para as
nossas necessidades e carências do que para os nossos bens. Vivemos pendentes
daquilo que nos falta, e reparamos pouco naquilo que temos, e talvez seja por
isso que ficamos aquém no nosso agradecimento. Pensamos que temos pleno direito
ao que possuímos e esquecemo-nos do que diz Santo Agostinho: “Nada é nosso, a não
ser o pecado que possuímos. Pois que tens tu que não tenhas recebido? (1Cor 4,
7).”
Toda a nossa vida deve ser uma contínua ação
de graças. Lembrai-vos das maravilhas que Ele fez, exorta o salmista. O
samaritano, através do seu mal, pôde conhecer Jesus Cristo e por ser agradecido
conquistou a sua amizade e o incomparável dom da fé: …Tua fé te salvou. Ou
seja, a fé salva!
Martinho Lutero foi um sacerdote agostiniano
alemão que viveu no século XVI, homem de grande inteligência e de uma fina
sensibilidade. Atormentado pelos seus escrúpulos de consciência e sentindo-se
oprimido pelas normas da religião, passou por uma experiência que mudaria a sua
vida. Leu Rm 1,17: “o justo viverá da fé”. Lutero entendeu que bastaria a fé,
somente a fé, para salvar-se; as obras não contariam para nada nesse processo
de salvação. A partir daquele momento, seria clássico o tripé luterano: Sola
fides! Sola gratia! Sola Scriptura! A tradução é fácil: Somente a fé! Somente a
graça! Somente a Bíblia! Com exclusão das obras, do esforço ascético e da
Tradição da Igreja. Logicamente, a partir daquele momento, Lutero já não se
sentia ligado à autoridade da Igreja Católica para interpretar a Sagrada
Escritura. Curiosamente, parece que Lutero não leu muito bem o seguinte
capítulo da Carta aos Romanos que, entre outras coisas, nos diz que Deus
“retribuirá a cada um segundo as suas obras” (Rm 2,6), nem tampouco o que
escreveu o mesmo Apóstolo aos gálatas: que a fé “opera pela caridade” (Gl 5,6).
Enfim, o Concilio de Trento teve que tratar dessa
questão e fê-lo magistralmente no ano 1547. O fruto daquela Sessão VI do
Concilio foi o valiosíssimo Decreto sobre a justificação. É interessante
observar que, desde o começo, o Concilio não se preocupou em dar uma
interpretação imediata a uma passagem concreta, como poderia ser Rm 1,17, mas
primeiramente quis conhecer profundamente o que significa ser justificado, ser
justo, o que quer dizer “justificação”. Depois de deixar claro até que ponto
chegou o drama do ser humano – pecador, imundo, separado de Deus, com uma
vontade e uma liberdade enfermas, incapaz de salvar-se a si mesmo –, nos
explica que a salvação nos vem de Jesus Cristo. Ele nos salvou, mas cada de um
nós tem que deixar-se lavar pelo seu sangue purificador. Finalmente, o Concilio
nos diz que a justificação não é somente remissão dos pecados, mas também
santificação e renovação do homem interior pela voluntária recepção da graças e
dos dons. E qual é o papel da fé na justificação já que a Escritura afirma que
o somos justificados pela fé (cfr. Rm 1,17; 3,28)? O Concilio interpreta essas
palavras da Escritura com outras: “sem fé é impossível agradar a Deus, pois
para se achegar a ele é necessário que se creia primeiro que ele existe e que
recompensa os que o procuram” (Hb 11,6). Ser justificado pela fé, ser salvado e
santificado pela fé, significa que para ser justo diante de Deus é preciso
antes crer que ele existe e que é a causa da nossa santificação. Com efeito,
como estar inserido em Cristo se não cremos nele e se não permitimos, livremente,
que ele entre nas nossas vidas? Deus é muito cortês, se nós não permitimos que
ele entre na nossa casa, ele não entrará, mas continuará insistindo.
“Levanta-te a tua fé te salvou” (Lc 17,10).
Abracemos cada vez mais a salvação doada por Cristo a cada um de nós, mas não
nos esqueçamos de que é importante voltar para agradecer com obras e na
verdade. Aquele samaritano, que antes era leproso como os outros, quis
percorrer o caminho de volta para agradecer a Jesus pessoalmente prostrando-se
aos seus pés. A sua fé foi acompanhada por umas quantas obras que mereceram um
elogio e uma exclamação de Jesus: “Não se achou senão este estrangeiro que
voltasse para agradecer a Deus?!” (Lc 17,18). Agradeçamos ao Senhor “opere et
veritate”, com obras e na verdade, pois, salvados em Cristo Jesus,
“esforçai-vos quanto possível por unir à vossa fé a virtude, à virtude a
ciência, à ciência a temperança, à temperança a paciência, à paciência a
piedade, à piedade o amor fraterno, e ao amor fraterno a caridade. (…) Portanto,
irmãos, cuidai cada vez mais em assegurar a vossa vocação e eleição” (2 Pd
1,5-10). Sim, a nossa fé nos salvou, mas é preciso continuar cuidando – por uma
vida santa – essa salvação para que aumente em nós e para que um dia seja
eterna e vejamos, face a face, a Deus Pai e Filho e Espírito Santo.
Comentário
dos textos bíblicos
Leituras: 2Rs
5,14-17; Sl 97; 2Tm 2,8-13; Lc 17,11-19
Meus caros amigos, a leitura do Evangelho
deste domingo, narrado pelo evangelista São Lucas nos leva ao episódio da cura
operada por Jesus dos dez leprosos, dos quais só um samaritano volta para
agradecer. Em ligação a este texto, está a primeira leitura tirada do segundo
Livro dos Reis (cf. 2Rs 5,1-14), onde temos o relato da cura de Naamã,
comandante do exército do rei da Síria, também leproso e, para se curar da
lepra, vai ter com o profeta Eliseu, que lhe pede apenas para confiar em Deus e
mergulhar sete vezes nas águas do rio Jordão.
Ao ser curado, Naamã volta a procurar o profeta e, reconhecendo nele o
mediador de Deus, professa a fé ao único Senhor.
No tempo de Jesus a lepra era tida como uma
doença terrível. Os dez leprosos são curados por Jesus, quando iam
apresentar-se aos sacerdotes, como Jesus ordenara: “Ide mostrar-vos aos
sacerdotes” (v. 14). Esta ordem de Jesus
é o cumprimento de uma prescrição legal.
O leproso excluído da comunidade de Israel como impuro, só poderia ser
reintegrado, após a declaração do sacerdote (cf. Lv 14,2-3). Na obediência a ordem de Jesus aqueles homens
encontram a cura.
Os dez leprosos do Evangelho curados por
Jesus, vão ao seu encontro, param à distância e gritam: “Jesus, Mestre, tem
compaixão de nós” (Lc 17, 13). Estão doentes e procuram alguém que os cure.
Segundo a teologia da época, a doença, em especial a letra, era considerada
como um castigo de Deus. Agora aquele
homem se sente perdoado por Deus e ele o louva com todas as suas forças: “Um
deles, ao perceber que estava curado, voltou glorificando a Deus em alta voz;
atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe agradeceu” (v. 15s).
A este samaritano que volta para agradecer, a
ele o Senhor diz: “Levanta-te e vai! Tua fé te salvou” (Lc 17,19). É a fé que
salva o homem, restabelecendo-o na sua relação profunda com Deus, consigo mesmo
e com os outros; e a fé expressa-se no reconhecimento.
Com isto, tomamos consciência acerca da
importância da fé para aqueles que, angustiados pelo sofrimento e pela
enfermidade, se aproximam do Senhor. No encontro com Ele, para os que
acreditam, nunca estão sozinhos! Com efeito, no seu Filho, Deus não nos
abandona às nossas angústias e sofrimentos, mas está próximo de nós e deseja
curar profundamente o nosso coração (cf. Mc 2,1-12).
O samaritano curado, ao agradecer, demonstra
que considera a sua cura como um dom que provém de Deus. Portanto, a fé o fez
abrir à graça do Senhor e reconhecer que tudo é dom, tudo é graça. Vendo-se
purificado, cheio de admiração e de alegria, contrariamente aos demais, vai
imediatamente até Jesus para lhe manifestar o próprio reconhecimento, deixa
entrever que a saúde readquirida é algo precioso, pois constitui um sinal da
salvação que Deus nos concede através de Cristo, que o exorta: “A tua fé te
salvou!” (v.19).
A gratidão é uma virtude elementar. O samaritano, percebendo que foi curado,
volta para agradecer ao Senhor o benefício recebido. A gratidão é uma das mais nobres virtudes do
coração humano: “Sede agradecidos” nos recomenda São Paulo na carta aos
colossenses (Cl 3,15).
O texto ainda nos faz perceber como Jesus
reservou sempre uma atenção particular para com os enfermos. Ele não só
convidou os seus discípulos a curar as feridas dos doentes (cf. Mt 10,8; Lc
9,2; 10,9), mas também instituiu para eles um Sacramento específico: a Unção
dos Enfermos. A Carta de São Tiago oferece um testemunho da presença deste
gesto sacramental já na primeira comunidade cristã (cf. Tg 5,14-16). Mediante a
Unção dos Enfermos, acompanhada pela oração dos presbíteros, a Igreja inteira
recomenda os doentes ao Senhor, a fim de que alivie as suas penas e os salve.
A reflexão deste texto evangélico pode ser
também para nós uma ocasião propícia e preciosa para redescobrir a força e a
beleza da fé diante da dor e do sofrimento. Podemos encontrar sempre uma âncora
segura na fé, alimentada pela escuta da Palavra de Deus, da oração pessoal e
dos Sacramentos, para vencermos as provações e dificuldades de cada dia. O sofrimento pode constituir um tempo de
graça, e pode proporcionar ao doente um voltar a si mesmo.
Jesus cura dez leprosos, enfermidade que na
época era considerada uma “impureza contagiosa” que exigia uma purificação
ritual (cf. Lv 14, 1-37). Nos tempos atuais, a lepra que deturpa a humanidade
parece ser o pecado, o ódio, a violência…
Mantendo-se à distância, os leprosos gritaram, dizendo: “Jesus, Mestre,
tem misericórdia de nós!” (v.13). Esses
homens mantinham-se à distância porque não ousavam, levando em conta o seu
estado, avançar para mais perto de Jesus. O mesmo pode acontecer conosco.
Enquanto permanecemos nos nossos pecados, ficamos afastados. Portanto, para
recuperarmos a saúde e nos curarmos da lepra dos nossos erros, devemos suplicar
com voz forte: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!” (v. 13).
Também neste sentido a Igreja oferece aos seus
filhos o sacramento da penitência, pelo qual retornamos à casa do Pai, da qual
o pecador se afastou pelo pecado. A
confissão dos pecados perante o sacerdote é um elemento essencial deste sacramento
e pela absolvição sacramental do sacerdote, Deus concede ao penitente o perdão
e a paz.
Podemos ainda observar que Jesus não cura
apenas um leproso, mas dez. Este número na Sagrada Escritura tem um significado
simbólico: indica totalidade. Os dez leprosos,
portanto, representam todo um povo. A
lepra é o símbolo da condição do pecado, do erro, do distanciamento de
Deus. Com isto, a lição do texto
evangélico é também esta: Todos precisam ter um encontro com Jesus. Todos
precisam da salvação do Senhor.
Um outro detalhe é que os dez leprosos não
buscam a salvação individualmente, mas em conjunto. Eles fazem uma oração
comunitária: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!” (v. 13). Isto indica que houve integração entre
eles. E um deles era samaritano. A história nos mostra que os judeus não se
davam com os samaritanos, mas diante da desgraça e da dor, ocorre a unidade.
Que também tenhamos a coragem de gritar por
socorro ao Senhor para que ele cure a nossa lepra, especialmente, aquela
espiritual, a fim de que, reconhecendo as maravilhas que ele opera na nossa
vida, possamos cada vez mais ter uma fé mais fortalecida.
Quantos benefícios nós já recebemos de Deus,
mas muitas vezes somos indiferentes. No
momento em que somos agradecidos a Deus nossa vida se transforma. Devemos louvar e agradecer sempre aquilo que
o Senhor nos dá constantemente. Só o fato de sermos chamados à existência já
bastaria para transformarmos a nossa vida em um perene louvor. É preciso saber
agradecer a Deus sempre.
Continuando a Eucaristia, invocamos a
intercessão de Maria, Mãe de Misericórdia, a ela elevemos o nosso olhar para
que, com a sua maternal compaixão, acompanhe e sustente a nossa fé e a nossa
esperança. Assim seja.
PARA REFLETIR
Salta aos olhos a mensagem da Palavra de Deus
neste Domingo: a gratidão, o reconhecimento cheio de amor pela ação benéfica de
Deus na nossa vida. Gratidão e ingratidão – eis o que aparece nas leituras de
hoje. Primeiro, a gratidão de Naamã, um pagão, inimigo de Israel, que, no
entanto, sabe ser agradecido a Deus. Curado de sua lepra, voltou para agradecer
ao profeta Eliseu e, como sinal de conversão ao Deus verdadeiro, levou terra de
Israel para Damasco, sua cidade, para, sobre essa terra, adorar a Deus. O
reocnhecimento pelo benefício de Deus fez desse pagão um amigo do Senhor e
salvou a sua existência de um caminho sem sentido. Também a gratidão de outro
pagão, o leproso samaritano que soube, reconhecido, voltar a Jesus “para dar
glória a Deus”. Mas também, hoje, aparece a ingratidão. Nove leprosos, filhos
do povo de Israel, que curados, não retornam para agradecer o dom… Dez foram
curados, somente um foi salvo, o leproso pagão e estrangeiro:“Levanta-te e vai!
Tua fé te salvou!”
Estejamos atentos! Hoje, temos tudo… Chegamos
a um alto grau de desenvolvimento tecnológico e científico, compreendemos
tantos dos processos e dinamismos da natureza e, num mundo ativista e auto-suficiente,
temos a sensação ilusória que nos bastamos, que tudo é nosso, que tudo é fruto
de nossos esforços, que tudo foi conquista nossa, simplesmente. Vamos nos
tornando cegos para a presença cuidadosa, providencial e cheia de amor de um
Deus que sempre vela por nós. Vamos nos tornando gravemente insensíveis para
perceber a vida como dom, como graça, como presente. É impressionante como o
mundo nos vai tornando dormentes, insensíveis mesmo, para Deus! Se avida já não
mais é percebida como um dom, também do nosso coração já não mais brota a ação
de graças. Mas, uma vida assim é ela mesma, sem graça, ela mesma uma
“des-graça”! Somente quando abrimos o coração e os olhos da fé, podemos
perceber que tudo é graça, imenso dom de um Amor sem fim e, então, seremos
realmente curados de uma vida sem sentido e libertos para correr livres nos
caminhos da existência. Poderemos ouvir a palavra de Jesus: “Levanta-te e vai!
A tua fé te salvou! Salvou-te de uma vida mesquinha, fechada, incapaz de olhar
as estrelas, incapaz de comunhão com o Pai do céu, incapaz de dizer “Pai
nosso” e de reconhecer nos outros teus
irmãos…” Mas, para isso – nunca esqueçamos – é necessário um coração de pobre,
um coração humilde, que reconheça que tudo quanto possuímos foi recebido de
Deus.
Vale, então, para nós, no corre-corre da vida,
a advertência de São Paulo, na segunda leitura de hoje: “Lembra-te de Jesus
Cristo, ressuscitado de entre os mortos!” Lembrar-se de Cristo é tê-lo como
palavra última e total de amor que o Pai nos pronunciou. Lembrar-se de Jesus é
nunca esquecer que Deus está conosco, amando-nos, perdoando-nos e acolhendo-nos
como Deus providente e misericordioso. Lembrar-se de Jesus morto e ressuscitado
é nunca duvidar da misericórdia de Deus e de seu compromisso na nossa existência
e na existência do mundo. “Lembra-te de Jesus Cristo ressuscitado! Merece fé
esta palavra: se com ele morremos, com ele viveremos. Se com ele ficamos
firmes, com ele reinaremos. Se nós o renegarmos, também ele nos negará. Se lhe
formos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode negar-se a si mesmo!” Aqui
está o motivo último e irrevogável de toda a nossa gratidão a Deus: Jesus
Cristo, dado-nos como carinho e fidelidade do Pai! É de tal modo este dom, tão
irrevogável, tão absoluto, que vale a pena morrer com ele para, nele, viver uma
vida nova; vale a pena sofrer com ele para, nele, reinarmos. É interessante
como o Apóstolo sublinha a fidelidade amorosa de Deus em Jesus: “Se lhe somos
infiéis, ele permanece fiel!” Eis um Deus que não se escandaliza com nossas
debilidades, mas é sempre disposto a recomeçar conosco. “Se nós o negamos,
também ele nos negará”… Esta é a única atitude que nos faz perdê-lo para
sempre: a ingratidão de negá-lo em nossa vida, de fechar-se de tal modo para
ele, que já não mais o reconheçamos, que já não mais deixemos que ele seja o
Senhor de nossa existência, que já não mais percebamos que tudo é graça, tudo é
presente de amor.
Cuidemos, então do modo como estamos
construindo a nossa existência: como um fechar-se sobre nós mesmos, na
auto-suficiência, ou como uma abertura livre e filial, pronta a acolher e viver
a vida como um dom do Senhor. Como cantam os focolares: “Se um dia perguntares
quem sou, não direi o meu nome. Direi: ‘Obrigado’, por tudo e pra sempre,
‘obrigado, obrigado’”!
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