Não serão as guerras e o derramamento de sangue que trarão a paz que todos desejam. |
A relação com o
transcende sempre esteve presente no horizonte humano, de modo que podemos
afirmar que o ser humano é um ser religioso. Por “ser religioso” não se está
asserindo que toda pessoa assumirá para si uma religião e frequentará seus
ritos e aderirá seus símbolos e dogmas. O que afirmamos é que relacionar-se com
o transcendente é próprio do ser humano; essa relação dá-se no intuito de
justificar sua própria existência. Por isso, “desde sempre, para entender a si
mesmo, o ser humano foi bater à porta dos deuses”¹. Na busca para obter uma
maior compreensão de si, o ser humano procura desvendar os enigmas da sua
humanidade, a fim de que o vazio existencial, por causa do sem sentido da vida, não o assalte.
Precisamente,
o sem sentido da vida é que faz emergir a filosófica
pergunta “porque o ser e não o nada?”.
É da contemplação da tragédia encenada entre a vida e a morte que a religião
floresce como religamento do sentido da existência pessoal e do mundo na órbita
do transcendente, sagrado. Nessa esteira, a religiosidade é um componente
essencialmente humano, porquanto ela justifica, ou empenha-se em justificar, as
fronteiras da vida e da morte. E é essa justificação existencial religiosa que
a religião oferece a partir do conjunto de verdades cridas pelos sujeitos que
dela participam. E é por ser algo intrínseco que movimenta o sistema de crenças
existenciais das pessoas, que a religião, ou o exercício religioso, pode
acorrer ao fundamentalismo. O fundamentalismo, por sua vez, é a radicalização
das verdades cridas, pelos sujeitos crentes. Essas verdades cridas, quando
absolutizadas, são impostas universalmente a outros sujeitos não crentes e isso
é o que corrobora a inclinação da religião para a violência.
O
cristianismo afirma que Deus, ele mesmo, procurou o ser humano para
relacionar-se com ele na amizade. Não foi o ser humano que saiu ao encontro de
Deus, mas Ele mesmo saiu ao encontro do ser humano para prová-lo na gratuidade
e na liberdade. Por isso, a máxima cristã é que Deus revelou-se e fez-se
conhecer à humanidade. A iniciativa da revelação é de Deus, de modo que ele não
é alguém que revela-se porque foi-lhe pedido, ou porque ele foi procurado “nas
alturas”, mas porque aprouve fazê-lo livremente e por primeiro. Nesse sentido,
a fé em Deus que se revela é mais resposta que procura, é resposta à
interpelação do Deus que se mostra como fonte de sentido da existência de todas
as coisas.
Destarte,
Deus revela-se em Jesus. Ele é o acontecimento pleno da revelação divina no
mundo e na história dos homens e mulheres. A vida de Jesus é a manifestação do
sentido último da existência humana. Precisamente, a sua Páscoa revela que o
ser humano, criado na gratuidade e liberdade, é predestinado à amizade de Deus
que é eterna. Logicamente, essa predestinação não se qualifica num destino
isento do desejo máximo de tomada de decisões diante da vida que se apresenta.
O ser humano é predestinado à amizade de Deus porque essa é a oferenda de Deus
à humanidade ao revelar a sua glória assumindo a fragilidade humana na
encarnação da Palavra divina. Por isso, Jesus, que passou fazendo o bem entre
as multidões, é o amigo de todos os que tiveram sua dignidade furtada, seja
pelas mazelas dos sistemas sociais, ou pela imposição da legislação religiosa
que mais oprimia que libertava.
Desse
modo, Jesus estava inserido numa sociedade radicada na violência que não estava
circunscrita ao físico, mas, também, ao ético, ao moral, ao simbólico, ao
psicológico. A força da lei mosaica, num sistema social em que a religião
judaica justificava todas as relações sociais, violentava a muitos. Não é sem
razões que os Evangelhos narram a respeito de apedrejamentos de mulheres
encontradas em adultério, da exclusão vexatória dos que possuíam alguma
deficiência, dos que eram considerados pecadores, etc. Aos que esperavam uma
resposta violenta de Jesus, ele não só se aproximava dessas vítimas, como
também as acolhia com amizade inaugurando para elas o Reino de Justiça e Paz.
Tudo isso corroborava o que os profetas anunciaram a respeito do Messias de
Israel, de que ele é o Príncipe da paz que reconcilia tudo e todos.
Mesmo os
discípulos e discípulas de Jesus não compreendiam muito bem as relações que
deveriam ser construídas entre eles e entre eles e os que não faziam parte do
grupo de Jesus. Os discípulos encaravam algumas pessoas como sendo um problema
para a missão do Mestre, a respeito dessa suspeita dos discípulos ele ensinava
que mesmo os diferentes de nós estão a nosso favor, porque não são contra nós.
Não há razões para “provocar” e “criar” inimigos, pois o que se exige é que se
viva em paz uns com os outros (cf. Mc 9, 40.50). De modo que o mandamento “amarás o teu próximo e odiarás o teu
inimigo!” é rechaçado
por Jesus sob a lógica do amor que não encontra resistências: “Amai os vossos inimigos e orai por
aqueles que vos perseguem”. É precisamente o amor que não se
restringe aos amigos, mas que é dedicado, inclusive, aos inimigos que faz dos
seguidores e seguidoras de Jesus os filhos do Pai que está nos céus. (cf. Mt
5,43-45).
O que
percebemos nas ações e palavras de Jesus é que não há espaço para o confronto
violento com os diferentes, com aqueles que pensam e agem de maneiras
divergentes. Jesus, ao anunciar a Boa Nova do Reino, a faz numa lógica de
justiça que é semente da paz. Embora sua história seja interrompida
tragicamente pelo ódio e violência de alguns, suas palavras não deixam dúvidas
de que o “olho por olho e dente por dente”,
da lei do talião, deve ceder o lugar às relações de justiça, paz e amor. Isso
não significa conviver e compactuar com a injustiça e a violência, significa,
antes, que a maldade não pode ser revidada por outras formas a não ser pelo
amor. Com respeito a isso, Jesus é decido a interromper a violência de Pedro
contra Malco, guarda pessoal do sumo sacerdote que vai até ele para prendê-lo
no Horto das Oliveiras. Jesus, que será preso para morrer injustamente, ensina
ao discípulo fiel que seu Reino não necessita das armas da morte, nem da
bravura de soldados e cavaleiros e que, mesmo diante da brevidade do fim, o
imperativo maior é o do amor aos inimigos. Por isso ele é categórico em ordenar
que Pedro deixe sua espada como estava, sem o sangue da vida ferida pelo ódio e
pela maldade. A espada na bainha não tem utilidade, e é isso que está sendo
afirmado: o Reino não será construído pela violência e pelo derramamento de
sangue. Não serão as guerras que trarão a paz que todos desejam.
No
entanto, a história do cristianismo nas suas diferentes configurações revela
que a máxima da justiça, da paz e do amor nem sempre estiveram presentes no
horizonte das religiões e das pessoas que as seguem. E se olharmos para o
passado e para o presente veremos quantas mortes são provocadas à luz da cruz
de Jesus. O Evangelho da justiça, da paz e do amor foi, e é ainda hoje,
utilizado como arma mortífera contra sociedades, grupos e indivíduos. Um giro
pelo Congresso brasileiro, por exemplo, revelará quantos homens e mulheres que
se afirmam cristãos e utilizam-se de seus “dogmas” e de suas “escrituras
sagradas” para fuzilar mulheres, pessoas LGBTIs, negros e negras, entre outros.
Um giro pelo país e veremos em quais e em quantos púlpitos e altares de igrejas,
pastores e ministros religiosos disseminam o ódio e a violência num misto de
lavagem e estupro cerebral através da fé. Um giro em nossas famílias, e nos
ambientes de estudo e trabalho veremos cristãos e cristãs defenderem e
justificarem a pena de morte, o assassinato de bandidos, a cadeia para menores,
etc. Tudo isso é sinal de que, assim como Pedro, estamos com nossas espadas
empenhadas a ferir semelhantes e, principalmente, os diferentes de nós. Se a
lógica das relações justas e fraternas, radicadas no amor que não encontra
barreiras e que alcança até os inimigos, não é visível em nossas ações e
palavras, vale recordar, ao final deste artigo, que desde o discípulo zeloso
está valendo a ordem de Jesus de não empunhar armas. Por isso, guardemos nossas
espadas na bainha!
Tânia da Silva Mayer
é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão
Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte.
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¹GESCHÉ, Adolphe. O ser humano. São Paulo:
Paulinas, 2003. p. 5.
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Dom Total
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