Como que prolongando a
atmosfera pascal, atmosfera do mistério de nossa redenção pelo Senhor morto e
glorificado, a Igreja quer celebrar de modo mais expresso o sacramento pelo
qual participamos da doação até o fim de seu corpo e sangue, conforme a palavra
de Jesus na Última Ceia. Embora esta celebração seja uma extensão da
Quinta-feira Santa, o evangelho é o texto eucarístico de João, que não se
encontra no contexto da Última Ceia, como nos evangelhos sinóticos, mas no
contexto da multiplicação do pão. Jesus explica o sentido do “sinal do pão”.
Para os judeus, a multiplicação
do pão significou saciação material (cf. o messianismo político); para Jesus,
significava o dom de Deus que desce do céu, e que é ele mesmo, em pessoa. Ora,
na última parte do discurso (Jo 6,51-58), Jesus especifica mais ainda: esse dom
do céu é “sua carne (= existência humana) dada para a vida do mundo” (cf. a
fórmula paulina da instituição da Eucaristia, “meu corpo [dado] por vós”, 1Cor
11,23).
A Eucaristia tem duas dimensões:
primeiro, a sua celebração, a missa, ao redor do altar; e depois, a sua
prolongação, com a reserva do Pão eucarísticos no Sacrário e a conseguinte
veneração e adoração que lhe dedica a comunidade cristã. A finalidade principal
da Eucaristia é a sua celebração- a missa-, isto é, para os fieis comungarem o
Corpo e o Sangue de Cristo. Porém, desde que, já nos primeiros séculos, a
comunidade cristã começou a guardar o Pão eucarísticos para os enfermos e para
os moribundos, foi nascendo cada vez mais “conatural” que se rodeasse o lugar
da reserva (o Sacrário) de sinais de fé e adoração ao Senhor. A Eucaristia na
celebração é para ser comida para a saúde das nossas almas e assimilar Cristo,
Pão de vida. A Eucaristia na prolongação é para ser adorada, festejada e
cantada. Na celebração da Eucaristia entramos em comunhão com Cristo na hora de
comungá-lo. Na prolongação da Eucaristia caímos de joelhos para agradecer,
adorar, contemplar e abrir o coração diante de quem está ali sacramentalmente
presente e sabemos que nos olha e nos ama.
Este culto por Cristo
Eucaristia prolongado deve nos levar a cuidá-lo sempre. Daqui a dignidade dos
Sacrários: sempre colocados num lugar nobre e destacado, convenientemente
adornados, fixados permanentemente sobre um altar, pilar, ou também metidos na
parede ou incorporados a um retábulo. O Sacrário deve estar construído de
matéria sólida (podem ser metais preciosos como ouro, prata, metal prateado,
madeira, cerâmica e similares) e não transparente, fechado com chave, num
ambiente que seja fácil à oração pessoal fora do momento da celebração, e
portanto melhor numa capela separada (capela sacramental). Daqui que junto ao
Sacrário brilhe constantemente uma lâmpada, com a qual se indica e honra a
presencia real e silenciosa de Cristo. Daqui, a genuflexão quando passamos
diante dele. Daqui, os momentos pessoais de oração ou “visita” diante do Senhor
na Eucaristia. Daqui, a organização da “bênção com o Santíssimo” com uma
“exposição” mais ou menos prolongada e solene para a adoração comunitária. São
momentos que deveríamos desejar, ter saudades e buscar, tanto pessoalmente como
em comunidade; momentos de oração mais pausada, meditativa e serena diante do
Sacrário.
Portanto, a festa do Corpus
Christi não é veneração supersticiosa de um pedacinho de pão, nem uma ocasião
para mandar procissões triunfalistas pelas ruas. É um comprometimento pessoal e
comunitário com a vida de Cristo, dada por amor até a morte. É o memorial da
morte e ressurreição do Cristo (oração do dia), mas não um mausoléu; é um
memorial vivo, no qual assimilamos o Senhor, mediante a refeição da comunhão
cristã, saboreando um antegosto da glória futura (oração final, cf. O Sacrum
Convivium, de Santo Tomás de Aquino).
Comentário
dos textos bíblicos
Leituras: Dt 8,2-3.14b-16a; 1Cor 10,16-17; Jo 6,51-58
Caros irmãos e irmãs, nós fomos reunidos no amor de Cristo para
celebrar esta Solenidade de Corpus Christi, ou seja, a festa do Corpo e do
Sangue de Cristo. Além de motivados pela fé, nos motiva o desejo de testemunhar
nossa união em torno da certeza na presença real de Jesus Cristo na Eucaristia.
É o testemunho de fé pessoal e eclesial que daremos publicamente fazendo a
procissão do Corpo de Deus.
A procissão é o ato do povo de Deus peregrino, que caminha em oração
rumo à Casa do Pai. Adorando Jesus na Eucaristia e fortalecidos pelo “pão vivo
que desceu do céu” manifestamos publicamente a nossa fé em Cristo presente na
Eucaristia, que permanece e caminha conosco.
Corpus Christi é a festa da unidade em torno da Eucaristia, que
manifesta a universalidade e a unidade da Igreja que “vive da Eucaristia”. Por
isso nos alegramos, pois, sabemos que todos que
estão aqui querem dar sentido às suas vidas, suas histórias, seus
sonhos, suas realizações, seus anseios de futuro feliz, suas lutas pelo bem
comum, na busca pela construção de um mundo fraterno, justo e solidário, se
alimentando com “o pão que vem do alto”.
Na primeira leitura, tirada do Livro do Deuteronômio, Moisés dirige-se
ao povo de Israel, antes de entrar na terra prometida. Relembra os 40 anos de
peregrinação no deserto onde o povo foi provado e preparado para iniciar uma
vida nova. Neste longo tempo, Deus não só colocou seu povo em provação, mas
saciou sua sede e o alimentou com o maná. Por isso, Israel deve ser grato e
nunca se esquecer do que o Senhor fez: libertou, guiou, protegeu e alimentou o
seu povo.
E hoje? Deus continua caminhando com seu povo e a terra prometida vai
se construindo na história, enquanto construímos o Reino, implantando e vivendo
seus valores, até o dia da nossa chegada à Jerusalém celeste. Sentimos como
provação a fome de justiça, a sede de condições iguais para todos viverem com a
dignidade de filhos e filhas de Deus, a força para banir a violência e
construir uma nova humanidade baseada no respeito e no amor.
Esse é um grande conselho que deveria estar em destaque na porta de
nossas casas e gravado em nossos corações: “Nem só de pão vive o homem, mas de
toda Palavra que sai da boca do Senhor”.
Na segunda leitura, tirada da segunda carta de São Paulo aos
Coríntios, o apóstolo adverte sobre o perigo das divisões nas celebrações
dos banquetes sagrados e exorta para que não se perca a consciência da unidade
que a comunhão do Corpo de Cristo exige. O Apóstolo afirma que o pão que
partimos é comunhão com o Corpo do Senhor. Palavra estupenda!
Comungar na Eucaristia significa entrar numa comunhão misteriosa e
real com a Pessoa mesma de Jesus; mas não uma pessoa desencarnada: é entrar em
comunhão com tudo quanto Ele viveu, experimentou em Sua existência humana; é
ter comunhão com os ideais de Jesus, com o modo de viver e agir de Jesus, com
as opções, esperanças e angústias de Jesus, com o sofrimento de Jesus, com a
Morte e Sepultura de Jesus, com a Ressurreição e glorificação de Jesus!
Comungar daquele Pão é comungar com Jesus na totalidade da Sua existência, é
colocá-Lo na nossa existência, não mais viver por nós mesmos, sozinhos conosco,
do nosso modo, mas viver nossa vida na vida de Jesus, que por nós morreu e
ressuscitou (cf. 2Cor 5,15)!
E o cálice, São Paulo diz que é comunhão no Sangue de Cristo; quer
dizer comunhão na Sua entrega, na Sua Morte, morrida por nós! Participar do
Cálice do Senhor é estar dispostos a beber o cálice com Ele, a ser batizados no
batismo de morte no qual Ele foi batizado (cf. Mc 10,38)!
Portanto, participar do Pão e do Vinho eucarísticos é entrar em
comunhão de vida e morte com o Senhor, é “com-viver” com Cristo, é conhecê-Lo,
conhecer o poder de Sua Ressurreição e a participação nos Seus sofrimentos,
“com-formando-nos” com Ele na Sua Morte para alcançar a Sua Ressurreição dentre
os mortos (cf. Fl 3,10).
Esta é a experiência central da vida cristã: viver nesta comunhão
plena de vida e morte com o Senhor! E aqui, precisamente, cabe alguns urgentes
questionamentos… Os cristãos têm consciência disso? Individualmente e como
Igreja, temos presente esta nossa misteriosa e estupenda vocação, que é trazer
em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a Vida de Jesus seja também
manifestada em nosso corpo (cf. Fl 4,10).
Quem comunga o Senhor, comunga seu desejo de alimentar a vida de
comunhão plena. Paulo recorda que a experiência da Eucaristia, partilha do
único cálice de bênção e do único pão partido é comunhão com o Sangue e com o Corpo de Cristo. A
Eucaristia é o princípio da comunhão na vida da
Igreja e convoca a todos para a mesma missão em busca da unidade.
E hoje? São João Paulo II afirmou: “A Igreja é escola e casa de
comunhão” Nela, como escola, eu aprendo e ensino. Devo ser discípulo e ao mesmo
tempo mestre da comunhão. As diferenças sejam de qualquer dimensão, não podem
estar acima do desejo convicto de sermos
instrumento de comunhão.
Em um mundo que se quer globalizado, as divisões ideológicas,
culturais, sociais e outras tantas, não podem influenciar a nossa caminhada de
Igreja. Elas devem nos orientar para acolher a todos, sem abrirmos mão do
tesouro de vida que é a graça de sermos convocados pela Palavra de Deus. Uma
comunidade sem testemunho audaz e corajoso de comunhão não merece ser chamada
de comunidade do Ressuscitado.
No Evangelho proclamado e escrito por João, Jesus, a Palavra viva de
Deus que se tornou carne, afirma: “Eu sou o pão vivo descido do céu”. Pão que
dá vida nova ao mundo. A oferta que Ele faz de si mesmo na Cruz se prolonga na
Eucaristia. Aos judeus que murmuravam, Jesus reafirma que para ter a vida
eterna é preciso comer a Carne do Filho do Homem e beber o seu Sangue. Permanece em Jesus quem o comunga e
permanecer em Jesus significa viver pela sua causa.
E hoje? Hoje aqui reunidos pela Eucaristia fazemos nosso encontro
pessoal com Jesus Cristo, que dá sentido à nossa vida. Nesta festa de Corpus
Christi proclamamos nossa fé na sua presença real e mostramos nossa gratidão
por tão grande dom, por tão grande presente. É certo que a festa que celebramos
nasceu da necessidade de mostrar ao mundo o tesouro da Igreja escondido nos
nossos tabernáculos. Mas, quando comungamos, somos sacrários vivos de Jesus
Cristo, realmente presente em nós na Hóstia consagrada. Maior sentido ganha a
nossa procissão: somos testemunhas vivas de sua presença.
Hoje, quando dermos a resposta à apresentação: “Eis o mistério da fé”,
cheios de alegria pela presença do Cristo Sacramentado, que vai se desvendando
no altar, enquanto rezamos a Oração Eucarística, afirmaremos com fé:
“Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde,
Senhor Jesus.”
Que o Senhor nos faça compreender que só a vida de comunhão pode
estabelecer a união desejada por Deus para que todos sejam um. Que a vida de
comunidade seja alimentada pela Eucaristia. Que nós tenhamos a mais convicta
certeza de que a Igreja vive da Eucaristia e que ela realiza aqui na terra a
comunhão que viveremos no céu, na eternidade da comunhão perfeita em Deus que
é: Pai, Filho e Espírito Santo.
Maria, mulher eucarística, primeiro sacrário do corpo de Cristo, nos
ajude a levar a presença de Jesus Cristo a todos os ambientes em que estamos.
Que a peregrinação de Nossa Senhora da Penha em nossas comunidades nos ajude a
ter coragem de enfrentar as dificuldades que encontramos na nossa vida e
principalmente na vida de nossas comunidades.
PARA REFLETIR
Cristo nos deu sua carne para saciar-nos,
convidando-nos a uma amizade cada vez mais íntima. Aproximemo-nos, pois, a ele
com fervor e com uma ardente caridade, e não incorramos em castigo. Porque
quanto maiores forem os benefícios recebidos, mais gravemente seremos
castigados se nos fizéssemos indignos de tais benefícios.
Os magos também adoraram este corpo recostado em um
presépio. E sendo homens irreligiosos e pagãos, abandonando casa e pátria,
percorreram um longo caminho, e, ao chegar, o adoraram com grande temor e
tremor. Imitemos ao menos estes estrangeiros, nós que somos cidadãos do céu.
Eles realmente se aproximaram com grande temor a um presépio e a uma gruta, sem
descobrir nenhuma das coisas que agora te é dado contemplar. Tu, por outro
lado, não o enxergas em um presépio, mas sobre um altar; não contemplas a uma
mulher que o tem em seus braços, mas ao sacerdote que está de pé em sua
presença e ao Espírito, transbordante de riqueza, pairando sobre os dons. Não
vês simplesmente, como eles, este mesmo corpo, mas conheces todo o seu poder e
sua economia de salvação, e não ignoras nada do que ele fez, pois ao ser
iniciado te ensinaram detalhadamente todas estas coisas. Exortemo-nos, pois,
mutuamente com um santo temor, e lhe demonstremos uma piedade muito mais
profunda que a que exibiram aqueles estrangeiros, para que, não aproximando-nos
a ele temerária e desconsideradamente, não tenhamos que esconder o rosto de
vergonha.
Digo isto não para que não nos aproximemos, mas
para que não nos aproximemos com hesitação. Porque assim como é perigoso
aproximar-se com hesitação, assim a não participação nestas místicas ceias
significa a fome e a morte. Porque esta mesa é a força de nossa alma, a fonte
da unidade de todos nossos pensamentos, a causa de nossa esperança: é
esperança, salvação, luz, vida. Se com esta bagagem saíssemos daquele
sacrifício, com confiança nos aproximaríamos aos seus átrios sagrados, como se
fôssemos armados até aos dentes com armadura de ouro.
Talvez falo de coisas futuras? Desde agora este
mistério tornou para ti a terra em um céu. Abre, pois, as portas do céu e olha;
ou melhor dizendo, abre as portas não do céu, mas do céu dos céus, e então
contemplarás o que foi dito. Tudo o que de mais precioso ali existe, vou
mostrar-te permanecendo na terra. Porque assim como o mais precioso que existe
no palácio real não são os muros nem as coberturas de ouro, mas o rei sentado
no trono real, assim também no céu o mais precioso é a pessoa do Rei.
E a pessoa do Rei te é dado contemplá-la já agora
na terra, pois não te apresento aos anjos, nem aos arcanjos, nem aos céus, nem
aos céus dos céus, mas ao próprio Senhor de todos eles. Compreendes como na
terra contemplas o que há de mais precioso? E não somente o vês, mas ainda o
tocas; e não somente o tocas, mas também o comes; e depois de tê-lo recebido,
regressas para a tua casa. Purifica, portanto, tua alma, prepara teu coração
para a recepção destes mistérios.
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