Na sua acepção cristã primitiva, a expressão ordo militaris, justaposta a ordo ecclesiasticus (o clero), designava os fiéis leigos com a sua respectiva legislação; todo cristão, por efeito do Batismo e da Crisma, é, sim, um militante de Cristo. À medida que as ordens monásticas se foram desenvolvendo, ordo militaris (ordem militar) passou a ser o título de famílias religiosas organizadas para lutar em defesa da fé, dos pobres e dos oprimidos.
Já que o ideal das ordens militares se prende de perto ao do cavaleiro medieval, será oportuno lembrar, antes do mais, alguns traços característicos deste último.
1. O cavaleiro medieval
Entre os múltiplos elementos com que os invasores bárbaros contribuíram para a formação da cultura e da mentalidade medievais, conta-se a instituição dos cavaleiros. Esta se foi delineando aos poucos: a princípio tinha a índole um tanto brutal que caracterizava tudo que se referia à guerra entre os bárbaros; mas, com o tempo, impregnou-se de mentalidade profundamente cristã. O cavaleiro foi-se mais e mais considerando servo de Deus, portador de missão religiosa; o Senhor Altíssimo lhe era apresentado como o primeiro Soberano, e a fidelidade ou a fé como a virtude básica.
Assim, as normas da cavalaria se tornaram autêntica escola de formação do jovem medieval, cujo programa se resumia no lema: «Minha alma, a Deus; minha vida, ao rei; meu coração, à dama; a honra, para mim». O cavaleiro aprendia não somente o manejo das armas e a técnica do combate, mas, a fim de disciplinar as paixões e servir devidamente aos seus nobres objetivos, era educado na prática das virtudes e do amor (amor a Deus e ao próximo).
A formação do cavaleiro se processava em três etapas:
Até os 7 anos, o candidato ficava sob os cuidados de sua mãe e das amas, que lhe insuflavam os rudimentos da educação cristã; passava a maior parte do tempo em jogos infantis. Aos sete anos, tornava-se pajem ou donzel (domicellus) e geralmente era transferido para a corte de um príncipe ou para o castelo de um senhor feudal, a cujo serviço ele se dedicava tanto em casa como na caça e em viagem. A instrução religiosa era-lhe ministrada pelo capelão do castelo, que, não raro, nos longos serões do inverno, lhe narrava os episódios do Antigo e do Novo Testamento, assim como a vida dos santos. Uma das grandes tarefas do pajem consistia na aprendizagem das sete «probitates» do cavaleiro: a natação, a equitação, o manejo do arco, o duelo, a caça, o jogo do xadrez, a arte da rima. A título de recreio, era-lhe dado ouvir o trovador, que periodicamente visitava o castelo, deleitando os ouvintes com suas canções e com as narrativas dos feitos exímios dos antigos heróis.
Aos 14 anos, o pajem era promovido a escudeiro, recebendo do sacerdote ao pé do altar a espada e o cinturão bentos, ao passo que as esporas de prata lhe eram fixadas aos pés pelos assistentes; estes, em seu nome, prometiam amor e lealdade. De então por diante, a ocupação principal do jovem era o uso das armas, que ele carregava ao acompanhar o seu senhor na guerra e na caça.
Aos 21 anos, o escudeiro era instituído cavaleiro numa cerimônia (dita adubamento) rica de simbolismo. Na véspera do grande dia purificava-se com um banho (comparado a novo batismo), após o qual se revestia de «cotta» (camisa) preta (símbolo da morte), túnica branca (emblema da pureza) e manto vermelho (significativo do sangue que ele devia estar pronto a derramar pela fé). Assim trajado, o candidato ia para a capela, onde passava a noite em «vigília de armas»; de manhã cedo confessava-se e participava da Santa Missa e recebia a Santa Comunhão. Seguia-se a investidura propriamente dita: após a bênção da espada, o candidato ouvia de joelhos a leitura dos seus futuros deveres, entre os quais primavam os de servir a Deus e à Igreja, não mentir, proteger os fracos. Feito isto, os padrinhos lhe impunham uma blusa, um casaco de malha, polainas de ferro e a espada; o cavaleiro jurava solenemente fidelidade aos seus ideais de guerreiro cristão; por fim, para encerrar o rito, o seu senhor tocava-o três vezes com a espada, dizendo: «Em nome de Deus, de São Miguel e de Nossa Senhora, constituo-te cavaleiro».
Infelizmente os varões assim preparados não estiveram sempre à altura do seu nobre programa. Aos poucos, o entusiasmo foi diminuindo; o cavaleiro se tornou burguês e cortesão; a entrada na cavalaria veio a ser obrigatória para que alguém gozasse dos privilégios da nobreza; em suma, o título de cavaleiro passou a ser mera distinção honorífica. Como quer que seja, a instituição, em seus tempos áureos, produziu frutos notáveis tanto no plano natural como no sobrenatural, dentro da sociedade medieval.
À luz destas ideias, entende-se que tenham surgido na Santa Igreja famílias religiosas que professavam empunhar as armas a serviço da mais nobre das causas, que é a do Reino de Cristo.
2. As ordens militares
Se o combate ao jugo opressor da verdadeira fé pode tornar-se um ato louvável, e se, por ocasião das cruzadas, esse combate se tornava inevitável e era portanto estimulado e indulgenciado pela Santa Igreja, explica-se o surgimento, no séc. XII, de ordens religiosas que, como finalidade primária, se propunham o exercido da milícia sagrada: visavam guiar os peregrinos à Terra Santa, defendê-los contra piratas e acidentes de viagem, tratá-los em casos de enfermidade e, de maneira geral, promover os interesses do Reino de Cristo em meio aos muçulmanos e pagãos. O religioso militar vinha a ser um cruzado vitalício. Ora, a partir de 1099, quando se originaram os primeiros Estados cristãos no Oriente, a necessidade de reforços ocidentais era contínua. Também na Península Ibérica, a luta contra os ocupantes muçulmanos exigia prontidão e esforços continuados de milícias cristãs, assim como ocorria nos países bálticos devido às ameaças de normandos e outros pagãos. Foi para atender precisamente a tal estado de coisas que se constituíram as ordens militares.
Como se compreende, as novas famílias religiosas foram colocadas sob a dependência imediata da Santa Sé, única autoridade capaz de conceder licença aos religiosos para exercerem combates armados sem incorrer em irregularidade canônica (o uso de armas tinha sido, sim, repetidamente proibido aos monges por concílios dos séculos anteriores). A autoridade eclesiástica costumava indicar às novas ordens alguma das regras religiosas já existentes, como a de São Bento, a de Santo Agostinho, a dos cistercienses, regra que,naturalmente, devia ser adaptada à finalidade própria das ordens militares.
A direção suprema de cada uma dessas sociedades tocava a um grão-mestre, eleito pelos seus cavaleiros. Quanto aos membros da ordem, distribuíam-se em três categorias:
Fratres milites ou equites, cavaleiros, aos quais competiam as funções de empunhar as armas e de tratar dos enfermos em hospitais fundados na Terra Santa;
Fratres servientes, escudeiros, que desempenhavam o papel de auxiliares dos cavaleiros, dedicando-se por vezes aos trabalhos manuais necessários na vida comum;
Capelães ou sacerdotes encarregados dos ofícios religiosos nos oratórios da ordem (não será preciso frisar que os «fratres» anteriormente mencionados eram leigos).
Também se podiam contar oblatos (donati) e mulheres remotamente ligados com cada ordem militar (assim, nos séculos XIII/XIV, as irmãs teutônicas surgiram ao lado da ordem masculina correspondente). Os irmãos emitiam os três votos religiosos de pobreza, obediência e castidade; em época tardia, porém, tornou-se lícito aos cavaleiros de Espanha e Portugal contrair matrimônio.
Para poderem desenvolver as suas vastas atividades, as ordens militares foram enriquecidas com amplos favores e privilégios no foro religioso. Necessitavam de sólido patrimônio material, que lhes foi sendo doado por benfeitores; tornaram-se assim proprietárias de consideráveis bens, em virtude dos quais exerciam grande influência não somente na vida civil, mas também dentro da Santa Igreja. Inegavelmente, granjearam múltiplos títulos de benemerência tanto pelos seus feitos corajosos como pela contribuição valiosa que trouxeram à cultura medieval: escolas, academias, arquitetura, historiografia e poesia foram por elas amplamente beneficiadas. Lamentavelmente, porém, o grande prestígio e os vultuosos patrimônios de que as ordens militares gozavam vieram a ser causas preponderantes de seu declínio: surgiram rivalidades entre elas, principalmente depois que cessou o domínio cristão na Terra Santa (fins do séc. XIII); desde então, tais ordens se viram destituídas de sua finalidade primordial (a ação militar ou hospitalar), obrigadas, por conseguinte, a se ocuparem de atividades para as quais não haviam sido criadas; isto não podia deixar de contribuir para solapar o espírito de fervor que movera os respectivos fundadores.
Tendo perdido o seu objetivo primário, algumas das ordens militares foram sendo sucessivamente extintas pela autoridade da Santa Sé (haja vista o famoso caso dos templários). Outras subsistem ainda hoje, secularizadas, porém, e, embora tenham conservado os antigos títulos cristãos, perderam seu significado propriamente religioso para tornar-se quadros de honra ao mérito nacional. Certas ordens militares ainda conservam hoje o caráter religioso, embora atenuado em relação ao que tinham na Idade Média (haja vista a Ordem de Malta, a dos Teutônicos).
Um breve catálogo das mais notáveis ordens militares ainda ajudará o leitor a compreender o significado delas.
3. As três grandes ordens militares da história
Destacam-se por sua ampla ação as três grandes ordens dos Hospitalários (Ordem de Malta), dos Templários e dos Teutônicos.
a) Os Hospitalários de São João de Jerusalém
Constituem a primeira fundação deste novo gênero. Como indica o nome, a princípio não eram guerreiros, mas dedicavam-se ao serviço de um hospital estabelecido no início do século XI próximo ao Santo Sepulcro. No começo do séc. XII, após a fundação do reino latino na Palestina, tomaram índole militar, propondo-se dar hospedagem aos peregrinos e defendê-los em seus itinerários por regiões pouco seguras. Uma vez extinta a dominação ocidental na Palestina (em 1291, com a queda de Akko), tiveram que se retirar para Chipre. Desta ilha passaram para Rodes, onde estabeleceram o centro de suas atividades – daí vem o nome de Ordem de Rodes, que lhes foi acrescentado. Em 1523 se viram obrigados a ceder a ilha de Rodes aos turcos otomanos; em 1530, o então imperador Carlos V da Alemanha lhes concedeu a ilha de Malta como feudo. A ordem tomou posição de prestígio na luta contra os invasores muçulmanos, muito intensa nessa época. A ordem foi reconhecida como soberana pelos imperadores Rodolfo II, em 1607, e Ferdinando II, em 1620, sendo o seu grão-mestre elevado à dignidade de príncipe da Alemanha. No século XVIII, porém, entrou em declínio e, em 1798, os cavaleiros tiveram que ceder a ilha de Malta a Napoleão. Muitos de seus bens no continente europeu foram secularizados. A sede da ordem, que desde o século XVI era conhecida como “Ordem de Malta”, passou a ser Catânia, no sul da Península Itálica. Atualmente, a sede é um território extraterritorial encravado em Roma. O Papa Leão XIII, em 1879, conferiu ao grão-mestre dos Cavaleiros de Malta as honras de cardeal e o título de Eminência. A ordem goza até hoje de soberania e representação diplomática. Mais informações sobre a Ordem de Malta neste artigo.
b) A Ordem Teutônica
Oficialmente chamada de Domus Hospitalis Sanctae Mariae Teutonicorum, foi inicialmente, como a de São João de Jerusalém, uma congregação hospitalar colocada sob a regra de Santo Agostinho e servia ao nosocômio de Santa Maria Nova, nas proximidades de Jerusalém. Em 1189, por ocasião do longo cerco de São João de Acre, dirigido pelos cristãos, os irmãos fundaram um hospital militar e, logo no ano seguinte, passaram a constituir uma autêntica ordem militar. Expandiram-se pela Europa, onde foram fundando províncias religiosas que exerceram notável influência através dos séculos. Em 27 de novembro de 1929, foi dada uma nova regra à ordem, que conserva caráter religioso.
c) Os Templários
Os Fratres Militiae Templi foram uma ordem propriamente militar desde os seus inícios. Seu histórico e sorte final a transformaram na mais legendária e fascinante de todas as ordens da história em termos de imaginário popular e, pela complexidade da sua trajetória e de tudo o que se diz a seu respeito, tanto verdadeiro quanto fantasioso, falaremos dela em outro artigo especialmente dedicado.
4. Outras ordens militares
Além das três grandes ordens militares recém-citadas, é importante considerar outras de menor projeção.
A Península Ibérica conheceu grande número de tais fundações, o que bem se entende ao se levar em conta a multissecular ocupação muçulmana que ali pesou sobre os cristãos.
Na Espanha:
A Ordem de Calatrava, instaurada em 1158 sob a Regra de Cister e aprovada em 1164 pelo Papa Alexandre III;
A Ordem de São Tiago da Espada ou de Compostela, instituída em 1170 aproximadamente, com o fim de proteger os fiéis que peregrinavam ao santuário de Compostela;
A Ordem de Alcântara, cujos inícios datam de 1176, sob a Regra de Cister;
A Ordem de Montesa, que foi fundada pelo rei de Aragão em 1317, após a supressão dos Templários, com o fim de defender o litoral nacional contra os sarracenos. Herdou parte dos bens dos Templários e permaneceu sob a tutela da Ordem de Calatrava.
A administração destas quatro ordens, assim como o título de grão-mestre das mesmas, passaram, por disposição do Papa Adriano VI, para o rei da Espanha em 1523, sem que, contudo, tais sociedades perdessem seu caráter religioso. Aos cavaleiros de Calatrava, São Tiago e Alcântara, o Papa Paulo III concedeu, em 1540, a licença para contraírem matrimônio.
Em Portugal:
A Ordem de Aviz foi fundada em 1147 e aprovada pela Santa Sé em 1162, sendo incorporada à Ordem de Cristo, instituída em 1318, após a supressão dos Templários, pelos reis Diniz e Elisabete, e aprovada pelo Papa João XXII em 1319. À semelhança da Ordem de Calatrava, a de Cristo visava a defesa das fronteiras do reino contra os mouros, que ameaçavam a Algárvia; o seu grão-mestre veio a ser o monarca de Portugal.
Outros países:
Também na Itália, na França e na Alemanha se registraram semelhantes fundações, destinadas a atender a necessidades religiosas e civis da população nacional.
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Adaptado de Dom Estêvão Bettencourt (OSB)
Disponível em: Aleteia
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