MEDITAÇÃO
PARA A QUARESMA
“Deus escolheu aquele que é tolo para o mundo
para confundir os sábios”
João
e Paulo: dois olhares diferentes para o mistério
No Novo Testamento e na história da teologia há coisas que não podem ser
compreendidas sem levar em conta um fato fundamental: a existência de duas
abordagens diferentes, ainda que complementares, ao mistério de Cristo: a de
Paulo e a de João.
João vê o mistério de Cristo a partir da Encarnação. Jesus, o Verbo
feito carne, é para ele o supremo revelador do Deus vivo, aquele fora do qual
ninguém "vai ao Pai". A salvação consiste em reconhecer que Jesus
"veio na carne" (2 Jo 7) e em crer que ele "é o Filho de
Deus" (1 Jo 5,5); "Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho
não tem a vida" (1 Jo 5,12). No centro de tudo, como podemos ver, está a
"pessoa" de Jesus homem-Deus.
A peculiaridade desta visão joanina é evidente se a compararmos com a de
Paulo. Para Paulo, o centro das atenções não é tanto a pessoa de Cristo,
entendida como realidade ontológica, mas a obra de Cristo, isto é, seu
mistério pascal de morte e ressurreição. A salvação não consiste tanto em crer
que Jesus é o Filho de Deus que veio na carne, mas em crer em Jesus "que
morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação" (cf.
Rm 4, 25). O acontecimento central não é a encarnação, mas o mistério Pascal.
Seria um erro fatal ver nisto uma dicotomia na própria origem do
cristianismo. Quem lê o Novo Testamento sem preconceitos compreende que em João
a Encarnação está em vista do mistério pascal, quando Jesus finalmente
derramará o seu Espírito sobre a humanidade (Jo 7, 39), e compreende que para
Paulo o mistério pascal pressupõe e se baseia na Encarnação. Aquele que se fez
obediente até a morte e morte de cruz é aquele que "estava na forma de
Deus", igual a Deus (cf. Fl 2, 5 ss.). As fórmulas trinitárias nas quais
Jesus Cristo é mencionado juntamente com o Pai e o Espírito Santo são uma
confirmação de que, para Paulo, a obra de Cristo toma sentido da sua pessoa.
A diferente acentuação dos dois pólos do mistério reflete o caminho
histórico que a fé em Cristo fez depois da Páscoa. João reflete o estágio mais
avançado da fé em Cristo, aquele que ocorre no final, não no início da redação
dos escritos do Novo Testamento. Ele está no final de um processo de ascensão
às fontes do mistério de Cristo. Isto pode ser visto observando onde os quatro
evangelhos começam. Marcos começa seu evangelho a partir do batismo de Jesus no
Jordão; Mateus e Lucas, que vieram depois, dão um passo atrás e começam a
história de Jesus desde seu nascimento por Maria; João, que escreve por último,
dá um salto decisivo para trás e coloca o início da história de Cristo não mais
no tempo, mas na eternidade: "No princípio era o Verbo e o Verbo estava
com Deus e o Verbo era Deus" (Jo 1,1).
A razão para esta mudança de interesse é bem conhecida. A fé, por sua
vez, entrou em contato com a cultura grega que está mais interessada na
dimensão ontológica do que na histórica. O que conta para ela não é tanto o desenvolvimento
dos fatos, mas o seu fundamento (o archè). A este fator ambiental
foram acrescentados os primeiros sinais da heresia do docetista que questionava
a realidade da encarnação. O dogma cristológico das duas naturezas e da unidade
da pessoa de Cristo será quase inteiramente baseado na perspectiva joanina do
Logos feito carne.
É importante levar isso em conta para entender a diferença e a
complementaridade entre teologia oriental e teologia ocidental. As duas
perspectivas, a paulina e a joanina, embora fundindo-se juntas (como vemos no
Credo Niceno-Constantinopolitano), mantêm a sua acentuação diferente, como dois
rios que, fluindo um no outro, retêm por muito tempo a cor diferente das suas
águas. A teologia e a espiritualidade ortodoxa está baseada principalmente em
João; a ocidental (a protestante mais do que a católica) se fundamenta
principalmente em Paulo. Dentro da mesma tradição grega, a escola de Alexandria
é mais joanina, a da Antioquia mais paulina. Uma faz consistir a salvação na
divinização, a outra na imitação de Cristo.
A cruz, sabedoria de Deus e poder de Deus
Agora eu gostaria de mostrar o que tudo isso significa para a nossa
busca pelo rosto do Deus vivo. No final das meditações do Advento, falei do
Cristo de João que, no momento em que se faz carne, introduz a vida eterna no
mundo. No final destas meditações quaresmais, gostaria de falar sobre o Cristo
de Paulo que muda o destino da humanidade na cruz. Escutemos imediatamente o
texto onde a perspectiva paulina sobre a qual queremos refletir aparece mais
clara:
"Uma vez que na sabedoria de Deus o mundo não o reconheceu pela
sabedoria, Deus quis servir-se da loucura da pregação para salvar os que creem.
Enquanto os judeus pedem sinais, e os gregos procuram sabedoria, nós pregamos
Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gregos, mas poder
e sabedoria de Deus para os chamados, quer judeus, quer gregos. Porque o que se
julga loucura de Deus é mais sábio do que os homens; e o que se julga fraqueza
de Deus é mais forte do que os homens." (I Cor 1,21-25).
O Apóstolo fala de uma novidade na ação de Deus, quase uma mudança de
ritmo e de método. O mundo não foi capaz de reconhecer Deus no esplendor e na
sabedoria da criação; então ele decide revelar-se de maneira oposta, através da
impotência e da loucura da cruz. Não é possível ler esta afirmação de Paulo sem
recordar a palavra de Jesus: "Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra,
porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos
pequeninos" (Mt 11, 25).
Como interpretar esta inversão de valores? Lutero falava de uma
revelação de Deus "sub contraria specie", isto é, através do oposto
do que se esperaria dele[1]. Ele é poder e revela-se na impotência, é
sabedoria e revela-se na loucura, é glória e revela-se na ignomínia, é riqueza
e revela-se na pobreza.
A teologia dialética da primeira metade do século passado trouxe esta visão
às suas consequências extremas. Segundo Karl Barth, não há continuidade entre o
primeiro e o segundo modo de manifestação de Deus, mas sim uma ruptura. Não é
apenas uma sucessão temporal, como entre Antigo e Novo Testamento, mas de uma
oposição ontológica. Em outras palavras, a graça não constrói sobre a natureza,
mas contra ela; toca o mundo "como a tangente o círculo", isto é,
toca nela, mas sem penetrá-la como o fermento faz com a massa. É a única
diferença que, segundo o próprio Barth, o impedia de se chamar católico; todas
as outras lhe pareciam, em comparação, de pouca importância. À analogia
entis, ele opôs a analogia fidei, isto é, à colaboração entre
natureza e graça, a oposição entre a palavra de Deus e tudo o que pertence ao
mundo.
Bento XVI, na sua encíclica "Deus caritas est", mostra as
consequências que esta diferente visão tem em relação ao amor. Karl Barth tinha
escrito: "Onde entra em cena o amor cristão, tem início imediatamente o
conflito com o outro amor [o amor humano] esse conflito não termina
mais"[2]. Bento XVI escreve o contrário:
"Éros e ágape - amor ascendente e amor descendente - nunca se
deixam separar completamente uns dos outros [...]. A fé bíblica não constrói um
mundo paralelo nem um mundo oposto àquele fenômeno humano originário que é o
amor, mas acolhe todo o homem, intervindo na sua busca do amor para
purificá-la, ao mesmo tempo que lhe abre novas dimensões"[3].
A oposição radical entre natureza e graça, entre criação e redenção, foi
atenuada nos escritos posteriores do próprio Barth e agora não encontra quase
nenhum apoiador. Podemos, portanto, aproximar-nos com mais serenidade da página
do Apóstolo para compreender em que consiste realmente a novidade da cruz de
Cristo.
Na cruz, Deus se manifestou, sim, "sob o seu contrário", mas
sob o contrário do que os homens sempre pensaram de Deus, não do que Deus é
realmente. Deus é amor e na cruz registrou-se a manifestação suprema do amor de
Deus pelos homens. Em um certo sentido, só agora, na cruz, Deus se revela
"na própria espécie", no que lhe é próprio. O texto de Primeiro
Coríntios sobre o significado da cruz de Cristo deve ser lido à luz de um outro
texto de Paulo na Carta aos Romanos:
"Com efeito, quando ainda éramos fracos, Cristo morreu no momento
oportuno pelos ímpios. Dificilmente alguém aceitaria morrer por um justo; por
um homem de bem talvez haja quem se anime a morrer. Mas Deus prova o seu amor
para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós, quando éramos ainda
pecadores.” (Rm 5, 6-8).
O teólogo bizantino medieval Nicolau Cabásilas (1322-1392) nos dá a
melhor chave para entender qual é a novidade da cruz de Cristo. Escreve:
"Duas características revelam o amante e o fazem triunfar: a
primeira consiste em fazer o bem ao amado em tudo o que é possível, a segunda
em escolher sofrer por ele e sofrer coisas terríveis se necessário. Esta última
prova de amor muito superior à primeira não podia, no entanto, concordar com
Deus que é impassível a todo o mal [...]. Portanto, para nos dar a experiência
do seu grande amor e para mostrar que nos ama com um amor ilimitado, Deus
inventa a sua aniquilação, realiza-a e fá-lo de modo a tornar-se capaz de
sofrer e de sofrer coisas terríveis. Assim, com tudo o que Ele suporta, Deus
convence os homens do seu extraordinário amor por eles e fá-los voltar para
Si”[4].
Na criação Deus nos encheu de dons, na redenção Ele sofreu por nós. A
relação entre os dois é a de um amor de beneficência que se faz amor de
sofrimento.
Mas o que aconteceu de tão importante na cruz de Cristo que se tornou a
culminação da revelação do Deus vivo da Bíblia? A criatura humana procura
instintivamente Deus na linha do poder. O título que segue o nome de Deus é
quase sempre "onipotente". E eis que, abrindo o Evangelho, somos
convidados a contemplar a absoluta impotência de Deus na cruz. O Evangelho
revela que a verdadeira onipotência é a total impotência do Calvário. É preciso
pouco poder para se exibir, é preciso muito poder para se afastar, para se
apagar. O Deus cristão é este poder ilimitado de esconder a si mesmo!
A explicação última reside, portanto, na ligação inseparável que existe
entre amor e humildade. "Ele se humilhou tornando-se obediente até a
morte" (Fl 2,8). Ele se humilhou tornando-se dependente do objeto do seu
amor. O amor é humilde porque, pela sua natureza, cria dependência. Vemo-lo, no
pequeno, do que acontece quando duas pessoas humanas se apaixonam. O jovem que,
de acordo com o ritual tradicional, se ajoelha diante de uma menina para pedir
sua mão faz o ato mais radical de humildade da sua vida, torna-se um mendigo. É
como se dissesse: "Eu não me basto, preciso de ti para viver”. A diferença
essencial é que a dependência de Deus das suas criaturas nasce unicamente do
amor que tem por elas, o amor das criaturas entre si da necessidade que têm umas
pelas outras.
"A revelação de Deus como amor, escreveu Henri de Lubac, obriga o
mundo a rever todas as suas ideias sobre Deus”[5]. A teologia e a exegese ainda
estão longe de ter tirado todas as consequências disso, creio eu. Uma dessas
consequências é esta. Se Jesus sofre atrozmente na cruz, não o faz
principalmente para pagar a dívida infinita no lugar dos homens. (Na parábola
dos dois servos, em Lucas 7,41 ss, ele explicou antecipadamente que a dívida de
dez mil talentos é perdoada gratuitamente pelo rei!). Não, Jesus morre
crucificado para que o amor de Deus pudesse alcançar o homem no ponto mais
remoto para o qual ele se tinha lançado, rebelando-se contra ele, ou seja, a
morte. Também a morte é agora habitada pelo amor de Deus. No seu livro sobre Jesus
de Nazaré, Bento XVI, escreveu:
"A injustiça, o mal como realidade não pode ser simplesmente
ignorado, deixado para lá. Tem de ser eliminado, vencido. Esta é verdadeira
misericórdia. E que agora, dado que os homens não o podem fazer, o próprio Deus
o faz - esta é a bondade incondicional de Deus"[6].
O motivo tradicional da expiação dos pecados conserva, como podemos ver,
toda a sua validade, mas não é a razão última. O motivo último é "a
bondade incondicional de Deus", o seu amor.
Podemos identificar três etapas no caminho da fé pascal da Igreja. No
início há apenas dois fatos: "morreu, ressuscitou". "Tu o
crucificaste, Deus o ressuscitou", clama Pedro às multidões no dia de
Pentecostes (cf. At 2, 23-24). Numa segunda fase, faz-se a pergunta: "Por
que morreu e por que ressuscitou?" e a resposta é o kerigma: "Morreu
pelos nossos pecados; ressuscitou pela nossa justificação" (cf. Rm 4, 25).
Mais uma pergunta permanecia: "E por que morreu pelos nossos pecados? O
que o levou a fazê-lo?" A resposta (unânime, neste ponto, de Paulo e de
João) é: "Porque nos amou". "Me amou e se entregou por
mim", escreve Paulo (Gl 2, 20); "Tendo amado os seus que estavam no
mundo, amou-os até o fim", escreve João (Jo 13, 1).