Dizem que ser médico é
um sacerdócio tão exigente como ser padre. Concordo. Conheço muitos médicos que
não descansam enquanto não conseguem salvar os seus doentes, mesmo quando sabem
que não os podem curar. Não desistem deles nem os deixam desanimar. Permanecem
atentos e disponíveis para os ouvir e validar os seus sintomas. São fiéis aos
valores que professaram quando fizeram o Juramento de Hipócrates e declararam,
em primeiro lugar, que toda a sua ação médica será para o benefício dos
doentes, evitando todo o mal voluntário e corrupção. Sobre o que vêem e sabem,
também juraram guardar “silêncio como um segredo religioso”. Tentar curar e não
provocar danos nos doentes é, em resumo, a essência do prático.
Um sacerdote que fez
votos perante Deus e perante a Igreja, promete o mesmo que um médico. Enquanto
um tenta curar o corpo, o outro tenta curar o espírito, mas ambos percorrem
caminhos paralelos que, em alturas de maior fragilidade, se chegam a cruzar. Um
padre que acompanha no sofrimento, que reconhece as dores do outro, que salva
do sem-sentido de tantas desistências provocadas por dramas, perdas, crises,
ruturas e acontecimentos trágicos, que faz ‘banco’ na urgência de poder
devolver a paz interior e o sentido de vida a quem se sente desistente, também
pode ser considerado um ‘médico’ da alma.
A grande diferença entre
um e outro é a transcendência. O padre não é um clínico, como é evidente.
Enquanto no médico se vê a ação de um homem sobre outro homem, no padre existe
a possibilidade do encontro com Deus. E da cura espiritual, que permite aos
homens elevarem-se acima das suas circunstâncias e divinizarem-se,
humanizando-se. O paradoxo é grande, mas é real. O médico pode curar ou não as
doenças. O padre não tenta sequer curar doentes, mas cuida de restaurar neles a
esperança, de lhes transmitir fé e confiança num Deus que, ele sim, pode
reforçar a fortaleza interior e dar as forças para avançar, mesmo quando o
caminho implica atravessar doenças muito graves ou perdas irreparáveis.
Quem já se sentiu doente
e vulnerável do ponto de vista da saúde física conhece, por experiência, o
poder terapêutico de um bom médico. Quem já esteve como que caído, perdido ou
desistente, quem já passou por dores morais e emocionais provocadas por crises
devastadoras ou acidentes inesperados, sabe o poder resgatador e curativo de um
bom padre. E é por saber tudo isto e também por estar consciente de que a
maioria dos padres da Igreja católica dá verdadeiro testemunho de Deus, que
escrevo sobre os outros padres.
Penso nos bons padres
que existem em todo o mundo e de quem não se fala por só haver espaço nos media
para os tarados e os abusadores. Mesmo sendo estes uma ínfima minoria na
Igreja, são estes que deixam marcas devastadoras e indeléveis no tempo.
Sobretudo nas suas vítimas. Por causa destes levanta-se uma suspeita geral
sobre todos os outros. Hoje em dia qualquer sacerdote que seja visto a abraçar,
a acolher no seu gabinete ou a caminhar sozinho ao lado de um jovem, rapaz ou moça, pode ser considerado suspeito pela comunidade.
Detesto generalizações e
escrevo contra toda esta onda de suspeição sobre os padres porque conheço
centenas deles e com cada um aprendo alguma coisa. Todos me acrescentam
paisagem interior, todos me ajudam a expandir o coração e os horizontes, todos
me ajudam a perceber o que me faz mais humana, todos me mostram como posso ir
mais longe e chegar mais alto, deixando ao meu critério ir por esses caminhos
ou por outros. Conheço alguns destes bons padres por os ouvir em homilias,
conheço outros porque os leio e, outros ainda, por ter com eles conversas
verdadeiramente iluminantes e transformadoras.
Ao longo da vida
entrevistei vários padres portugueses e estrangeiros e todos se revelaram seres
humanos incríveis, capazes de dar a sua vida pelos outros. Estou a pensar nos
missionários em África, mas não só. Também penso nos que atuam em zonas de
guerra e conflito no Oriente e no Ocidente, nos que arriscam pisar campos
minados para conseguir alimentos e medicamentos. Nos que são perseguidos e
violentados por crerem e falarem de Deus em latitudes onde Deus é uma palavra
proibida, impronunciável.
Sou jornalista e sou
professora e detestava que só os maus jornalistas ou os maus professores fossem
motivo de notícia, a tal ponto que se começasse a generalizar perversamente e,
de repente, só se falasse de maus profissionais entre nós. Hoje em dia é fácil
ouvir conversas sobre ‘os padres’ e raramente são conversas construtivas. De
notícia em notícia, os padres vão ficando rotulados e correm o risco de serem
todos enfiados no mesmo saco. É pena e é uma grande injustiça porque, insisto,
a esmagadora maioria dos sacerdotes são pessoas altamente resgatadoras e
escrupulosamente cumpridoras da sua missão.
Todos os dias há
notícias sobre abusos sexuais em todo o mundo, cometidos por todo o tipo de
gente, mas é claro que nenhum abusador é tão chamativo como um padre. Percebo,
porque realmente nenhum abusador é tão malvado como aquele que é suposto
existir apenas para proteger, ajudar, dar bons conselhos e bons exemplos. Por
isso mesmo, defendo que todo e qualquer abuso por parte de um padre deve ser
noticiado e imediatamente denunciado! Não me passa pela cabeça que seja
encoberto pela hierarquia da Igreja e assumo a minha convicção de que deve ser
entregue às autoridades eclesiais e civis, para ser julgado e devidamente
punido como qualquer outro ser humano.
Por tudo isto é óbvio
que não escrevo para defender os padres abusadores, que abomino com todas as
minhas forças. Escrevo para falar dos outros. Dos que usam a sua influência, a
sua sabedoria, a sua capacidade de oração e a palavra de Deus para salvar do
sofrimento e do sem-sentido. Tenho 57 anos, sou crente e estou envolvida em
organizações de Igreja e grupos de oração há décadas. Pertenci aos Escuteiros
até ser adolescente e, depois, integrei os chamados grupos de jovens. Dos vinte
aos trinta anos estive mais afastada da Igreja, mas nunca de Deus. Voltei pela
mão de padres jesuítas que perceberam a minha dificuldade em lidar com uma
Igreja distante do concreto da vida dos seus fiéis. Identifiquei-me e fiquei
até hoje.
Conheço, como disse,
centenas de padres em todo o país, mas também muitos estrangeiros que conheci
pelo mundo fora, em viagens e reportagens que fiz. Em Portugal, país que
percorro recorrentemente de norte a sul por causas e coisas ligadas a
movimentos cívicos, encontro muitos padres de província que são tão bons ou
melhores que os das grandes cidades. Escrevo esta crónica no Douro, em tempo de
Quaresma, num lugar onde as celebrações se multiplicam e requerem a presença
constante, ainda mais próxima e disponível dos sacerdotes. Vou à Missa em
Almacave, freguesia de Lamego, onde nestes últimos anos fiquei a conhecer
diferentes padres, dois deles excecionais. Nesta semana tem celebrado o mais
novo dos dois de que falo e as suas palavras fazem eco pelo bom senso e
sabedoria, mas também pelos caminhos que aponta.
A Igreja românica de
Almacave (que remonta às origens da nacionalidade) enche-se de homens e
mulheres mais velhos, mas também de rapazes e raparigas muito novos, que tocam
e cantam com uma alegria contagiante. Impressiona ver esta comunhão e tanta
energia nesta povoação duriense, mas a capacidade de mobilização dos padres é
que é verdadeiramente tocante.
O mais novo, que ouvi
agora mais vezes, é muito eloquente e sabe ler os sinais dos tempos. Fala com
todas as gerações usando palavras simples que reforçam a confiança e devolvem a
esperança a quem porventura a perdeu. Explica e enquadra as leituras, dando-lhe
contornos ajustados ao quotidiano dos paroquianos da sua paróquia. Ajuda os
crentes a separar o essencial do que é acessório e a transpor para a sua vida
os fundamentos do cristianismo. Não se perde em abstrações nem exortações
apostólicas indecifráveis. Muito pelo contrário, integra a realidade real, fala
de perdão e misericórdia e dá o exemplo. Abraça todos os que se deixam abraçar.
No sentido literal e metafórico. Sem medo de ser confundido, felizmente, pois
sabe que pertence à esmagadora maioria dos outros padres, os que revelam a
verdadeira Igreja e o verdadeiro Deus.
Laurinda
Alves
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Observador
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