Dr. Márcio Rufino Barbosa Júnior é médico
cirurgião cardiovascular. Nos primeiros meses de 2020, ele passou por momentos
desafiadores, mas sua fé católica não o permitiu desanimar. O jovem médico, de
33 anos, acompanhou o início da pandemia no exterior e, hoje, atua na linha de
frente contra a Covid-19 no Brasil.
No testemunho que publicamos abaixo, o Dr.
Márcio, que também é integrante da banda católica Ventoleve, fala sobre suas
impressões acerca da pandemia, o que tem visto no hospital em que atua e como,
na opinião dele, vamos sai dessa crise.
“Em novembro de 2019, um mês antes de eclodir
a epidemia do COVID-19 na cidade chinesa de Wuhan, estive pela primeira vez no
continente asiático. Passei um mês trabalhando no Hospital Universitário de
Juntendo, em Tóquio. Sou cirurgião cardiovascular, recém-formado pelo Instituto
Dante Pazzanese de Cardiologia, mas na ocasião eu ainda era um residente em
busca de novos conhecimentos.
Já era esperado que esta seria uma rica
experiência profissional, no entanto, eu não imaginava que esta viagem mudaria
também minha forma de enxergar a vida. Um país completamente diferente de tudo
o que eu havia encontrado, um povo extremamente disciplinado, reservado,
simples e acolhedor.Ali me deparei com o primeiro choque cultural: a extrema
densidade populacional.Cruzamentos e calçadas lotadas de pessoas circulando,
como um imenso formigueiro humano. Um fluxo tão intenso, que fazia a cidade de
São Paulo parecer tranquila, e me dava a certeza que eu estava literalmente do
outro lado do mundo. Olhar as pessoas nas ruas usando máscaras foi muito
estranho. Parecia exagerado. Entrar nos
museus e perceber uma preocupação coletiva dos visitantes com uma simples tosse
ou espirro foi até engraçado. Para mim, soava como uma neurose coletiva; o medo
de um inimigo inexistente.
Apesar de todas estas diferenças, as
semelhanças foram maiores. Conheci um colega chamado Shunya Ohno, que me
acolheu no hospital onde trabalhei. Ele traduzia as visitas médicas matinais da
UTI para mim, e também entravamos em cirurgia quase todos os dias juntos. Nós
dois tínhamos uma conexão interessante. Ele tinha a mesma idade que eu, os
mesmos objetivos profissionais. Assim como eu, era casado e tinha uma filha de
dois anos. Assim como a minha, a mãe dele
era professora de alfabetização. Havia ainda uma série de outras
semelhanças inacreditáveis. Parecia um irmão gêmeo, ou melhor, outro “eu” no
Japão.
Ao passear pelo Parque Ueno, no coração da
cidade, às vezes me dava a leve impressão que eu estava caminhando pelo Parque
Ibirapuera. A vegetação era completamente diferente, mas algo ali me trazia a
lembrança. Quanto mais eu conhecia o povo, mais eu descobria os regionalismos,
até o ponto de entender que o povo de Osaka era o mineiro do Japão.
Em João, capítulo 19, versículo 11, Jesus pede
ao Pai que nós sejamos um, assim como Eles são. Retornei ao Brasil tendo visto
e vivido tantas coisas naquele país, que hoje, mais do que nunca, reverberam em
mim não apenas como uma lembrança, mas ditando uma convicção de que somos um.
Esta é a minha percepção.
Vi a epidemia transformar-se em uma pandemia
de perto. Em março deste ano, quando a Itália ganhou a atenção do mundo de
forma súbita, eu estava na capital da Suíça, a menos de três horas de trem de
Milão, o segundo epicentro do coronavirus.
Vi a transformação das pessoas. De alguma
forma, os moradores de Berna pareciam muito tranquilos, como se os alpes
pudessem conter a transmissão do país vizinho. Inicialmente, havia entre os
suíços um sensação coletiva de que tudo não passava de uma histeria, e que a
infecção teria outro comportamento em um país rico como o deles. Riram de mim
quando andei de mascara nas ruas. Vi o comportamento das pessoas de certa forma
arrogante, as praças cheias no final de semana, muitas famílias viajando para
as lotadas estações de esqui, ruas, correios, supermercados lotados e sem
restrições.
No meu caminho dentro do Hospital
Universitário de Berna, Inselspital, em direção ao centro cirúrgico, passava
diariamente por um setor direcionado aos pacientes com suspeita de COVID-19. Vi
as cadeiras deste setor vazias nos primeiros dias, e as filas que davam voltas
no quarteirão de um dia para o outro.
As ruas mudaram do tom tranquilo para a
inquietude diante do exército e da doença ganhando rostos familiares. Demorei
um ano para conseguir este estágio (que duraria 6 meses) e uma hora para
decidir voltar para casa. Minha esposa estava em uma gravidez de risco no
Brasil, minha filha não estava bem, e eu não tive outra escolha. A Suíça fechou
as fronteiras, e eu consegui voltar para casa em um dos últimos voos.
Retornando ao meu país, vi um controle frágil
nos aeroportos. Uma permissividade que poderia ter sido evitada. Fiz
voluntariamente minha reclusão quando tudo ainda era permitido aos brasileiros.
Passada essa quarentena, reencontrei minha
família. Fizemos um novo exame para saber como estava minha filha, pois a
gestação já se aproximava do quinto mês. Infelizmente meu bebê não estava bem,
e parecia questão de dias para ela partir. E assim foi. Pareceu que minha filha
estava esperando eu voltar, cruzar o oceano para se despedir.
Aqui, vi a crise de perto. Dei plantões
vestido como um astronauta, triando pacientes com suspeita de coronavírus em
uma emergência de hospital. A ansiedade e o medo dos funcionários eram
notórios. Todos estavam estressados de estar ali, frente a frente com a
infecção.
Vi famílias se encontrando nas UTIs, como
pacientes. Vi uma mãe culpando o filho pela infecção, colocando sobre os ombros
do adolescente a possível morte dos avós que moravam com eles e, provavelmente,
seriam infectados. Era muito cansativo e o tempo parecia parar de correr.
Estar em uma sala com 20 leitos, onde todos
eram portadores do vírus, e destes apenas dois ainda não respiravam com ajuda
do aparelho de ventilação, era assustador. Nesta sala, vi o despreparo
coletivo, vi que era virtualmente impossível de se protejer da transmissão. Sem
culpa nenhuma, técnicos de enfermagem que nunca haviam lidado com um paciente
grave, eram redirecionados para atender a esta nova demanda. Assim como eles,
enfermeiros e médicos davam seu melhor, mas não estavam preparados.
Aliás, sobre estar preparado, ninguém nunca
esteve. Nem nos Estado Unidos, na Europa e nem em país nenhum do mundo. Quem
poderia imaginar algo dessa proporção?
Toda crise gera um ruptura, e agora existirá
um mundo antes e outro depois do COVID-19. Sistemas de saúde, aeroportos,
escolas e outros locais públicos certamente irão se reorganizar.
No Brasil, a polarização política ainda é tão
forte, que influencia até nas opiniões científicas. Atualmente, as pessoas
divergem entre si sobre o tema, apegadas às suas convicções ideológicas, como
se o vírus tivesse “direita e esquerda”. Parece que ninguém se permite dizer:
eu não sei. Principalmente os médicos, pois estes deveriam conduzir a opinião
pública com firmeza, mas divergem entre si nesta torre de Babel, onde cada um
defende seus interesses.
A cada dia surge uma nova pesquisa, melhor
estruturada e desconstruindo a publicação anterior. Tenho a sensação de que
somos crianças discutindo sobre um tema complexo e falando bobagens, ou um
viajante descrevendo um rio enquanto navega.
Esta ausência de consenso, gerou uma crise de
confiança na sociedade. As pessoas se perguntam em quem devem acreditar. As
lideranças da saúde precisam falar a mesma língua, com base na ciência, e nos
conceitos já solidificados.
É doloroso notar que ainda levará um bom tempo
para que tudo volte à normalidade. Famílias unidas, missas aos domingos, festas
com amigos, abraços e até o simples aperto de mão, são privações difíceis para
um povo como o nosso.
Desejo que saibamos tirar desse período o
melhor de nós. Resgatar o valor do que realmente importa, ressignificar nossos
objetivos e organizar novas prioridades. Menos tempo no celular, e mais atenção
aos filhos. Mais carinho com nossos pais.
Que a fragilidade e vulnerabilidade que nos
surpreenderam, coloquem o nosso coração pronto para receber o único que tem
controle sobre todas as coisas.
É o doente quem precisa de um médico, disse o
nosso mestre. Então, esse é o momento oportuno para reconhecermos humildemente
que estamos todos no mesmo barco, sob a mesma tempestade, e um buraco no convés
ou na proa pode afundar a todos. Mas quem dorme conosco, e precisa despertar no
nosso coração é Jesus; que está pronto para acalmar esse mar.”
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Aleteia
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