sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Eliminar o símbolo religioso dos espaços públicos é cair numa submissão incondicional ao príncipe


O problema do confronto entre poder político e poder religioso é tão velho quanto a própria humanidade. Reportemo-nos, por exemplo, à luta bíblica entre Caim e Abel: este, descrito como o pastor que agradava a Deus, é morto por Caim, o agricultor territorialista e guerreiro, que resolve os problemas de um modo bem prático e secular: usa a força para eliminar o desafeto, e ainda responde de modo petulante a Deus quando este lhe pede contas do irmão morto: “não sei do meu irmão, serei eu o guardador dele?”

O conflito entre o xamã ou pajé e o cacique está bem documentada nos estudos antropológicos mais sérios: trata-se do eterno conflito entre a capacidade administrativa, representada pela habilidade em gerir a economia, a máquina pública e os assuntos de guerra e paz, de um lado, e a capacidade especial de profetizar, de intermediar os assuntos entre os homens e Deus de modo ostensivo, por outro. A prevalência de um dos dois também sempre foi registrada, ao lado dos raros períodos – como aquele registrado entre o êxodo e a Monarquia, na história bíblica – em que houve alguma harmonia entre estas dimensões, no que diz respeito aos titulares do poder que emana dessas atitudes.


A história do ocidente cristão tem sido marcada, de igual modo, por esta tensão. As perseguições religiosas do império romano (para o qual a religião era parte da estrutura de legitimação do poder político) são sucedidas pela resistência ao cesaropapismo que sempre foi a ambição dos grandes governantes desde Constantino, e atingiu um certo equilíbrio tendente a favorecer o braço religioso durante a chamada Alta Idade Média, na qual as invasões bárbaras impediram qualquer tentativa consistente de centralização do poder político. Este, de certa forma, passou a depender da estrutura mais consistente da Igreja que sobrevivera à queda do império Romano.

A Baixa Idade Média traz a reorganização dos poderes políticos e o retorno da tensão de legitimidade: compare-se, por exemplo, a estrutura teocêntrica (embora nunca teocrática) do pensamento de Tomás de Aquino com a desconfiança que Marsílio de Pádua levanta sobre as divergências religiosas como potenciais ameaças à paz. Marsílio constrói, sobre tal desconfiança, toda uma teoria da ameaça à paz supostamente implícita nas atitudes religiosas, designando os detentores do poder político como árbitros da religião – os governantes, para Marcílio, seriam os “defensores da paz” sempre ameaçada pelos conflitos religiosos dos não confiáveis sacerdotes. Como se as guerras não fossem, desde sempre, assunto de príncipes, mesmo quando sob pretextos religiosos.

As cruzadas e as guerras religiosas do final da idade média e começo da idade moderna pareceram dar razão a Marcílio, e foram seguidos pelo Iluminismo e pela Reforma. Os grandes descobrimentos e a centralização dos impérios abriram caminho para as pretensões estatais totalitárias e o discurso da desconfiança quanto à religião sacerdotal e a tendência à sobrevalorização do príncipe em detrimento do sacerdote; não é de espantar que Lutero tenha buscado eliminar a ideia de um sacerdócio ordenado e institucional em favor de um sacerdócio comum a todos cujo exercício, quando envolvesse liderança (mesmo religiosa) deveria passar por algum grau de legitimação social e reconhecimento político, e Maquiavel, Locke, Hobbes, Espinosa, Feuerbach, Kant, Hegel, Marx e Sartre, somente para citar os mais conhecidos, nunca tenham relutado em avançar, com seus sistemas filosóficos, no campo teológico e na hermenêutica bíblica, sempre para reforçar a deslegitimação do sacerdote sobre o príncipe. Esta tendência é tão hegemônica nas Academias contemporâneas que parece não haver memória de que há outras posições possíveis e eventualmente mais razoáveis.

Este fenômeno vem sendo marcado, em nossos dias, por uma busca frenética e muitas vezes até bem intencionada de eliminação de determinados símbolos religiosos dos espaços públicos. Não de quaisquer símbolos religioso, porque isto, ademais de impossível, sequer é demandado: imagine-se arrancar cada estátua de Têmis dos fóruns, ou cada estátua de Minerva, Semíramis ou Marianne, a deusa positivista, das praças, notas de dinheiro ou universidades públicas. Imagine-se eliminar cada “praça dos Orixás” existente no país, ou mesmo as pequenas imagens de budas gordinhos, elefantinhos e deusas indianas de muitos braços, adornados com incenso barato e pequenas moedas, ou mesmo só quadros de “Yin/Yang” existentes em muitos espaços públicos e repartições por aí. Nem se mencionam estas coisas como de alguma forma agressivas a uma pretensa neutralidade religiosa nos espaços políticos, porque sabe-se que são deuses de fancaria, metáforas hipostatizadas de ambições estritamente humanas, ou de poderes já domesticados e desinfluentes .

Esta luta contra símbolos religiosos é, portanto, seletiva: trata-se de um combate relacionado a uma pretensa resistência à teocratização dos espaços públicos, os símbolos das três grandes religiões: a estrela de Davi, o Crescente muçulmano e o crucifixo cristão; é claro que a palavra “Deus” também se insere entre estes símbolos controvertidos.

Ressalte-se que a estrela de Davi hoje está associada ao Estado de Israel – um povo reunido em torno de sua origem teonômica, embora governado de forma declaradamente laica – e o Crescente associa-se aos países muçulmanos, para os quais a teocracia não é fato controvertido, mas ideal religioso. Sua relação com o poder político é, destarte, explícita, e a significação de sua utilização em espaços públicos nunca se divorcia desta relação.

Quanto aos crucifixos, tanto as Cortes Judiciais brasileiras quanto a Corte da União Europeia recentemente decidiram que é um objeto cultural, que representa uma identidade histórica e religiosa não violadora da neutralidade estatal. Trata-se, dizem as Cortes, de abertura à expressão pública de uma característica constitutiva da população; não de uma potencial agressão à liberdade religiosa.

A Palavra Deus também tem sido objeto de longas discussões no Judiciário. Citem-se ações judiciais como a que visa retirá-la das notas de dinheiro, por um lado, e a que visava incluí-la no preâmbulo da Constituição do Acre, por outro (esta última sob o fundamento de que deixar de reproduzir na Constituição local as disposições da Constituição Federal seria inconstitucional, e os Estados-Membros estariam obrigados a constar, no seu preâmbulo, a fórmula deísta). O Judiciário brasileiro julgou improcedentes as duas pretensões, considerando a questão do mero uso da palavra Deus como estritamente política e, portanto, não somente infensa ao controle judicial quanto não violadora da autonomia das esferas.

Embora Marx tenha chegado a vaticinar o próprio desaparecimento desta palavra – qualquer que seja o símbolo que a veicule num determinado momento- quando a humanidade ingressasse num pretenso momento redimido de comunismo pleno e ausente de Estado, a realidade que esta palavra traz, mesmo como simples questionamento pelo fundamento último da totalidade da existência a que se pode responder negativamente, é inafastável da própria condição humana. Uma humanidade que já não se colocasse esta palavra, mesmo para negar o que ela evoca, qualquer que seja a grafia ou expressão concreta com que ela se exprima num determinado momento histórico, já não seria mais humanidade, mas, como diz K. Rahner, uma mera comunidade sofisticada de animais gregários, ou de robôs de carne e osso, submissos a poderes que nem ousariam questionar.

Assim, o uso da palavra “Deus” e do crucifixo em instâncias oficiais, em nosso contexto cultural, não representa nenhuma instância de agressão à autonomia da esfera estatal perante a esfera religiosa e vice-versa.

Caso eliminasse completamente as menções públicas aos símbolos que falam de Deus, a humanidade não somente teria esquecido de si mesma como, mais ainda, teria se esquecido mesmo de que houvesse algo para lembrar além de uma submissão incondicional ao príncipe, qualquer que fosse a origem da sua proclamada legitimidade.
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Fonte: ZENIT

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