Miqueias,
termo hebraico que pode ser traduzido por “quem como Javé?”, uma espécie de
aclamação litúrgica, nasceu em Morasti – aldeia situada no interior de Judá,
perto da cidade de Gat, a cerca de 30 km a sudoeste da capital Jerusalém –, em
meio à realidade conflitiva e sofrida dos camponeses, vítimas dos grandes
proprietários de terra e do exército.
Ao
abrirmos o livro do profeta Miqueias, deparamo-nos com fortes denúncias e
julgamentos severos contra as autoridades do seu tempo. À luz de seu sofrimento
e de sua mística, o profeta acredita que Javé, o Deus da vida, não compactua
com a realidade de injustiça. No século VIII a.C., Judá passou por momentos
muito difíceis, como guerras constantes, expropriação de produtos e de terras
dos camponeses, recrutamento para os exércitos e para as obras públicas.
A
situação em que vivemos não mudou muito. Os conflitos em torno da posse da
terra continuam e muitas pessoas são assassinadas por defenderem o direito à
terra. Enfrentamos altas tributações no campo e na cidade, e as autoridades
políticas defendem seus próprios interesses. Cresce o desemprego e a violência,
o que faz o medo e a insegurança se tornarem parte do nosso cotidiano. Impera a
lógica do “salve-se quem puder”. Com os pés fincados no século VIII a.C. e em
nossa realidade, queremos reler a profecia de Miqueias, buscando luzes para
iluminar a nossa pastoral.
Como
porta-voz da população camponesa, esmagada pelo sofrimento, Miqueias grita:
Escutem
bem, chefes de Jacó, governantes da casa de Israel! Por acaso, não é obrigação
de vocês conhecer o direito? Inimigos do bem e amantes do mal, vocês arrancam a
pele das pessoas e a carne de seus ossos. Vocês são gente que devora a carne do
meu povo e arranca suas peles; quebra seus ossos e os faz em pedaços, como um
cozido no caldeirão. Depois, vocês gritarão a Javé, mas ele não responderá.
Nesse tempo, ele esconderá o rosto, por causa da maldade que vocês praticaram
(Mq 3,1-4).[1]
Podemos
ouvir a voz do profeta nos capítulos 1-3, oráculos escritos no fim do século
VIII a.C., período no qual a Palestina era dominada pelo império assírio. Com
base nesses capítulos, é possível enxergar a dura realidade do povo, esmagado
pelos tributos entregues ao império e aos dirigentes de Judá. Além disso, o
povo era explorado pelos fazendeiros, militares e comerciantes, com a sucessiva
perda de seus próprios direitos: família, casa e terra (2,1-11). O profeta
denuncia a absoluta miséria e a opressão de seus irmãos, que carinhosamente
chama de “meu povo” e também “meus ossos”.
Conhecendo
o profeta Miqueias
Palavra
de Javé que veio a Miqueias de Morasti, nos dias de Joatão, Acaz e Ezequias,
reis de Judá, sobre o que ele viu a respeito de Samaria e de Jerusalém (Mq
1,1).
O
primeiro versículo do livro de Miqueias situa a sua atividade em três reinados
dos reis de Judá: Joatão (740-736 a.C.), Acaz (736-716 a.C.) e Ezequias
(716-687 a.C.). Mas, segundo a informação do livro sobre a destruição da
Samaria (Mq 1,2-7: 722 a.C.) e a invasão de Judá pela Assíria (Mq 1,8-16: 701
a.C.), Miqueias atuou principalmente entre 725-701 a.C., no reino do Sul. Nesse
período, Judá estava sendo ameaçado e devastado pela Assíria.
Miqueias,
termo hebraico que pode ser traduzido por “quem como Javé?”, uma espécie de
aclamação litúrgica, nasceu em Morasti – aldeia situada no interior de Judá,
perto da cidade de Gat, a cerca de 30 km a sudoeste da capital Jerusalém –, em
meio à realidade conflitiva e sofrida dos camponeses, vítimas dos grandes
proprietários de terra e do exército. Morasti estava localizada na planície da
Shefelá, a região agrícola mais fértil e produtiva de Judá. Nessa área havia
numerosa criação de ovelhas e grande produção de trigo e cevada, por isso os
conflitos e grilagens ali eram frequentes e causavam sérios problemas e
sofrimentos aos pequenos agricultores.
Gat era
uma das cidades fortificadas, junto com Soco, Laquis, Maresa e Odolam, em um
círculo de dez quilômetros, para proteger a capital Jerusalém (Mq 1,8-16). Era
evidente em Morasti-Gat a presença constante de militares e funcionários da
corte de Jerusalém, os quais cometiam crimes de abuso de poder para cobrar
impostos, recrutar camponeses e extrair seus produtos agrícolas.
Além da
violência diária, a região de Morasti, quase na fronteira do reino de Judá com
a Filisteia, sofreu vários conflitos militares com os filisteus e os assírios
no tempo de Miqueias. Conflitos de terra cobiçada e expropriada, produtos
extraídos, cobrança de impostos, recrutamento, trabalho forçado, corrupção,
guerras, violência, muito sofrimento, essa é a realidade que cerca o “meu povo”
(do profeta Miqueias).
Tal
realidade transparece nos oráculos do profeta: “Cobiçam campos, e os roubam;
querem uma casa, e a tomam. Assim oprimem ao varão e à sua casa, ao homem e à
sua herança” (Mq 2,2); “Prestem atenção, governantes de Israel, vocês que têm
horror ao direito e entortam tudo o que é reto, que constroem Sião com sangue e
Jerusalém com perversidade” (Mq 3,9b-10). É o linguajar duro e concreto de quem
vive no meio do povo espoliado e exprime sua dor e ira contra os poderosos. O
estilo rural do profeta o torna semelhante a Amós, também profeta do povo do
campo, no reino do Norte.
Miqueias
e Isaías foram profetas do mesmo período, no reino do Sul, Judá. Isaías foi
educado no templo e na cidade de Jerusalém, local de sua atuação profética.
Miqueias, por sua vez, vivia na aldeia do interior de Judá e pode ter sido um
agricultor, um ancião, representante de um lugarejo. Atuou como porta-voz das
pessoas oprimidas contra o grupo dirigente: chefes, governantes, sacerdotes e
profetas de Jerusalém (Mq 3,11). Diferentemente dos profetas da corte, ele não
se deixou corromper pela ganância e pelo lucro, mas se autoafirmava como homem
“repleto de força, do espírito de Javé, do direito e da fortaleza para
denunciar a Jacó o seu crime e a Israel o seu pecado” (Mq 3,8).
Pisando o
chão de Miqueias
Vocês
expulsam da felicidade da casa as mulheres do meu povo, e tiram dos seus filhos
a dignidade que eu lhes tinha dado para sempre (Mq 2,9).
A família
e a casa são as principais vítimas: as mulheres expulsas da casa, espaço
fundamental da vida, deixando as crianças sem direito à herança. O tempo de
Miqueias foi um dos mais difíceis na vida do povo do reino de Judá. Vários
acontecimentos internos e externos causaram espoliação e violência contra os
camponeses nesse período.
No
cenário internacional, aconteceu a expansão do império assírio, sob o comando
de Teglat-Falasar III (745-727 a.C.). Esse império viveu um momento de
reflorescimento, aumento de força e imperialismo, buscando obter o domínio dos
pequenos países, também da Síria e da Palestina, por volta de 740 a.C. Para
impedir o avanço da Assíria, Israel (Efraim) fez aliança com o rei de Aram
(Síria), em 735 a.C. Os dois reinos, incluindo cidades filisteias e arameias,
tentaram obter o apoio de Judá. Porém, Acaz, rei de Judá, não aceitou entrar na
coalizão contra a Assíria. Síria e Israel empreenderam guerra contra Judá.
Esse
movimento ficou conhecido como a guerra siro-efraimita (735-734 a.C.). Foi uma
guerra desastrosa para o povo de Morasti-Gat, a região da Shefelá, que foi
palco de diversas guerras. Essa região enfrentou guerra, pilhagem, violência
contra a família, a casa e a terra do “meu povo”! Diante do avanço das tropas
da Síria e de Israel, Judá pediu proteção ao império assírio. A partir desse
momento, Judá se submeteu e se tornou vassalo da Assíria, pagando tributos.
Mais cobrança e espoliação contra a população camponesa!
Teglat-Falasar
III pôs fim à insurreição dos países aliados, destruindo Damasco, capital de
Aram, e tomando posse das cidades estratégicas de Israel (2Rs 15,29). Em 727
a.C., após a morte de Teglat-Falasar III, seu filho, Salmanasar V (726-722
a.C.), assumiu o trono da Assíria. Nessa mudança, Israel se revoltou de novo
contra a Assíria. Salmanasar V invadiu Israel em 724 a.C. e sitiou a cidade de
Samaria, capital do Norte. Em 722 a.C., seu filho, Sargon II (722-705 a.C.),
apoderou-se da cidade e deportou parte da população para a Mesopotâmia e a
Média. Foi o fim do reino do Norte (722 a.C.).
E o que
aconteceu com o reino do Sul, Judá? Com a queda da Samaria, começou um novo
período em Judá:
a) Muitos
israelitas da Samaria fugiram para Judá, incluindo um grupo com bons recursos.
Novos assentamentos se formaram na área rural e houve grande aumento
populacional nas cidades principais, como Laquis e Beersheva. Nesse período, a
população de Jerusalém, por exemplo, aumentou de mil para 15 mil habitantes;
b) Com o
desaparecimento do poderoso Estado de Israel, houve crescimento e expansão de
Judá, especialmente por causa da intensificação da atividade econômica: azeite
e vinho no mercado internacional, a indústria de cerâmica etc. Judá progrediu e
prosperou!
Mas, como
sempre, o desenvolvimento beneficiou apenas os ricos e poderosos de Jerusalém.
O aumento populacional provocou uma corrida selvagem às terras e casas:
“Cobiçam campos, e os roubam; querem uma casa, e a tomam” (Mq 2,2). Com o
aumento do comércio internacional, os governantes intensificaram a espoliação
dos produtos dos camponeses. Para isso, utilizaram até a religião.
Para
aumentar os recursos e o controle, o rei Ezequias fez a “reforma religiosa”,
promovendo o movimento de centralização: por exemplo, declarou o culto, o
sacrifício e a festa somente no templo de Jerusalém, em nome de Javé oficial do
Estado (cf. 2Rs 18; Dt 13). Oprimiu e enfraqueceu os santuários do interior,
centro religioso e econômico dos camponeses. Mais produtos, comércio, tributos
para os ricos e poderosos de Jerusalém e, ao mesmo tempo, mais corrupção, roubo
e violência contra o povo do campo: “seus sacerdotes ensinam a troco de lucro e
seus profetas dão oráculo por dinheiro” (Mq 3,11).
A ambição
e a ganância levaram os governantes a planejar a revolta contra a Assíria. Como
preparação para a guerra, o rei Ezequias executou várias novas obras e
reformas:
a) Um
novo muro para a proteção dos novos bairros na capital;
b) Um
canal para levar, para dentro dos muros até a piscina de Siloé, a água da fonte
de Geon (2Rs 20,20; Is 22,11);
c) O
fortalecimento das cidades fortificadas, como Laquis, entre outras.
Tudo isso
pesou sobre a vida dos camponeses, o que implicou em mais tributos, trabalhos
forçados (corveia) e recrutamento militar. Em 713 a.C., as cidades-estados
filisteias promoveram a rebelião contra a Assíria, da qual Ezequias participou.
Em 711 a.C., Sargon II conseguiu rechaçar e controlar os estados rebeldes. Judá
escapou desse destino porque se retirou da coligação a tempo e mais uma vez se
submeteu à Assíria, pagando pesados impostos. Todavia, os governantes de
Jerusalém não desistiram de sua ambição e expansionismo.
No ano de
705 a.C., morreu Sargon II, que foi substituído por Senaquerib (704-681 a.C.).
Ezequias aproveitou-se desse momento de transição e crise da Assíria e promoveu
uma guerra contra as cidades filisteias até Gaza, recuperando, assim, um
território perdido para a Assíria (2Rs 18,8). Logo depois, ele mesmo, com o
apoio do Egito, liderou um novo movimento antiassírio e entrou em guerra contra
as cidades filisteias. A reação da Assíria foi violenta.
Em 701
a.C., Senaquerib rechaçou o Egito, invadiu Judá, conquistou 46 cidades
fortificadas, cercou Jerusalém e exigiu a rendição de Judá (Mq 1,8-16; 2Rs
18,13-16). Essas guerras atingiram diretamente o povo de Morasti-Gat, uma das
cidades fortificadas. O cenário é de devastação: saques, violência, destruição
das famílias, casas e tomada de suas terras!
Enfim, o
profeta Miqueias viveu como camponês em uma pequena vila, Morasti-Gat, em fins
do século VIII a.C. A situação ia de mal a pior… Violência, espoliação,
presença de militares e de oficiais nas fortalezas da região, tributo,
corrupção, empobrecimento, exploração e desapropriação de terras dos
camponeses. Mais guerras e devastação. As palavras de Miqueias apontam o
principal gerador desses males: “Prestem atenção, governantes de Israel (…),
que constroem Sião com sangue e Jerusalém com perversidade” (Mq 3,9b.10).
Ambição e ganância! O grito de Miqueias foi lembrado pelos anciãos até no tempo
do profeta Jeremias, cerca de cem anos depois da morte de Miqueias: denúncia
contra os governantes que edificam Jerusalém com o sangue dos camponeses (Jr
26,1-24). Ao ler as palavras de Miqueias, podemos sentir a dor do seu povo.
Vamos colocar nosso coração e nossos pés junto à vida sofrida da população
camponesa de ontem e de hoje.
Conhecendo
a redação e a estrutura do livro de Miqueias
Como
todos os textos da Bíblia, o livro de Miqueias agrega palavras do profeta e da
tradição ao longo de vários séculos. Os capítulos 1 a 3 remontam à pregação de
um profeta judaíta, de Morasti-Gat, do século VIII a.C., sobretudo no reinado
de Ezequias (cf. Jr 26,18). É uma pregação crítica, que afirma que os ricos e os
poderosos de Jerusalém serão castigados. Os capítulos 4 a 7, no entanto, são
acréscimos de outros autores, temas e preocupações.
Portanto,
é possível estabelecer o seguinte quadro:
1. Palavra de outro grupo profético
do Norte, no século VIII a.C. (Mq 6,1-7,7):
– “Pois
eu fiz você subir da terra do Egito, o resgatei da casa da escravidão e mandei
Moisés, Aarão e Míriam à frente de você” (Mq 6,4).
– “Você
obedece às ordens de Amri e a todas as práticas da família de Acab, e vive
conforme os princípios dela” (Mq 6,16).
Em
comparação com Mq 1 a 3, Mq 6,1-7,7 apresenta seu próprio destinatário,
teologia e linguagem:
a) O
texto nunca menciona Judá, Jerusalém e Sião do reino do Sul. Fala de Amri e
Acab, principais reis do reino do Norte;
b) A
principal perspectiva teológica de Mq 6,1-7,7 é a tradição de êxodo, uma das
características dos oráculos dos profetas do Norte (Os 11,1-6);
c) Mq
6,1-7,7 utiliza sua própria terminologia, como o termo “príncipe”, sar em
hebraico (Mq 7,3).
É possível
que Mq 6,1-7,7 tenha sido escrito pelos profetas do Norte. Por ocasião da queda
da Samaria, eles se refugiaram no reino do Sul, trazendo consigo suas
tradições, e se uniram com o grupo de Miqueias. O texto registra a denúncia
contra os crimes cometidos por governantes do Norte, como Amri, Acab e seus
respectivos seguidores, entre 887 e 722 a.C. Semelhante à denúncia de Oseias,
profeta do Norte, afirma que a infidelidade e a injustiça atingem a casa e as
relações familiares mais íntimas (Os 7,5-6).
2.
Releituras exílicas e pós-exílicas (Mq 2,12-13; 4,1-5,14; 7,8-20):
– “Eu
reunirei você todo, ó Jacó. Recolherei o que sobrou de você, ó Israel!” (Mq
2,12a).
– “Porque
de Sião sairá a Lei e de Jerusalém virá a palavra de Javé” (Mq 4,2b).
– “Mas
você, Belém de Éfrata, tão pequena entre os clãs de Judá! É de você que sairá
para mim aquele que deve governar Israel!” (Mq 5,1a).
– “É o
dia de reconstruir seus muros! Nesse dia, suas fronteiras serão mais amplas”
(Mq 7,11).
O tema de
grande importância nos capítulos 4 e 5, junto com 2,12-13 e 7,8-20, é o da
restauração de Sião, típico dos autores do exílio e do pós-exílio, ao passo que
o profeta Miqueias de 1 a 3 prega o castigo e a destruição do templo e de Sião.
Destacam-se, em Mq 4 a 5, as questões do exílio: o cerco de Sião, a destruição
de Jerusalém, o sofrimento do exílio, o messias, Javé como pastor, a esperança
do resgate, a restauração do templo. Em Mq 2,12-13, o resto de Israel. E em Mq
7,8-20, a reconstrução da nação em torno de Jerusalém e a confiança no Deus
misericordioso.
No
período do exílio (587-538 a.C.), quando Jerusalém estava em ruína, os profetas
ligados a Sião fizeram a releitura das palavras de Miqueias com a preocupação
pelos sobreviventes (o resto de Israel) e pela restauração de Jerusalém. O
processo de releitura durou até mais ou menos o ano 500 a.C. com o forte
movimento da centralização no templo de Jerusalém: “Vamos subir para o monte de
Javé, para o Templo do Deus de Jacó” (Mq 4,2).
Com as
releituras e os acréscimos, o redator final teria organizado o livro alternando
ameaças e promessas para moderar a severidade dos oráculos de Miqueias, dando
origem à seguinte estrutura:
a)
1,2-2,11 (ameaça) – 2,12-13 (promessa);
b) 3,1-12
(ameaça) – 4,1-5,14 (promessa);
c)
6,1-7,7 (ameaça) – 7,8-20 (promessa).
Como os
demais escritos proféticos, o texto de Miqueias recebeu diversos acréscimos. A
preocupação dos redatores não estava com a ordem cronológica dos oráculos
proféticos, e sim com a mensagem de Deus para o povo do seu tempo. A mensagem
principal do redator final do livro de Miqueias é, sem dúvida, a restauração do
templo, de Jerusalém e da nação; ao contrário, Miqueias, profeta do povo
oprimido pelos governantes de Jerusalém, nunca proclamaria louvor à capital. É
importante situar, portanto, cada oráculo em seu devido contexto para entender
sua mensagem, sobretudo para escutar o grito de quem defende a terra, a família
e a casa para produzir a vida e de quem luta por esses dons.
Algumas
indicações para a leitura da profecia de Miqueias
A ambição
e a ganância dos grupos dirigentes de Jerusalém sobrecarregaram o povo,
especialmente a população camponesa, que sofreu com tributos pesados,
endividamento, violência, perda da terra, desintegração familiar-comunitária.
Miqueias, partilhando da mesma sorte de seu povo, foi corajoso e ousado ao
proclamar o castigo de Javé para as autoridades civis e religiosas de
Jerusalém, bem como a própria destruição da cidade santa.
Ao
retomar as palavras de Miqueias, queremos nos deixar conduzir pelo “Espírito de
Javé, do direito e da fortaleza” e, com a mesma audácia, denunciar as
realidades de injustiças que vivemos hoje. O caminho dos profetas de Javé é a
luta pela defesa da justiça e da vida ameaçada, o mesmo projeto de Jesus e o de
toda pessoa cristã.
1. Os poderosos violentam a vida dos
pobres
Miqueias
denuncia as autoridades civis e religiosas: “Ouçam isto, chefes da casa de
Jacó. Prestem atenção, governantes de Israel, vocês que têm horror ao direito e
entortam tudo o que é reto, que constroem Sião com sangue e Jerusalém com
perversidade. Os chefes de vocês proferem sentença a troco de suborno. Seus
sacerdotes ensinam a troco de lucro e seus profetas dão oráculos por dinheiro”
(Mq 3,9-11). A injustiça e a corrupção social começam com as autoridades,
atingindo a vida do povo. A população camponesa foi o grupo mais explorado
pelas autoridades. Miqueias denuncia chefes, magistrados, profetas e
sacerdotes. Que a mesma ousadia do profeta inspire a nossa ação pastoral.
2.
Roubo e violência contra os camponeses
“Ai
daqueles que, deitados na cama, ficam planejando a injustiça e tramando o mal!
É só o dia amanhecer, já o executam, porque têm o poder nas mãos” (Mq 2,1). Os
poderosos planejam e executam seu plano de expropriação de terras contra camponesas/es.
A menção a cobiçar, roubar, tomar e oprimir a herança é forte denúncia contra
aqueles que estão realizando desapropriações injustas. E o pior: há profetas e
sacerdotes que usam o nome de Deus para justificar os atos dos poderosos.
“Terra, casa e família” são elementos essenciais para a sobrevivência da
população camponesa (Mq 2,1-3.6-11). Este grito do profeta nos ajuda a ouvir os
clamores dos pobres de hoje, que têm seus direitos roubados. E Deus não se faz
presente na realidade de injustiça.
3. Uso
da religião para alienar as pessoas
Javé
assim diz contra os profetas que extraviam meu povo, que anunciam a paz quando
têm algo para mastigar, mas declaram guerra contra os que nada lhes põem na
boca: Por isso vocês terão noite em lugar de visões; escuridão em vez de
oráculo. O sol se esconderá sobre esses profetas, a luz do dia se apagará sobre
eles. Os videntes ficarão confusos. Todos cobrirão a barba, porque Deus não
responderá (Mq 3,5-7).
No Antigo
Israel havia profetas que eram funcionários dos grupos dirigentes e, em nome de
Deus, defendiam o projeto de opressão do Estado. Quem são os profetas de hoje
que, mesmo correndo risco de morte, defendem condições de vida digna e são
capazes de erguer suas vozes contra as realidades de morte?
4.
Praticar o direito, amar a misericórdia e caminhar com Deus
O grupo
profético recorda a fidelidade de Deus ao longo da história do povo, desde a
saída do Egito, passando pelo deserto, até a chegada à terra prometida. Deus
não quer um culto separado da vida: “Ó homem, já foi explicado o que é bom e o
que Javé exige de você: praticar o direito, amar a misericórdia, caminhar
humildemente com o seu Deus” (Mq 6,8). É um convite a viver o direito e a
misericórdia. Deus não quer uma religião baseada em práticas legalistas, mas
uma vivência que nos impulsione para o compromisso com a transformação social.
5.
Reavivando a esperança do povo
No tempo
exílico e pós-exílico, Israel sonha com paz, que Mq 4,3 afirma: “De suas
espadas vão fazer enxadas, e de suas lanças farão foices. Um povo não vai mais
pegar em armas contra outro, nunca mais aprenderão a fazer guerra”. É uma
sociedade em que Javé, finalmente, reina como Deus da justiça e da
misericórdia, um tempo sem dominação, opressões e guerras. Ao invés de armas de
guerras, instrumentos de trabalho, organização e cuidado com a natureza para
produzir alimentos saudáveis para a vida. Guerra jamais! É um sonho e uma
crítica contra o militarismo do Estado e as sociedades injustas no coração das
famílias dos refugiados que buscam lugar para viver no mundo de hoje.
Pisamos
no chão sagrado da comunidade do profeta Miqueias e da tradição que se formou
ao redor desse profeta. Inspirados em sua ação, pedimos que o Senhor da Vida
desperte em nós o desejo de ser profetisas e profetas da justiça, do direito e
da misericórdia. Que em nossa caminhada possamos dar continuidade à missão de
Jesus e unir nossas forças na construção do Reino de Deus.
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Bibliografia
(referente
aos três artigos sobre o livro do profeta Miqueias).
CUFFEY, Kenneth H. The
literary coherence of the book of Micah. New York: Bloomsbury, 2015.
FINKELSTEIN, Israel. O reino esquecido: arqueologia e história de
Israel Norte. São Paulo: Paulus, 2015.
KAEFER,
José Ademar. A Bíblia, a arqueologia e a história de Israel e Judá. São
Paulo: Paulus, 2015.
NOVA
BÍBLIA PASTORAL. São Paulo: Paulus, 2014.
SICRE,
José L. A justiça social nos profetas. São Paulo: Paulus, 1990.
SMITH,
Ralph L. Micah-Malachi. In: METZGER, Bruce M.
(Ed.). Word Biblical Commentary. Texas: Word Books, 1987. v. 32.
WILSON,
Robert R. Profecia e sociedade no Antigo Testamento. São Paulo: Paulus,
1993.
ZABATIERO,
Júlio Paulo Tavares. Miqueias: voz dos sem-terra. Petrópolis: Vozes,
1996.
[1] Os textos bíblicos citados nos
artigos sobre o livro de Miqueias foram extraídos da Nova Bíblia Pastoral,
São Paulo: Paulus, 2014.
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Maria
Antônia Marques
Assessora do Centro Bíblico Verbo
e professora na Faculdade Dehoniana, em Taubaté, na Faculdade Católica de São
José dos Campos e no Itesp, em São Paulo. Juntamente com o Centro Bíblico
Verbo, tem publicado todos os anos pela Paulus um subsídio para reflexão e
círculos bíblicos para o mês da Bíblia. O do ano de 2016 é Defesa da família:
casa e terra – entendendo o livro de Miqueias. E-mail:
ma.antoniacbv@yahoo.com.br
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Vida Pastoral
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