Quem é o meu próximo? Foi o doutor
da Lei que fez a pergunta. Ele a fez, foi mais para justificar-se (Lc 10,29).
Diante da reação de Jesus à sua pergunta anterior, ele ficou com vergonha.
Perguntara: Mestre, o que devo fazer para obter a
vida eterna?(Lc 10, 25). E Jesus, em vez de responder diretamente, disse: O
que está escrito na lei? O que você lê ali? (Lc 10,26). Foi como se
dissesse: Você, então, não sabe uma coisa tão
evidente, você que se diz conhecedor da lei! E, querendo ou não,
ele mesmo teve que dar a resposta: amar a Deus e amar ao próximo (Lc 10,27).
Perguntara uma coisa já sabida de todos. Parecia uma desonestidade da sua
parte. Por isso, para justificar-se, tornou a perguntar: E
quem é o meu próximo?.
Mas não foi só para justificar-se e para salvar a sua reputação de
doutor da Lei. Para ele, doutor da Lei, aquela pergunta era importante mesmo.
Já imaginou: se o pagão não fosse próximo, se o romano, o
pobre, o operário, a empregada em casa, não caíssem na categoria de próximo, isso faria uma
diferença muito grande e tiraria da vida uma grande preocupação. Estaria livre
de prestar-Ihes um serviço por amor. A miséria do mundo e a injustiça
generalizada já não seriam uma acusação contra ele. Passaria tranquilo ao lado
dos pobres e das favelas, sem que a consciência lhe mordesse e lhe fizesse
aqueles apelos incômodos. Pois a Lei, isto é, Deus, mandava amar somente os próximos, e aquela gente
não era próximo. Já não haveria
motivo para preocupar-se tanto. Saber direitinho quem era o próximo daria mais tranquilidade.
Realmente, para ele, o doutor, aquilo era uma pergunta muito importante, mas
muito importante mesmo.
A resposta de Jesus
Jesus respondeu, mas respondeu a seu modo, como sempre, por meio de um
exemplo tirado da vida. Tais exemplos ou histórias falam mesmo a quem não quer
ouvir, pois da vida todos entendem ao menos alguma coisa. Jesus falou de um
homem que desceu de Jerusalém para Jericó (Lc 10, 30), uns vinte quilômetros de
viagem, pelo deserto perigoso de Judá, cheio de bandidos e ladrões, fugidos da
polícia, e de subversivos e guerrilheiros, dispostos a matarem qualquer romano
que passasse por lá. Esse homem passou por lá, e aconteceu o que se podia
esperar. Caiu na mão de ladrões que o roubaram e o deixaram meio morto, ao lado
da estrada, de tanta pancada que deram nele. Fugiram com o dinheiro (Lc 10,30).
Quem sabe, naqueles dias mesmo tivesse ocorrido um assalto desse tipo. Estaria
ainda bem vivo na lembrança de todos. Nada mais eficiente do que fazer um
sermão com fatos da vida.
Passa um sacerdote no local onde agonizava a vítima. Era o doutor da
Lei, passando ao lado da miséria do povo, agonizante, devido às feridas, feitas
pela sociedade sem amor. O sacerdote era alguém que estava por dentro das coisas
da religião, conhecia teologia, sabia situar-se, com a sua fé, neste mundo
complicado. Chega lá olha e percebe o fulano indefeso que necessitava de ajuda
urgente. Mas, na história que Jesus estava contando, o sacerdote olhou e
passou, desviando para o outro lado da estrada. Deixou o homem ali. Não ajudou.
Era o doutor da lei, passando ao lado da miséria do mundo e raciocinando
consigo mesmo: Aquela
gente não cai dentro da categoria de próximo. Portanto, não tenho nenhuma
obrigação para com ela. Deus, aqui, nada me pede. Posso passar tranquilo, sem
correr o risco de perder a recompensa que Ele prometeu àqueles que observam
fielmente a sua Lei. Estou dentro da Lei. A Lei está do meu lado! O sacerdote
passou, como o doutor passava pela vida, tranquilo, sem que a consciência lhe
acusasse. O doutor, porém, pelo que parece, já não andava de todo tranquilo,
pois, do contrário, não teria feito aquela pergunta. Alguma coisa, lá dentro
dele, o devia estar incomodando.
Passa, em seguida, um levita, um sacerdote de segunda categoria (Lc
10,32). Seria como um sacristão de hoje, alguém que, como o sacerdote e o
doutor, estava por dentro das coisas da religião. Sabia aplicar as distinções
necessárias, para não se sentir angustiado, neste mundo tão confuso, com tantos
apelos. Também ele chegou, olhou e passou, pelo outro lado da estrada, tranquilo
com Deus e consigo. Não ajudou. O homem continuou estendido no chão, sangrando,
meio morto. O mundo com a sua miséria continuava aí, sangrando pelas feridas
aplicadas pela falta de justiça e não curadas por falta de amor entre os
homens. E eram precisamente os que professavam sua fé no Deus justo e bondoso,
os que deveriam protestar, reagir, ajudar, esses nada faziam: o doutor, o
sacerdote, o levita. A esses, o outro não importava nem um pouco. Importava ter
a consciência tranquila, juridicamente tranquila.
Chega um samaritano (Lc 10, 33). Na opinião do doutor, um samaritano era
um energúmeno, um herege, um renegado, um bandido, um comunista
ateu. O que é que esse samaritano vinha a fazer na história que Jesus estava
contando? Até agora o doutor pôde segui-lo perfeitamente. Identificou-se com o
sacerdote e o levita. Gente direita. Mas agora? Onde é que esse Jesus queria
chegar? O samaritano chega, olha, pára, fica com dó, desce do cavalo, se
aproxima, aplica curativo, joga azeite e vinho nas feridas, coloca o homem no
seu próprio cavalo, vai a pé ao lado dele, leva-o até à hospedaria, recomenda o
caso ao dono, cuida dele, paga pelos gastos e deixa ainda o aviso: Cuide
bem desse homem. Caso as despesas forem mais, eu, na volta, pagarei tudo (Lc 10,
33-35). Depois continuou a sua viagem, também ele, tranquilo. E para o
samaritano, Deus não entrou, nem a lei. Foi o bom senso de um homem que não
pode ver o outro sofrer.
A nova pergunta lançada por Jesus
Foi essa a história que Jesus contou como resposta àquela pergunta do
doutor: Quem é o meu próximo? A história de
um assalto. Não tirou nenhuma conclusão. Aliás, o doutor nem via como se
poderia tirar alguma conclusão dessa história estranha. O que é que tudo isso
tinha a ver com a pergunta que ele fizera? Também não era do interesse de Jesus
dar uma resposta. Em vez de tirar uma conclusão e de dar uma resposta, ele
prefere formular, ele por sua vez, uma nova pergunta. Perguntas incomodam mais
do que respostas, porque forçam o outro a pensar: Jesus termina a história: Qual
dos três lhe parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões? Era,
novamente, a vez do doutor de falar. A pergunta de Jesus era bem diferente
daquela que o doutor tinha feito. O doutor queria saber: Quem
é o meu próximo?. Jesus nada respondeu, mas perguntou: Quem
dos três se mostrou mais próximo? E o doutor teve que responder,
querendo ou não: Aquele
que usou de misericórdia para com ele (Lc 10, 37). De tanta raiva que
tinha dos samaritanos, dos comunistas, nem sequer o
identificou, e disse simplesmente: Aquele
que usou de misericórdia. Então, Jesus encerra o assunto: Vai
e faça o mesmo! (Lc 10,37). Terminou a conversa. O que será
que o doutor pensou? Encontrou ou não encontrou uma resposta para a sua
pergunta?
Jesus inverteu tudo. O doutor queria saber: Quem
é o meu próximo? Queria ter um critério mais seguro para poder
distinguir nos outros quem era e quem não era o seu próximo. Queria viver com a
consciência mais tranquila. Queria ficar livre do medo de não ter cumprido a
Lei de Deus. Queria enquadrar os outros nos esquemas do seu próprio pensamento.
Estava preocupado com o seu problema. Pouco ligava os outros. Mas, em vez de
receber um critério nesse sentido, acaba de receber exatamente o contrário: um
conselho de como ele mesmo devia fazer para tornar-se próximo dos outros. Não
recebe um critério para poder julgar e classificar os outros, mas um estímulo
para agir e aproximar-se dos outros.
Caso, no futuro, não ajudasse o fulano caído nas mãos de ladrões e dele não se aproximasse, ele é que não
estaria amando o próximo como Deus, isto é, a Lei, o mandava. Ele estaria fora
da Lei. Em vez de tranquilo, ficou mais angustiado ainda.
Pela história do assalto, Jesus fez saber que o erro do doutor estava na
pergunta dele. Não se deve perguntar: Quem
é o meu próximo? Isto é fuga! Isso é querer
colocar em segurança a sua própria consciência, ao abrigo das exigências de
Deus, que chegam até nós, em todas as esquinas da vida. Isso é querer obter
mérito diante de Deus à custa do outro, identificado como próximo. O outro a quem se
ama, por ser ele próximo, já não é amado
por ele mesmo; mas é amado apenas porque eu, para poder salvar-me, devo amar o
outro, o próximo. O outro, então,
já não interessa mais. Já não interessa aquele que é amado nem aquele que não é
amado. Interessa só eu que devo amar. Tal atitude é matar o amor na raiz. Faz
cair o homem num egoísmo fechado, que já não permite abertura. A preocupação de
saber quem é o próximo que deve ser amado, mata, na raiz, o amor ao próximo.
Próximo? Jesus o faz
saber: isso depende de você mesmo. Se você se aproximar, você é que faz com que
o outro fique mais próximo. Se você não se aproximar, ele jamais será o seu
próximo. Não existe gente com rótulo na cabeça: Eu
sou próximo!Então, vai depender de mim mesmo decidir quem é o meu próximo? Certo! E
se eu não me aproximar dos outros, não terei próximo e não terei ninguém para
amar e a Lei não se aplica a mim. Estarei dentro da Lei, sem fazer nada! Sem
dúvida!, a aplicação e a execução da Lei fica a seu critério, fica a critério
da sua aproximação do outro. Nesse caso, sobra ainda uma outra pergunta: Quando
é que devo aproximar-me do outro? Leia a história do assalto que
Jesus contou, veja quem cruza o seu caminho. Se ele precisar dos seus cuidados,
então: Vá e faze o mesmoque o samaritano
fez. Depende de sua generosidade e criatividade. Se esse outro é bom ou mau,
ateu ou crente, protestante ou católico, comunista ou capitalista, terrorista
ou cidadão cumpridor da Lei, samaritano ou herege, homossexual ou
heterossexual, isso não vem ao caso. É homem? Precisa de você? Então, vá,
e faça o mesmo. Em outro lugar, Jesus deu o seguinte critério: Tudo
aquilo que você gostaria que o outro lhe fizesse, faça-o você a ele: isso é, em
resumo, toda a Lei e os Profetas (Mt 7,12).
Conclusão
Próximo é todo aquele
que cruzar o seu caminho, seja ele quem for, e do qual você se aproxima. Ou
melhor, próximo não existe.
Existe é você, com a sua obrigação de fazer-se próximo do outro. Fazer-se
próximo, como o samaritano o fez, já é amar o outro como Jesus o quer. Com
isso, tudo mudou totalmente.
A sociedade do doutor da Lei estava baseada no principio de que alguns
são próximos, outros não. Hoje,
na sociedade, existe a mesma coisa. Existem os que estão por dentro e os que
estão por fora. Existem os que são aceitos, porque se adaptam aos critérios
vigentes, e existem os que são marginalizados, porque não se adaptam ou porque
não querem ou porque não podem. E todo mundo acha isso normal. Nós nos
identificamos perfeitamente com o sacerdote e o levita da história do assalto. Se
nós fôssemos hoje aplicar a parábola do bom samaritano, muita coisa iria mudar.
Seria a revolução mais radical que jamais houve na história. Seria a coisa mais
subversiva que a gente se possa imaginar. Somos todos como os doutores
da Lei, querendo saber quem é o próximo. Tratar e conviver
com alguém que a sociedade não aceita, que a Lei declara como não-próximo, isso
poderia comprometer a nossa vida. E isso, nós não o queremos. Teremos que ouvir
de novo que tais perguntas não se fazem. Seria querer esconder, debaixo da capa
de uma suposta caridade, o apego que temos à segurança que a sociedade nos dá.
Mas a miséria do mundo nos acusa, como ao doutor. Ninguém fica realmente tranquilo.
De vez em quando, incomodado pela realidade, todo o homem honesto faz como o
doutor: quer saber quem é mesmo o próximo. E nesse sentido, a intranquilidade
da qual nasce a pergunta, essa é boa.
Frei Carlos Mesters
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Observatório de Evangelização
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