No momento polarizado ideologicamente em que o mundo se
encontra, não é de causar espanto que isso também se reflita no mundo
científico. As pessoas tendem a se preocupar somente com situações que envolvam
aspectos econômicos, tais como: financiamentos de laboratórios ou trabalho para
algum ente interessado. Mas existem outros importantes aspectos que também
podem influenciar, dentre esses, o ideológico.
Conflito de interesse, de acordo com a definição clássica de Thompson, é
um conjunto de condições nas quais o julgamento de um profissional a respeito
de um interesse primário tende a ser influenciado indevidamente por um
interesse secundário. Dependendo da área temática, talvez esse seja um problema
maior do que o conflito econômico. Esta questão é aflorada em pesquisas que
chamam interesse da mídia, tais como: agrotóxicos (como imaginar alimentar sete
bilhões de pessoas sem eles?), mudanças climáticas, violência (estudos que
relatam um suposto genocídio de pretos jovens e pobres sem nem sequer citarem
que o mesmo estrato também é o que mais comete crimes violentos), dentre muitos
outros.
Seria inimaginável uma revista científica conceituada aceitar para
publicação um estudo que não mostre os motivos óbvios para estes achados, salvo
haja um “afrouxamento” no rigor da submissão pelo conflito ideológico favorável
de revisores e editores. Por outro lado, é muito mais difícil ter aceito um
trabalho se ele for contra o viés ideológico dos editores por melhor que seja o
trabalho. Como sou médico ginecologista-obstetra, conheço bastante os problemas
ideológicos envolvidos em pesquisas relacionadas ao aborto e à via de parto.
É notória uma dominância de pensamento de esquerda e progressista nas
universidades públicas brasileiras. E estou absolutamente convicto de que este
pensamento muitas vezes afeta todas as etapas das pesquisas que envolvam estes
temas. E é importante que encontremos formas de mitigar este problema.
É muito difícil ter aceito um trabalho se ele for contra o viés
ideológico dos editores por melhor que seja o trabalho
Participei recentemente da audiência pública mais concorrida da história
do STF que versou sobre a liberação do aborto numa proporção aproximada de dois
expositores favoráveis à liberação para um contrário. Em mínimos 20 minutos,
consegui mostrar diversas mentiras usadas pelos defensores da liberação do
aborto que estão disponíveis em diversos vídeos com minha apresentação no STF
que viralizaram, além de fraquezas gigantescas de estudos brasileiros sobre o
tema que não são mostradas.
É fundamental que, doravante, haja um escrutínio com lupa destes estudos
e das verbas públicas que os financiaram. Estudos esses que norteiam
impressionantemente a discussão sobre aborto no Brasil. Eu me coloquei à
disposição para ajudar. Chama extrema atenção como os estudos publicados em
revistas científicas brasileiras que embasam e regem a discussão sobre o aborto
são sofríveis do ponto de vista metodológico e, com resultados, ao meu ver,
muitas das vezes, absolutamente descartáveis. Esta mesma situação ocorre em
estudos relacionados à via de parto que quase que, invariavelmente, concluem
que a culpa por tantas cesarianas é dos obstetras, colocando-nos como vilões e
ignorando as outras dezenas de variáveis que impactam este desfecho, sendo a
principal a saúde pública brasileira sofrível em todos os níveis.
O que causa mais preocupação e deveria chamar a atenção da mídia e da
sociedade é que estas pesquisas custam milhares e, frequentemente, milhões de
reais dos nossos cofres públicos e para nada servem seus resultados que não
seja o de obnubilar nossa visão para uma real solução dos problemas. No caso do
aborto, podemos citar os números completamente inventados que surgiram de
publicações científicas e inundaram as matérias jornalísticas e, temos como
exemplos, o número inventado de 11.000 mortes maternas por aborto ao ano e de
1,1 milhão de abortos clandestinos anuais que foram divulgados por uma revista
de circulação nacional hebdomadária em editorial recente de junho de 2018
escrito por renomado professor de urologia, quando os dados oficiais mostram
menos de 70 mortes anuais causadas por qualquer tipo de aborto e cerca de 100 a
200 mil abortos de qualquer espécie (legal, ilegal e natural) por ano.
Em questões de via de parto, os grupos que mais publicam no Brasil sobre
o tema geralmente concluem que a taxa aumentada de cesarianas é uma das maiores
causas da mortalidade materna vergonhosa do Brasil culpando os obstetras por
isso. Em texto recente n’O Globo, mostrei baseado em dados oficiais que a mortalidade materna galopante
na cidade do Rio de Janeiro estava correlacionada com a falta de obstetras e
associada até a uma diminuição de cesarianas.
Como de nada serve detectar o problema sem sugerir soluções, proponho o
início de um debate em que todos os aspectos relacionados ao problema sejam
revisados. A responsabilidade de lidar com os conflitos de interesses na
publicação científica é dividida entre autores, revisores, editores e leitores.
Além disso, quem participa da elaboração de editais, liberação de verbas para
pesquisa e gestores também devem estar atentos. Proponho que as pesquisas sejam
categorizadas por possibilidade de conflito ideológico. Caso sejam passíveis,
diversos passos devem ser seguidos. Não há de se imaginar que a caracterização
da morfologia da orelha de um morcego seja sujeita a este problema. Portanto,
foquemos naqueles que são suscetíveis.
Os editais para liberação de verbas para projetos devem exigir que, em
pesquisas sensíveis a este problema, seja necessária a participação de
pesquisadores de diferentes matizes ideológicas na mesma pesquisa ou liberação
para grupos de pensamentos dissonantes. Há pesquisas sobre via de parto com
todos os diversos pesquisadores tendo exatamente a mesma visão de mundo, a
chamada “bolha” em nossos tempos maniqueístas. O que se nota é que, muitas das
vezes, os grupos vencedores dos editais são sempre os mesmos e isso desestimula
surgimento de novos grupos de pesquisa que em muito poderiam enriquecer o
debate.
Necessário também que os estudos não sejam enviados para periódicos da
mesma instituição de origem dos pesquisadores para que haja uma avaliação
criteriosa de possíveis problemas metodológicos. Por mais que seja sério o
processo de submissão, há uma possibilidade de conflito. Fundamental que haja,
assim como existe no conflito econômico, a obrigatoriedade de o pesquisador
declarar seu “lado”. Exemplo, em pesquisas sobre o aborto, deve estar clara sua
posição contrária ou favorável à liberação e se recebe dinheiro de alguma
instituição defensora ou contrária à liberação. O mesmo deve ocorrer na
avaliação dos artigos para publicação, devendo ser ele avaliado por editores e
revisores de ideologias diferentes para evitar o aceite de um artigo sem
merecimento e a rejeição de um ótimo estudo, mas com o “pecado” de não ser do
agrado do pensamento de editores e revisores. Todos sabemos que isso existe. É
hora de resolver!
Sem ser minha intenção esgotar este tema em poucas linhas, clamo pelo
início deste debate. Em muito poderá acrescentar para a melhora da qualidade de
nossas pesquisas e publicações e para um melhor gasto de nosso já parco
financiamento.
Raphael Câmara Medeiros Parente,
especialista em Gestão em Saúde, mestre em Saúde Pública e doutor em
Ginecologia, é médico ginecologista da UFRJ.
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Gazeta do
Povo
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