Quase
duas semanas depois da rejeição da legalização do aborto pelo Senado argentino,
centenas de cidadãos participaram de uma apostasia coletiva no último fim de
semana em Buenos Aires. O objetivo dos manifestantes era não apenas recusar o
catolicismo, mas também fazer um apelo em favor do Estado laico, contrariamente
ao que prevê a Constituição do país.
"Você preenche esse formulário, coloca
uma foto de sua carteira de identidade, outra de seu ato de batismo, e nos
responsabilizaremos pelo resto." Na esquina das avenidas Callao e
Corrientes, no coração da capital argentina, César Rosenstein dá as instruções
aos futuros apóstatas.
Este membro da Coalizão Argentina por um
Estado Laico (Cael) não esperava tanto sucesso na mobilização. "Faz dez
anos que lutamos pela separação da Igreja e do Estado. Mas é a primeira vez que
eu vejo tantas pessoas prontas a renunciar coletivamente à fé católica",
diz.
O princípio é simples: com alguns documentos
à mão, cada um pode exigir sua exclusão da Igreja Católica. "Isso quer
dizer concretamente que a Igreja não pode mais contar conosco como um de seus
membros. E que, nos registros paroquiais, ao lado de nosso nome, aparecerá a
menção 'apóstata'. Mesmo se nós preferimos que nosso nome fosse simplesmente
apagado desses registros", reitera Rosenstein.
"Não em meu nome"
Na longa fila de espera no estande da Cael, a
grafista Marcia organiza suas fotocópias. "Batizaram-me quando eu era
bebê. Eu não tinha evidentemente a possibilidade de me opor. Fiz todos os meus
estudos em uma escola católica e não me reconheço nesses ensinos que considero
nefastos. Recuso-me a fazer parte desta instituição e, sobretudo, recuso que a
Igreja aja em meu nome!", exclama a jovem.
"No en mi nombre" ("Não em meu
nome") é justamente um dos slogans desta manifestação. Alguns
organizadores exibem a frase estampada em camisetas. Vários manifestantes
utilizam também um lenço verde, símbolo da campanha nacional pela legalização
do aborto na Argentina.
Há pouco menos de duas semanas,
senadores do país rejeitaram por 38 votos contra 31 uma proposta de lei visando
legalizar a interrupção voluntária da gravidez - um balde de água fria no
movimento feminista argentino, que nunca conheceu tamanho avanço.
"O
resultado da votação gerou muita revolta. A apostasia é um gesto político
forte, uma manifestação de nossa oposição à ingerência permanente da Igreja nos
debates da sociedade", afirma, indignada, Julieta Arosteguy, integrante da
Cael.
Um milhão de abortos ilegais por ano
Na América Latina, onde os países
são majoritariamente católicos, o aborto é legalizado em poucos países:
Uruguai, Guiana, Cuba, além da Cidade do México. O país do papa Francisco -
onde a Constituição indica desde o segundo artigo que o governo “apoia o culto
católico apostólico romano” - autoriza a interrupção da gravidez somente em
caso de estupro ou se a gestação apresenta risco para a saúde da mãe.
No entanto,
isso não impede que um milhão de argentinas abortem clandestinamente a cada
ano, dizem as organizações feministas. Desde o início deste mês, ao menos três
mulheres morreram no país tentando colocar um fim à gravidez de forma
clandestina.
A Igreja
Católica reivindica 90% de seguidores na Argentina. No entanto, pesquisas de
opinião revelam que 76% da população se considera católica. A alta quantidade
de fiéis permite que a Igreja obtenha a cada ano subvenções do Estado, da ordem
de 176 milhões de pesos (equivalente a mais de R$ 23 milhões).
"A
Argentina é um país hipócrita. Somos todos batizados porque é o costume, nos
casamos na igreja porque é o costume, mas poucos argentinos frequentam as
missas e são praticantes verdadeiros", avalia Julieta Arosteguy.
"Sou
agnóstico. O certo é que não acredito mais nessa instituição", afirma
Alexis, que veio com a família renunciar à fé católica. Diante dele, os filhos
brincam com os lenços verdes da campanha pró-aborto. Apontando para as
crianças, ele sorri: "Evidentemente, não os batizei. Eles farão o que
quiserem quando crescerem", diz.
A Cael enviará os pedidos de apostasia à conferência episcopal de Buenos
Aires no dia 24 de agosto.
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O Globo
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