Deus semelhante ao homem no Antigo Testamento
Quem lê o Antigo Testamento não pode deixar de observar quão
frequente e facilmente ao Senhor Deus são atribuídas feições humanas.
Assim o Criador é dito ter face (cf. Gen 4,16; Ex
33,11.14.15; Sl 9,31...); nariz e narinas, cujo sopro desencadeia os ventos
sobre a terra (cf. Ex 15,8; Sl 17,9.16); ouvidos (cf. Sl 9,37; 16,7; 85,1; 1 Sam
8,21); boca (cf. Jos 9,14; Dt 8,3; Sl 17,9; Is 1,20); lábios (cf. Jó 11,5; Is
30,27); língua (cf. Is 30,27); olhos (cf. Dt 11,12; 1 Sam 15,19; 26,24; 2 Sam
15,25; Sl 10,4; Am 9,4); pálpebras (cf. Sl 10,4); voz (cf. Gen 3,8.10; Ex 5,2;
1 Sam 15,19; Sl 17,14); braços (cf. Dt 5,15; Jó 40,4; Is 51,5.9; Jer 27,5);
mãos (cf. Ex 33,23; Sl 17,17; Is 65,2; Am 9,2); em particular, mão direita (cf.
Ex 15,6.12; Sl 17,36); dedos (cf. Sl 8,4; Ex 31,18; Dt 9,10); pés (cf. 1 Crôn
28,2; Sl 131,7), e pés que levantam nuvens de poeira (cf. Na 1,3; Sl 17,10);
costas (cf. Ex 33,23); asas e penas sob as quais protege os justos (cf. Sl
17,8; 56,2; 90,4); um belo manto, cujas orlas enchem o templo (cf. Is 6,1).
Está assentado em um trono régio (cf. Sl 46,5).
Além disto, na Sagrada Escritura, o Senhor clama (cf. Lev
1,1), ruge (cf. Am 1,2), compraz-se com suave perfume (cf. 1 Sam 26,19), ri
(cf. Sl 2,4), assovia (cf. Is 7,18), dorme (cf. Sl 43,24), desperta-se (cf. Sl
77,65), passeia no jardim do Éden (cf. Gen 3,8), fecha a porta da arca de Noé
(cf. Gen 7,16), é guerreiro valente (cf. Ex 15,3; Sl 23,8), cavalga sobre um
Querubim, voa, paira sobre as asas do vento (cf. Sl 17,11).
Também os afetos humanos marcam a figura do Senhor Deus
(antropopatismos):18 o desgosto (cf. Lev 20,23),
o ódio ou a abominação (cf. Dt 12,31), a aversão (cf. Sl 105,40), a inveja (cf.
Ex 20,5; 34,14), a vingança (cf. Ex 32,34; Dt 32,35.41; Is 1,24; 34,8), a cólera
(cf. Ex 15,7; 32,12; 2 Sam 24,1; Is 9,19), a complacência (cf. Jer 9,23), a alegria
(cf. Dt 28,63; Sl 103,31; Sof 3,17), o arrependimento (cf. Gen 6,6; 1 Sam
15,35; Jer 26,13).
Diante de tais expressões, impõe-se de novo a questão: que
sentido poderá ter tal modo de falar, muito surpreendente num livro que se diz
ter por autor principal o próprio Deus?
a) o significado
geral dos antropomorfismos.
Não há dúvida de que os antropomorfismos da Escritura têm
suas raízes na mentalidade primitiva dos semitas, mentalidade que pede ser
corrigida pelo raciocínio filosófico, metafísico. Os israelitas, pouco afeitos
à abstração, dificilmente se desvencilhavam de concepções de ordem sensível,
até mesmo ao falarem de Deus. Reconheciam, sim, que o Criador não é como o
homem (o que claramente transparece nos textos bíblicos abaixo citados), mas dificilmente
percebiam o que o fato de "Deus ser Deus, e não homem" (ei. Os 11,9)
implica para a inteligência. Por isto, referindo-se ao Todo-Poderoso usavam
copiosamente dos vocábulos que designam as coisas corpóreas. De resto, o
espírito humano na vida presente, dependendo constantemente de imagens
sensíveis, é incapaz de conceber a Deus como Ele existe em Si mesmo; qualquer
pensador, para dar a entender os predicados da Divindade, é induzido a
compará-los com os atributos da criatura; a imortalidade de Deus, com as
contínuas vicissitudes do homem; a sua imensidade, com as. limitações do nosso
ser, etc. 19
Esta observação, porém, não bastaria para explicar o
significado dos antropomorfismos na Sagrada Escritura.
Ao considerar a Deus, um dos aspectos que mais
espontaneamente detinham a atenção do israelita, era o seguinte: o Deus de Israel
é um Ser vivo e pessoal.20 Com efeito, Abraão e
seus descendentes chegaram ao conhecimento do verdadeiro Deus não em
consequência de raciocínios especulativos, mas através de revelações se1íveis
(outorgadas aos Patriarcas, a Moisés, aos justos posteriores). Por estes
fenômenos, acompanhados geralmente de impressionante aparato, o Deus de Israel
dava-se a conhecer como o Senhor que permanece próximo do homem, e o orienta continuamente.
Ora, para traduzir tais impressões, o recurso aos
antropomorfismos era muito apto. A descrição do Altíssimo como Guerreiro, Rei,
Pai ..., com seus traços semelhantes aos dos homens, servia para exprimir que o
Deus de Israel é o Soberano que se interessa profunda e surpreendentemente por
tudo que concerne o homem; acompanha a nossa "aventura" na terra, ama
realmente os indivíduos, destes exigindo fidelidade inviolável, como se
precisasse das criaturas. Assim os antropomorfismos bíblicos inculcam que o
Deus verdadeiro não é mera fórmula abstrata, mas o Senhor condescendente,
amigo, à diferença dos deuses dos filósofos pagãos. Estes, apreendendo a
Divindade através do raciocínio, da metafísica, concebiam, sim, mais
adequadamente a transcendência de Deus; julgavam, porém, que o Transcendente,
justamente por ser superior ao homem, se conserva frio, alheio, à sorte dos
mortais.21 Não assim é o Deus verdadeiro,
afirmam-nos de maneira marcante os autores semitas inspirados. Pode-se dizer
que aquilo que a fé em Deus no Antigo Testamento visava primariamente era a sua
personalidade toda-poderosa e o caráter pessoal imediato, das suas intervenções
na história; estes aspectos, os antropomorfismos os realçavam muito bem. A pura
espiritualidade de Deus só foi explicitamente afirmada no Novo Testamento, ou
seja, em Jo 4,24: "Deus é espírito, e os que O adoram, em espírito e
verdade O devem adorar".
Não se poderia deixar de observar ainda que, embora se
distanciassem de noções abstratas para aderir a concepções imperfeitas, pouco
filosóficas, os filhos de Israel eram, pela própria Revelação divina,
preservados de cair nas ideias grosseiras dos mitólogos ou dos idólatras
pagãos.
Com efeito, a Lei mosaica proibia estritamente a confecção
de qualquer imagem (de homem ou animal) que representasse Javé (cf. Ex 20,4s).
Sendo as imagens o grande esteio da idolatria, os israelitas eram assim
premunidos contra o perigo de equiparar o conceito que tinham de Deus ao que os
povos pagãos nutriam. Além disto, os livros sagrados não deixavam de incutir a
espiritualidade e transcendência de Deus, mesmo nos trechos em que mais
realçavam a proximidade do Senhor, o seu interesse pelo povo: assim o profeta
Oséias, falando da misericórdia do Altíssimo para com Israel, baseava o caráter
inesgotável dessa misericórdia (= "compaixão") no fato mesmo de Deus
ser Deus e não homem; 22 em outras
páginas bíblicas lê-se que o Criador não tem olhos como os homens (cf. Jó
10,4); não se arrepende nem mente (cf. 1 Sam 15,29; Num 23,19), não se cansa
(cf. Is 40,28), não cochila nem dorme (cf. Sl 120,4). Estes textos atestam que
o conceito de um Deus transcendente não era, em absoluto, alheio à mentalidade
veterotestamentária.
Os judeus que em Alexandria, a partir do séc. III aC.,
traduziram a Sagrada Escritura do hebraico para o grego, dando-nos a famosa
edição dita dos Setenta intérpretes,
tendiam a exaltar a transcendência de Deus e, por isto, a atenuar ou eliminar
os antropomorfismos bíblicos; o que aparece nitidamente nas duas passagens abaixo,
citadas dentre outras muitas:
Ex 24,9-11 (texto hebraico) refere que Moisés e muitos dos
anciãos de Israel subiram ao monte Sinal e "viram
a Deus". Ora no trecho correspondente puseram os tradutores gregos:
"Viram o lugar em que se achava
o Deus de Israel." (V. 10);
em Jos 4,24, em vez de "mão de Javé" (hebraico),
lê-se "o poder do Senhor" (grego).
Mais uma ligeira observação: quem reflita sobre os
antropomorfismos bíblicos à luz do grande plano salvífico de Deus, em última
análise neles reconhecerá como que prenúncios da Encarnação. A tendência a
atribuir ao Altíssimo aspecto e afetos humanos é, sem dúvida, muito natural à
nossa mente, em particular à do indivíduo primitivo; contudo, no povo de
Israel, ela foi por Deus utilizada para inculcar uma verdade que os filósofos
da antiguidade jamais conceberam adequadamente, verdade que havia de ressoar
por excelência na plenitude dos tempos, quando o Filho de Deus tomou carne
humana: o Senhor do Universo é também o Deus dos pequeninos, é, sim, o Deus do coração
humano. Os antropomorfismos da Sagrada Escritura, portanto, e mais ainda a
Encarnação, são a resposta providencial ao anelo de todo mortal de saber que
Deus está atento à sorte do homem.
b) o sentido de
alguns antropomorfismos em particular.
Já ao se referir a indivíduos humanos, o israelita era
propenso a exprimir certas qualidades da alma mencionando determinados membros
ou sentidos do corpo que mais estreitamente pareciam relacionados com elas.
Consequentemente, tratando de Deus, os hagiógrafos com muita espontaneidade
atribuíam essas mesmas partes do corpo ao Senhor, visando com isto designar os
respectivos predicados do Altíssimo. Alguns exemplos elucidarão o proceder:
a) o Senhor Deus
tem nariz e narinas... O termo hebraico 'af,
que significa "nariz", pode também significar "ira,
cólera". E não sem fundamento objetivo: o furor costuma-se exprimir por
respiração mais veemente, exalação nasal mais intensa, mormente na natureza
exuberante dos orientais. Facilmente, pois, se entende que a menção do nariz
fumegante de Javé na Sagrada Escritura deva ser interpretada como expressão da
justiça de Deus que pune os homens maus (cf. Ex 15,18; Sl 17,9.16);
b) com a ideia de
braço se associa naturalmente à de
força, poder (ainda hoje a linguagem popular diz: "N. é um braço!"). É o que dá claramente a
entender Jeremias, referindo-se ao homem:
"Maldito todo
aquele que se apoia sobre o homem E faz da carne o seu braço, Enquanto o seu
coração se afasta do Senhor." (17,5)
À luz deste texto, torna-se claro o antropomorfismo
correspondente, usado, por exemplo, em Lc 1,51s:
"(O Senhor) fez
coisas poderosas com o seu braço, dispersou os que se ensoberbeciam... Derrubou
do trono os potentados, exaltou os humildes."
c) as mãos simbolizam frequentemente a faculdade
de dispor ou simplesmente o poder (como ainda hoje na expressão: "estar
nas mãos dos mais velhos, das autoridades"). Em consequência, as mãos,
principalmente a destra, de Javé significam a força, o poder, de Deus:
"Vossa direita,
Senhor, se assinalou pela sua força, vossa direita, Senhor, esmagou o
inimigo." (Ex 15,6.)
"O Senhor tem em
suas mãos as profundezas da terra, a Ele pertencem os cumes das
montanhas." (Sl 94,4.)
d) os olhos, constituindo para o homem uma das
principais fontes de informações, são facilmente associados à ideia de
conhecimento, conceituação, coisa que se verifica ainda nas nossas expressões
"aos olhos da sociedade..., da ciência., da história... Na Sagrada
Escritura, consequentemente os olhos simbolizam o conhecimento que os homens ou
Deus possuem:
"Os olhos se lhes
abriram” (a Adão e Eva) (Gn 3,7.)
"Preciosa aos
olhos do Senhor é a morte dos seus fiéis." (Sl 115,15.)
e) a face ou o
rosto, sendo a sede dos órgãos que exprimem o íntimo do indivíduo, significa
frequentemente na Bíblia a personalidade. De resto verifica-se entre as
crianças a tendência espontânea a recobrirem o rosto com as mãos, a fim de
ocultarem a consciência ou o seu íntimo..., a sua personalidade. Por
conseguinte, nas páginas sagradas, "ver a face" é não raro sinônimo
de "comparecer perante (tal pessoa) "; "fugir da face de... é
"fugir de tal pessoa ou objeto...” ou ainda "esquivar-se à influência
de...” Assim, por exemplo, fala Jacó:
"Aplacá-lo-ei por
meio dos presentes que envio previamente; a seguir, verei a sua face (de Esaú);
talvez me dispense bom acolhimento." (Gn 32,21.)
À luz destes dizeres hão de se entender os antropomorfismos:
"Até quando,
Senhor, me esquecerás? Até quando me ocultarás a tua face (= sorriso,
bondade)?" (Sl 12,2.)
"Procuro a tua
face, Senhor, não me ocultes o teu rosto; Não rejeites encolerizado o teu
servo; Tu és o meu amparo." (Sl 26,8s.)
Conforme Ex 33,11, o Senhor falava "face a face"
com Moisés... Nesta seção, o antropomorfismo é logo explicado pelo aposto
"como um amigo fala ao amigo". Isto insinua bem que, na mente dos
hagiógrafos, o ato corporal de "voltar a face para..." pode
simbolizar um ato que se processa essencialmente no plano do espírito, ou seja,
doação de amizade.
Quanto aos afetos (alegria, ira, arrependimento) que os
hagiógrafos atribuem ao Senhor, errôneo seria equipará-los aos sentimentos
baixos e apaixonados dos homens ou dos deuses do paganismo. Se, na Sagrada
Escritura, Deus é dito "irritar-se", não faz senão repreender o
pecador que comete a iniquidade; se "se vinga", não faz senão punir
em justiça os que o merecem; se "se alegra", aprova e confirma o bem;
se "se entristece", acentua a incompatibilidade do mal com o que é de
Deus; a "inveja" de Javé significa o desejo que o Senhor, sumamente
bom, tem de ser amado por seu povo renitente e infiel. Quando Javé "se
arrepende", entenda-se que, em consequência da conduta dos homens, procede
de forma imprevista às criaturas, à semelhança do que se dá quando um homem se
arrepende do que fez.
Aliás, o modo como os judeus entendiam esses antropopatismos
parece-nos atestado por S. Tiago, o primeiro bispo de Jerusalém, guarda fiel
das tradições judaicas, que, embora se dirigisse a israelitas educados na
ideologia veterotestamentária e recém-convertidos ao cristianismo, podia
escrever sem ulterior explicação:
"Junto ao Pai das
luzes não se verifica vicissitude nem sombra de mudança." (1,17.)
Estas considerações são suficientes para se concluir que os
antropomorfismos e antropopatismos bíblicos não constituem simplesmente o
produto de mente filosoficamente pobre ou simplória; não podem ser tratados
como expressões que, com o progredir dos tempos, mais nenhum valor possuem. Ao
contrário, são, do seu modo, portadores de tese muito verídica e importante
para a alma religiosa: o Deus sumamente transcendente é também intimamente
próximo ao homem e solícito do bem da sua criatura!
Dom Estêvão Bettencourt, OSB
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18 Anthropos = homem; páthos
= afeto, paixão.
19 Já o poeta dizia: "Cosi portar convieztsi ai vostro
ingegn.o Perocché solo da sensato apprende Ciò che fa poscia d'intelletto
degno. Por questo la Scrittura condiscende A vostra facultate, e piedi e mano
Attribuisce a .Dio, ed altro intende." (Dante, Paradiso, Canto IV
40-453
20 A expressão "Deus
vivo" ocorre, por exemplo, em Sl 41,3; 4 Rs 19,4; Dt 5,23. É certamente
muito antiga, pois uma das fórmulas de juramento mais usuais rezava:
"Assim como o Senhor (Deus) é vivo ... (Cf. .Jz 8,19; 1 Sam 14,39.45;
19,6; 20,3.21; 2 Sam 2,27; 4,9; 12,5; 14,11; Jó 27,2.) Era mesmo o título
"Deus vivo" que, aos olhos do israelita, diferenciava dos ídolos dos
pagãos o Deus verdadeiro. Os falsos deuses eram ditos "deuses mortos"
(cf. Bar 6, 26.70; Sab 15,17; Jer 10,1-10; Dan 14,4s.24s; Mt 16,16), ou, ainda
mais concretamente, deuses "que têm boca e não falam; têm olhos e não veem;
têm ouvidos e não ouvem, têm mãos e não apalpam; têm pés e não andam" (Sl
113,5-7).
21 É este aspecto rígido que
caracteriza a Divindade nos sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles. Estes
autores ensinavam que Deus, sendo perfeitíssimo, desperta, sim, a atração do
homem; mas de modo nenhum corresponde às aspirações da criatura, pois, enquanto
o homem precisa de Deus, a Divindade não necessita do homem. Cf. A. Nygren, Erôs et Agapê (Paris, 1944).
22 “Como te abandonaria eu, ó Efraim, como te entregaria, Israel? Meu
coração se revira dentro de mim E todas as minhas comiserações se comovem. Não
darei curso ao ardor da minha cólera, Não destruirei de novo Efraim. Pois sou Deus,
e não homem; Em meio de ti está o Santo." (Os 11,8s.)
O homem tem perfeições em grau finito; Deus as tem em grau
infinito. Por isto perdoa mesmo quando os homens julgam que "perdoar"
seria derrogar a algumas de suas qualidades, seria "diminuir-se, rebaixar-se'.
As mesmas ideias repercutem no texto de Ez 28,2: "Tu és homem, e não Deus. Embora tornes
o teu coração semelhante ao de Deus."
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Para Entender o Antigo
Testamento
Livraria Agir Editora
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