quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Os Antropomorfismos Bíblicos II (Capítulo 3 - Parte 4/4)


Deus semelhante ao homem no Antigo Testamento

Quem lê o Antigo Testamento não pode deixar de observar quão frequente e facilmente ao Senhor Deus são atribuídas feições humanas.

Assim o Criador é dito ter face (cf. Gen 4,16; Ex 33,11.14.15; Sl 9,31...); nariz e narinas, cujo sopro desencadeia os ventos sobre a terra (cf. Ex 15,8; Sl 17,9.16); ouvidos (cf. Sl 9,37; 16,7; 85,1; 1 Sam 8,21); boca (cf. Jos 9,14; Dt 8,3; Sl 17,9; Is 1,20); lábios (cf. Jó 11,5; Is 30,27); língua (cf. Is 30,27); olhos (cf. Dt 11,12; 1 Sam 15,19; 26,24; 2 Sam 15,25; Sl 10,4; Am 9,4); pálpebras (cf. Sl 10,4); voz (cf. Gen 3,8.10; Ex 5,2; 1 Sam 15,19; Sl 17,14); braços (cf. Dt 5,15; Jó 40,4; Is 51,5.9; Jer 27,5); mãos (cf. Ex 33,23; Sl 17,17; Is 65,2; Am 9,2); em particular, mão direita (cf. Ex 15,6.12; Sl 17,36); dedos (cf. Sl 8,4; Ex 31,18; Dt 9,10); pés (cf. 1 Crôn 28,2; Sl 131,7), e pés que levantam nuvens de poeira (cf. Na 1,3; Sl 17,10); costas (cf. Ex 33,23); asas e penas sob as quais protege os justos (cf. Sl 17,8; 56,2; 90,4); um belo manto, cujas orlas enchem o templo (cf. Is 6,1). Está assentado em um trono régio (cf. Sl 46,5).

Além disto, na Sagrada Escritura, o Senhor clama (cf. Lev 1,1), ruge (cf. Am 1,2), compraz-se com suave perfume (cf. 1 Sam 26,19), ri (cf. Sl 2,4), assovia (cf. Is 7,18), dorme (cf. Sl 43,24), desperta-se (cf. Sl 77,65), passeia no jardim do Éden (cf. Gen 3,8), fecha a porta da arca de Noé (cf. Gen 7,16), é guerreiro valente (cf. Ex 15,3; Sl 23,8), cavalga sobre um Querubim, voa, paira sobre as asas do vento (cf. Sl 17,11).

Também os afetos humanos marcam a figura do Senhor Deus (antropopatismos):18 o desgosto (cf. Lev 20,23), o ódio ou a abominação (cf. Dt 12,31), a aversão (cf. Sl 105,40), a inveja (cf. Ex 20,5; 34,14), a vingança (cf. Ex 32,34; Dt 32,35.41; Is 1,24; 34,8), a cólera (cf. Ex 15,7; 32,12; 2 Sam 24,1; Is 9,19), a complacência (cf. Jer 9,23), a alegria (cf. Dt 28,63; Sl 103,31; Sof 3,17), o arrependimento (cf. Gen 6,6; 1 Sam 15,35; Jer 26,13).

Diante de tais expressões, impõe-se de novo a questão: que sentido poderá ter tal modo de falar, muito surpreendente num livro que se diz ter por autor principal o próprio Deus? 

a) o significado geral dos antropomorfismos.

Não há dúvida de que os antropomorfismos da Escritura têm suas raízes na mentalidade primitiva dos semitas, mentalidade que pede ser corrigida pelo raciocínio filosófico, metafísico. Os israelitas, pouco afeitos à abstração, dificilmente se desvencilhavam de concepções de ordem sensível, até mesmo ao falarem de Deus. Reconheciam, sim, que o Criador não é como o homem (o que claramente transparece nos textos bíblicos abaixo citados), mas dificilmente percebiam o que o fato de "Deus ser Deus, e não homem" (ei. Os 11,9) implica para a inteligência. Por isto, referindo-se ao Todo-Poderoso usavam copiosamente dos vocábulos que designam as coisas corpóreas. De resto, o espírito humano na vida presente, dependendo constantemente de imagens sensíveis, é incapaz de conceber a Deus como Ele existe em Si mesmo; qualquer pensador, para dar a entender os predicados da Divindade, é induzido a compará-los com os atributos da criatura; a imortalidade de Deus, com as contínuas vicissitudes do homem; a sua imensidade, com as. limitações do nosso ser, etc. 19

Esta observação, porém, não bastaria para explicar o significado dos antropomorfismos na Sagrada Escritura.

Ao considerar a Deus, um dos aspectos que mais espontaneamente detinham a atenção do israelita, era o seguinte: o Deus de Israel é um Ser vivo e pessoal.20 Com efeito, Abraão e seus descendentes chegaram ao conhecimento do verdadeiro Deus não em consequência de raciocínios especulativos, mas através de revelações se1íveis (outorgadas aos Patriarcas, a Moisés, aos justos posteriores). Por estes fenômenos, acompanhados geralmente de impressionante aparato, o Deus de Israel dava-se a conhecer como o Senhor que permanece próximo do homem, e o orienta continuamente.

Ora, para traduzir tais impressões, o recurso aos antropomorfismos era muito apto. A descrição do Altíssimo como Guerreiro, Rei, Pai ..., com seus traços semelhantes aos dos homens, servia para exprimir que o Deus de Israel é o Soberano que se interessa profunda e surpreendentemente por tudo que concerne o homem; acompanha a nossa "aventura" na terra, ama realmente os indivíduos, destes exigindo fidelidade inviolável, como se precisasse das criaturas. Assim os antropomorfismos bíblicos inculcam que o Deus verdadeiro não é mera fórmula abstrata, mas o Senhor condescendente, amigo, à diferença dos deuses dos filósofos pagãos. Estes, apreendendo a Divindade através do raciocínio, da metafísica, concebiam, sim, mais adequadamente a transcendência de Deus; julgavam, porém, que o Transcendente, justamente por ser superior ao homem, se conserva frio, alheio, à sorte dos mortais.21 Não assim é o Deus verdadeiro, afirmam-nos de maneira marcante os autores semitas inspirados. Pode-se dizer que aquilo que a fé em Deus no Antigo Testamento visava primariamente era a sua personalidade toda-poderosa e o caráter pessoal imediato, das suas intervenções na história; estes aspectos, os antropomorfismos os realçavam muito bem. A pura espiritualidade de Deus só foi explicitamente afirmada no Novo Testamento, ou seja, em Jo 4,24: "Deus é espírito, e os que O adoram, em espírito e verdade O devem adorar".

Não se poderia deixar de observar ainda que, embora se distanciassem de noções abstratas para aderir a concepções imperfeitas, pouco filosóficas, os filhos de Israel eram, pela própria Revelação divina, preservados de cair nas ideias grosseiras dos mitólogos ou dos idólatras pagãos.

Com efeito, a Lei mosaica proibia estritamente a confecção de qualquer imagem (de homem ou animal) que representasse Javé (cf. Ex 20,4s). Sendo as imagens o grande esteio da idolatria, os israelitas eram assim premunidos contra o perigo de equiparar o conceito que tinham de Deus ao que os povos pagãos nutriam. Além disto, os livros sagrados não deixavam de incutir a espiritualidade e transcendência de Deus, mesmo nos trechos em que mais realçavam a proximidade do Senhor, o seu interesse pelo povo: assim o profeta Oséias, falando da misericórdia do Altíssimo para com Israel, baseava o caráter inesgotável dessa misericórdia (= "compaixão") no fato mesmo de Deus ser Deus e não homem; 22  em outras páginas bíblicas lê-se que o Criador não tem olhos como os homens (cf. Jó 10,4); não se arrepende nem mente (cf. 1 Sam 15,29; Num 23,19), não se cansa (cf. Is 40,28), não cochila nem dorme (cf. Sl 120,4). Estes textos atestam que o conceito de um Deus transcendente não era, em absoluto, alheio à mentalidade veterotestamentária.

Os judeus que em Alexandria, a partir do séc. III aC., traduziram a Sagrada Escritura do hebraico para o grego, dando-nos a famosa edição dita dos Setenta intérpretes, tendiam a exaltar a transcendência de Deus e, por isto, a atenuar ou eliminar os antropomorfismos bíblicos; o que aparece nitidamente nas duas passagens abaixo, citadas dentre outras muitas:

Ex 24,9-11 (texto hebraico) refere que Moisés e muitos dos anciãos de Israel subiram ao monte Sinal e "viram a Deus". Ora no trecho correspondente puseram os tradutores gregos: "Viram o lugar em que se achava o Deus de Israel." (V. 10);

em Jos 4,24, em vez de "mão de Javé" (hebraico), lê-se "o poder do Senhor" (grego).

Mais uma ligeira observação: quem reflita sobre os antropomorfismos bíblicos à luz do grande plano salvífico de Deus, em última análise neles reconhecerá como que prenúncios da Encarnação. A tendência a atribuir ao Altíssimo aspecto e afetos humanos é, sem dúvida, muito natural à nossa mente, em particular à do indivíduo primitivo; contudo, no povo de Israel, ela foi por Deus utilizada para inculcar uma verdade que os filósofos da antiguidade jamais conceberam adequadamente, verdade que havia de ressoar por excelência na plenitude dos tempos, quando o Filho de Deus tomou carne humana: o Senhor do Universo é também o Deus dos pequeninos, é, sim, o Deus do coração humano. Os antropomorfismos da Sagrada Escritura, portanto, e mais ainda a Encarnação, são a resposta providencial ao anelo de todo mortal de saber que Deus está atento à sorte do homem.

b) o sentido de alguns antropomorfismos em particular.

Já ao se referir a indivíduos humanos, o israelita era propenso a exprimir certas qualidades da alma mencionando determinados membros ou sentidos do corpo que mais estreitamente pareciam relacionados com elas. Consequentemente, tratando de Deus, os hagiógrafos com muita espontaneidade atribuíam essas mesmas partes do corpo ao Senhor, visando com isto designar os respectivos predicados do Altíssimo. Alguns exemplos elucidarão o proceder:

a) o Senhor Deus tem nariz e narinas... O termo hebraico 'af, que significa "nariz", pode também significar "ira, cólera". E não sem fundamento objetivo: o furor costuma-se exprimir por respiração mais veemente, exalação nasal mais intensa, mormente na natureza exuberante dos orientais. Facilmente, pois, se entende que a menção do nariz fumegante de Javé na Sagrada Escritura deva ser interpretada como expressão da justiça de Deus que pune os homens maus (cf. Ex 15,18; Sl 17,9.16);

b) com a ideia de braço se associa naturalmente à de força, poder (ainda hoje a linguagem popular diz: "N. é um braço!"). É o que dá claramente a entender Jeremias, referindo-se ao homem:

"Maldito todo aquele que se apoia sobre o homem E faz da carne o seu braço, Enquanto o seu coração se afasta do Senhor." (17,5)

À luz deste texto, torna-se claro o antropomorfismo correspondente, usado, por exemplo, em Lc 1,51s:

"(O Senhor) fez coisas poderosas com o seu braço, dispersou os que se ensoberbeciam... Derrubou do trono os potentados, exaltou os humildes."

c) as mãos simbolizam frequentemente a faculdade de dispor ou simplesmente o poder (como ainda hoje na expressão: "estar nas mãos dos mais velhos, das autoridades"). Em consequência, as mãos, principalmente a destra, de Javé significam a força, o poder, de Deus:

"Vossa direita, Senhor, se assinalou pela sua força, vossa direita, Senhor, esmagou o inimigo." (Ex 15,6.)

"O Senhor tem em suas mãos as profundezas da terra, a Ele pertencem os cumes das montanhas." (Sl 94,4.)

d) os olhos, constituindo para o homem uma das principais fontes de informações, são facilmente associados à ideia de conhecimento, conceituação, coisa que se verifica ainda nas nossas expressões "aos olhos da sociedade..., da ciência., da história... Na Sagrada Escritura, consequentemente os olhos simbolizam o conhecimento que os homens ou Deus possuem:

"Os olhos se lhes abriram” (a Adão e Eva) (Gn 3,7.)

"Preciosa aos olhos do Senhor é a morte dos seus fiéis." (Sl 115,15.)

e) a face ou o rosto, sendo a sede dos órgãos que exprimem o íntimo do indivíduo, significa frequentemente na Bíblia a personalidade. De resto verifica-se entre as crianças a tendência espontânea a recobrirem o rosto com as mãos, a fim de ocultarem a consciência ou o seu íntimo..., a sua personalidade. Por conseguinte, nas páginas sagradas, "ver a face" é não raro sinônimo de "comparecer perante (tal pessoa) "; "fugir da face de... é "fugir de tal pessoa ou objeto...” ou ainda "esquivar-se à influência de...” Assim, por exemplo, fala Jacó:

"Aplacá-lo-ei por meio dos presentes que envio previamente; a seguir, verei a sua face (de Esaú); talvez me dispense bom acolhimento." (Gn 32,21.)

À luz destes dizeres hão de se entender os antropomorfismos:

"Até quando, Senhor, me esquecerás? Até quando me ocultarás a tua face (= sorriso, bondade)?" (Sl 12,2.)

"Procuro a tua face, Senhor, não me ocultes o teu rosto; Não rejeites encolerizado o teu servo; Tu és o meu amparo." (Sl 26,8s.)

Conforme Ex 33,11, o Senhor falava "face a face" com Moisés... Nesta seção, o antropomorfismo é logo explicado pelo aposto "como um amigo fala ao amigo". Isto insinua bem que, na mente dos hagiógrafos, o ato corporal de "voltar a face para..." pode simbolizar um ato que se processa essencialmente no plano do espírito, ou seja, doação de amizade.

Quanto aos afetos (alegria, ira, arrependimento) que os hagiógrafos atribuem ao Senhor, errôneo seria equipará-los aos sentimentos baixos e apaixonados dos homens ou dos deuses do paganismo. Se, na Sagrada Escritura, Deus é dito "irritar-se", não faz senão repreender o pecador que comete a iniquidade; se "se vinga", não faz senão punir em justiça os que o merecem; se "se alegra", aprova e confirma o bem; se "se entristece", acentua a incompatibilidade do mal com o que é de Deus; a "inveja" de Javé significa o desejo que o Senhor, sumamente bom, tem de ser amado por seu povo renitente e infiel. Quando Javé "se arrepende", entenda-se que, em consequência da conduta dos homens, procede de forma imprevista às criaturas, à semelhança do que se dá quando um homem se arrepende do que fez.

Aliás, o modo como os judeus entendiam esses antropopatismos parece-nos atestado por S. Tiago, o primeiro bispo de Jerusalém, guarda fiel das tradições judaicas, que, embora se dirigisse a israelitas educados na ideologia veterotestamentária e recém-convertidos ao cristianismo, podia escrever sem ulterior explicação:

"Junto ao Pai das luzes não se verifica vicissitude nem sombra de mudança." (1,17.)

Estas considerações são suficientes para se concluir que os antropomorfismos e antropopatismos bíblicos não constituem simplesmente o produto de mente filosoficamente pobre ou simplória; não podem ser tratados como expressões que, com o progredir dos tempos, mais nenhum valor possuem. Ao contrário, são, do seu modo, portadores de tese muito verídica e importante para a alma religiosa: o Deus sumamente transcendente é também intimamente próximo ao homem e solícito do bem da sua criatura!


Dom Estêvão Bettencourt, OSB

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18 Anthropos = homem; páthos = afeto, paixão.

19 Já o poeta dizia: "Cosi portar convieztsi ai vostro ingegn.o Perocché solo da sensato apprende Ciò che fa poscia d'intelletto degno. Por questo la Scrittura condiscende A vostra facultate, e piedi e mano Attribuisce a .Dio, ed altro intende." (Dante, Paradiso, Canto IV 40-453

20 A expressão "Deus vivo" ocorre, por exemplo, em Sl 41,3; 4 Rs 19,4; Dt 5,23. É certamente muito antiga, pois uma das fórmulas de juramento mais usuais rezava: "Assim como o Senhor (Deus) é vivo ... (Cf. .Jz 8,19; 1 Sam 14,39.45; 19,6; 20,3.21; 2 Sam 2,27; 4,9; 12,5; 14,11; Jó 27,2.) Era mesmo o título "Deus vivo" que, aos olhos do israelita, diferenciava dos ídolos dos pagãos o Deus verdadeiro. Os falsos deuses eram ditos "deuses mortos" (cf. Bar 6, 26.70; Sab 15,17; Jer 10,1-10; Dan 14,4s.24s; Mt 16,16), ou, ainda mais concretamente, deuses "que têm boca e não falam; têm olhos e não veem; têm ouvidos e não ouvem, têm mãos e não apalpam; têm pés e não andam" (Sl 113,5-7).

21 É este aspecto rígido que caracteriza a Divindade nos sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles. Estes autores ensinavam que Deus, sendo perfeitíssimo, desperta, sim, a atração do homem; mas de modo nenhum corresponde às aspirações da criatura, pois, enquanto o homem precisa de Deus, a Divindade não necessita do homem. Cf. A. Nygren, Erôs et Agapê (Paris, 1944).

22 “Como te abandonaria eu, ó Efraim, como te entregaria, Israel? Meu coração se revira dentro de mim E todas as minhas comiserações se comovem. Não darei curso ao ardor da minha cólera, Não destruirei de novo Efraim. Pois sou Deus, e não homem; Em meio de ti está o Santo." (Os 11,8s.)

O homem tem perfeições em grau finito; Deus as tem em grau infinito. Por isto perdoa mesmo quando os homens julgam que "perdoar" seria derrogar a algumas de suas qualidades, seria "diminuir-se, rebaixar-se'.

As mesmas ideias repercutem no texto de Ez 28,2: "Tu és homem, e não Deus. Embora tornes o teu coração semelhante ao de Deus."
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Para Entender o Antigo Testamento

Livraria Agir Editora

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