- Foi tão
bonito, Pai. Foi tão bonita a tua presença. Tanta felicidade, que não havia
como acreditar no que estava acontecendo. Algumas vezes, parecia que tuas
bênçãos derramavam-se sobre nós. Em outras, nem sei como dizer isto, mas
julguei que as pessoas olhavam para mim como se desejassem estar no meu lugar.
Ou seria um pouco de vaidade tomando conta de mim? Perdoa-me, meu Pai, pois até
um pobre homem como eu também fica sujeito a essas fraquezas.
No
trajeto em direção à velha igreja, para onde se dirigia todas as manhãs a fim
de tocar os sinos que anunciavam a missa aos fiéis, seu Ludinho procurava
colocar os pensamentos em ordem, com a mente voltada para a noite do dia
anterior, um domingo, quando ajudou Monsenhor a celebrar a última missa em
latim para os paroquianos da cidade.
Quantas
vezes, recordou, e nunca mais haveriam de se repetir as cerimônias em que
tomara parte ativa durante toda sua vida. Nunca mais ouviria os cânticos que
tanto compraziam Monsenhor e que ele mesmo se esforçava para acompanhar,
repetindo-os muito mais com o pensamento do que com a própria voz. Não, seu
Ludinho sabia que as coisas nunca mais seriam como antes.
Envolvido
em profundo recolhimento, ocupara ele, na noite anterior, o seu lugar na
celebração, de corpo e alma entregue aos cuidados de um ritual que, mesmo
sabendo-o repetido e de cor, em certas ocasiões fazia nele ressurgir a mesma emoção
que sentiu ao ajudar Monsenhor pela primeira vez. Tão forte, que jamais teria
como esquecê-la. Dessa vez, no entanto, ele sabia que fora tudo diferente.
– Alguém
chegou a lhe dizer, não é mesmo seu Ludinho, que a última vez é sempre
diferente?
Bastante
idoso, todos os dias seu Ludinho acordava muito cedo. Levantava-se com o canto
das primeiras aves que, de quintal em quintal, desdobravam-se para lembrar que,
também para ele, era chegada a hora da alvorada. E levantava fazendo o seu “Em
nome do Pai”, em paz consigo mesmo e entregue às lembranças de uma vida que os
mais antigos diziam reportar ao tempo de seus avós. O que, na verdade, não
passava de simples brincadeira, apesar de ninguém conhecer a verdadeira idade
que ele tinha: oitenta anos, de qualquer forma, pareciam lhe cair bem. Fosse
como fosse, seu Ludinho nunca admitiu ter mais de setenta. E, em respeito ao
seu desejo, esta ficou sendo a sua idade: setenta anos que, repetidos, ano a
ano, continuavam a ser apenas setenta anos.
Seu
Ludinho andava muito devagar e seus passos, um a um, arrastando-se pelas
calçadas, demoravam três a quatro vezes o tempo gasto por uma pessoa de meia
idade em igual trajetória. Sua estatura mal ultrapassava o ombro de uma pessoa
de médio porte e como seus olhos estavam sempre voltados para o chão, isso o
fazia parecer ainda mais baixo do que era.
Usando, o
mais das vezes, um mesmo terno de cores encardidas, corroído pelo uso e nada
proporcional à fragilidade de seu corpo, a aparência de Seu Ludinho, recurvado
e à distância, não diferia muito de um bem antigo sacristão; e olha ali,
devagarinho, lá vai ele.
Naquela
manhã, ao se dirigir à igreja, uma chuvinha fina e persistente surpreendeu-o a
poucos passos de sua casa. Ao contrário de seus hábitos, estava bastante
atrasado, mas, como havia se esquecido do guarda-chuva, recostou-se debaixo do
beiral de um telhado para ver se as águas passavam. De repente, lembrou-se que,
naquele dia, era aniversário de Monsenhor.
– Coitado
de Monsenhor – foi-se deixando levar, após muita recusa em dar curso a alguns
pensamentos que insistiam em provocá-lo. – Depois de tantos anos, prosseguiu,
seria difícil Monsenhor se acostumar com os novos tempos que chegavam para a
Igreja. Quem celebrou missa em latim a vida inteira não veria com bons olhos a
nova liturgia, toda ela de tal modo instituída que a qualquer um seria dado
agora, fácil, fácil, desvendar os seus mistérios e o que mais fosse.
Não, seu
Ludinho não concordava nem um pouco com o que estava acontecendo. Para ele, o
mais bonito da missa sempre esteve associado à forma como se cumpriam os seus
rituais. Não via sentido em substituírem o latim nos textos sacros. Depois,
transpostos para o português, eles ficariam transparentes demais,
irreconhecíveis mesmo, sem dizer que até um vagabundo como Zé Margarida, esse
arruaceiro incapaz de soletrar o próprio nome, poderia vir a entender o que até
então fora exclusividade de alguns poucos, entre os quais, ele próprio, seu
Ludinho, conquistara seu lugar.
Missa em
latim, para seu Ludinho, era outra coisa. Essa ficava somente ao alcance da
competência de Monsenhor. Do seu zelo pelas tradições. Do fervor com que se
entregava às suas preces. E de conhecer tão a fundo o antigo idioma dos romanos
que poucos conseguiriam se expressar naquela língua com tanta fluência como
ele.
Dava
gosto assistir às suas missas. Sem dizer do bem que fazia a seu Ludinho ouvi-lo
pronunciar uma daquelas bonitas citações tão presentes em seus sermões. Uma
delas, por exemplo, ele sabia quase de cor. Tamanha era sua carga de persuasão
e envolvimento que, mais de uma vez, após Monsenhor traduzi-la em linguagem
corrente, seu Ludinho notou uma ponta de arrepio subir à face dos fiéis lá
melhor aquinhoados com os bens desta vida, enquanto os outros, os mais
desafortunados, como que suspiravam aliviados diante de algo que caía como uma
luva para compensá-los da pobreza e da penúria dos seus dias.
E foi com
a mente voltada para essas recordações que seu Ludinho, recompondo-a como pôde,
ouviu de novo ressoar a velha sentença tantas vezes proclamada por Monsenhor;
aquela que fala da passagem de um camelo pelo buraco de uma agulha:
Facilius
est camelum per foramen acus transire do que um rico entrar no reino dos céus.
– E
abolirem uma prática dessas – queixou-se, contrariado, por ter esquecido algumas
palavras do texto original.
Bem, em
vista dos laços que os uniam, é verdade que Monsenhor continuaria a ser para
ele o mesmo Monsenhor de sempre, mas, de qualquer forma, diante do ocorrido,
não via como continuar ajudando-o nas celebrações.
– Ah, os
tempos estão mudando, seu Ludinho – soprava-lhe uma voz no fundo do pensamento.
– Não vê que, se todas as coisas passam, as missas um dia também acabariam se
modificando?
A chuva
começou a aumentar e seu Ludinho recostou-se sob a proteção do beiral, procurando
distrair-se com os filetes de água que escorriam nas calçadas. Embora não
quisesse demonstrar, ele estava bastante contrariado. De mais a mais, ajudar a
missa em português jamais seria tarefa de seu agrado. E disso ele já dera
provas: desde o primeiro momento, recusou-se a aprender os novos textos para
acompanhar Monsenhor na celebração. Foi preciso prepararem outro sacristão,
treiná-lo, corrigi-lo, incentivá-lo, comprovando que não seria nada fácil
arranjarem um substituto à altura de suas funções.
E pensar
que havia gente satisfeita com as mudanças. Havia, seu Ludinho sabia disso.
Alguns, então, além de aplaudi-las ao menor pretexto, embaralhavam de tal modo
as coisas que ficava difícil saber aonde pretendiam chegar. Lá mesmo, nas
imediações da casa paroquial, não morava um professor, cheio de idéias
estranhas, a quem ele sempre devotara manifesta antipatia e desconfiança? Pois
bem, não foi ele, o professor, quem disse, durante as cerimônias da Semana
Santa, que um dia a Igreja abandonaria a mesa dos ricos para aquecer a morada
dos pobres?
– Agora,
mais essa – reclamava seu Ludinho.
Na
verdade, voltando ao que mais o afligia, ele não via motivo para ser alterado
um ritual que, na sua mente, se confundia desde o início dos séculos com a
transfiguração de um Deus misericordioso que, a cada santa missa, renovava o
supremo sacrifício para se oferecer à comunhão dos santos e dos homens. Se bem
lhe haviam dito que a mudança fora ordenada por Roma. Mas, nem por isso
aceitaria o que, a seu juízo, não passava de um grande erro.
– Fica
difícil entender, Seu Ludinho. Afinal, o Papa é infalível. Como admitir então
que ele pudesse se enganar numa questão delicada como essa?
Cercado
de dúvidas, seu Ludinho, para não se aborrecer ainda mais, preferiu retornar à
noite anterior. Lembrou-se, então, dos gestos de Monsenhor, do modo sereno como
ele soube se conduzir, de seus paramentos, da envolvente espiritualidade que
tomou conta da igreja durante a celebração. Um brilho diferente começou a
transparecer em seus olhos.
Viu-se de
joelhos, diante do altar, contemplando o sacrário que abrigava a presença viva
do Senhor. As imagens dos santos, em curtos gestos de adeus, evocavam, uma a
uma, as bem-aventuranças do paraíso. Uma crescente sensação de quietude
começou, então, a envolvê-lo, a apaziguá-lo, abrandando aos poucos suas
contrariedades e aflições.
Assim que
o Kyrie eleison, unindo as vozes dos fiéis em uma mesma e comovida oração,
espalhou-se pela nave da igreja, seu Ludinho, tomado de emoção, reconheceu
nelas a própria voz do Senhor, como a dizer que ele um dia também estaria no
céu contemplando-O face a face.
E como
esquecer a passagem em que, após a eucaristia, Monsenhor, com as mãos erguidas,
proferiu emocionado o Benedicat vos omnipotens Deus?
Ao que os
fiéis, ajoelhados, responderam com o sinal da cruz.
– Pater
et Filius et Spiritus Sanctus – aduziu Monsenhor.
Naquele
instante, um verdadeiro estado de êxtase tomou conta de seu Ludinho. E, como se
não bastasse tudo isso, emocionou-se ainda mais ao relembrar o momento em que,
Monsenhor, com voz grave e solene, proclamou, pela última vez, o Ite, missa
est.
Ite,
missa est, missa est, missa est: esta despedida incomodava-o desde a noite
anterior, ressoava como um tremor em seus ouvidos, parecia persegui-lo,
retornando cada vez mais forte, como se o est, est, est, quisesse romper seus
tímpanos, ensurdecendo-o para sempre a fim de impedi-lo de ouvir as palavras
corriqueiras que viriam substituir o que para ele seria insubstituível até o
fim.
Agora, no
entanto, estava ele ali inconformado e sem ter como dissociar a sua Igreja de
uma frágil embarcação, velejando ao sabor das ondas sem saber a que porto
chegaria.
A sua
santa amada Igreja, abençoando seus filhos e libertando-os do pecado e da
condenação eterna, graças ao sacrifício do Filho de Deus que se fez homem e
morreu na cruz para salvar todos os que nele acreditassem.
A sua
santíssima Igreja, acolhedora e de braços abertos, com os fiéis assistindo às
missas aos domingos, batizando seus filhos, confessando-se e comungando, que a
vida era cheia de sacrifícios e a lembrança do inferno, seu Ludinho sabia muito
bem disso, mexia com os brios de qualquer um.
Depois,
ele podia até estar enganado, afinal ninguém é dono da verdade, mas, a seu ver,
a opinião do professor também continha um amontoado de erros, porque os pobres,
pelo menos os que freqüentavam a igreja, não lhe pareciam tão pobres assim.
Melhor seria dizer remediados, já que gozavam de boa saúde, eram muito educados
e alguns nunca deixavam de bem vestir e até de engraxar os sapatos para a missa
dos domingos.
Por que,
então, essa mania de as pessoas ficarem generalizando as coisas a ponto de
abranger em seus devaneios um Zé Margarida qualquer, que, de tão inconveniente,
ninguém hesitaria em colocar para fora da igreja, caso ele se atrevesse a
aparecer por lá?
– Ah, não
– resmungou seu Ludinho. – As coisas estão certas do modo que Deus as dispôs.
Ele mesmo, na sua infinita sabedoria, nada tinha a ver com o fato de existirem
pessoas muito ricas e de outras não possuírem coisa alguma. E a Igreja também
não estava aí para resolver nada disso não. Sua verdadeira missão ultrapassava
esse amontoado de miudezas terrenas. Ou haveria algo capaz de superar o consolo
firmado na crença de que, no dia do juízo final, os justos, pobres ou ricos,
todos eles seriam perdoados e recompensados, por mais desiguais que lhes
tivessem sido os favores desta vida?
– Ah,
serão mesmo, seu Ludinho? Então ninguém será condenado?
– Bobagem
perder tempo com isso – reagiu.
Mas, os
pensamentos não lhe davam trégua: afinal de contas, ele mesmo, seu Ludinho,
também não era pobre? E por que sempre fora aceito, sem sofrer qualquer tipo de
discriminação? Claro, porque havia dado um rumo certo à sua vida, colocando
Deus acima de todas as coisas, cumprindo com acerto o seu dever e conservando
sempre a maior distância do pecado, que isso nunca foi coisa para andar à solta
em seu caminho.
Por mais
que raciocinasse, no entanto, as dúvidas retornavam mais fortes: a missa em
português, a lembrança do professor, sua estranha previsão sobre o futuro da
Igreja, tão diferente do modo como acostumara-se a concebê-la. Tudo isso, em
sua mente, misturava-se a Zé Margarida e, ele, reagindo, repeli-as,
recusava-as, tentava em vão contrapor-se ao que não tinha como aceitar.
– Bobagem
ficar se desgastando desse jeito – resmungou, mais uma vez. – Não vale a pena
queimar as mãos em tão pouca fogueira.
Na
verdade, seu Ludinho, não vale a pena queimá-las em fogueira alguma. Ou vale? E
se tudo fosse verdade? Essa história da Igreja ao lado dos pobres, o dia em que
Monsenhor seria substituído nas pregações, Zé Margarida, imagina, Zé Margarida
compreendendo o que os próprios séculos recusaram-se a mostrar de forma
diferente, fazendo tudo parecer de um mesmo igual para todos, como se as coisas
pudessem ser vistas e avaliadas de um só ângulo e, assim, iguaizinhas e sem
mudanças, continuariam per omnia saecula saeculorum.
– Mas,
continuariam mesmo, seu Ludinho? – indagou-lhe a tal vozinha que, em algum
lugar, dentro dele, teimava em vir à tona.
* * *
Súbito, a
chuva passou. Seu Ludinho, olhando para uma poça d’água, viu nela refletida a
sua própria imagem até que um novo pingo, caindo da goteira mais próxima,
espargiu-se sobre a poça, diluindo o seu reflexo e também o reflexo de um tempo
que ele pressentia pertencer agora a um mundo em que as palavras e as ações se
confundiriam, cada vez mais, com os santos e os homens, em suas falas e
profundidades.
E os
santos e os homens, em suas falas e profundidades, também seriam confundidos
com outros homens e outros santos que, dia após dia, com latim ou sem latim,
haveriam de perceber que, por mais que as coisas mudem, nunca mudam as agulhas,
os camelos, e os que aos céus não chegarão; apesar da previsão do professor, do
próprio Zé Margarida e até mesmo das palavras de Monsenhor que, no fundo, bem
no fundo, nunca se sabe. Ou sabe alguém?
Renato
Sampaio
Transcrito
de Contos de bom humor. (Parte II – Outros Contos) – Belo Horizonte, 2007.
Edições Hematita, 128 páginas
saudações
ResponderExcluirperguntas pertinentes:
1) qual foi o estado brasileiro que primeiro aboliu a missa em latim e qual o foi o ultimo?
2) havia cartilha do que os padres falavam?
3) em que ano as missas começaram a ser feitas em português?
4) o que fazia um numero de pessoas que não sabiam nem o português direito se reunir para uma palestra na qual eles não entendiam e que inclusive não eram católicos, uma vez que de acordo com a bua papal de 1457 era pre requisito os que viessem como escravos para o brasil serem de outra denominação religiosa