A natureza
personificada
Já que o oriental se comprazia em conceber o mundo inteiro
como animado, fazendo eco ao dinamismo do homem, compreende-se que os
hagiógrafos não tenham hesitado em atribuir figura humana, partes ou membros do
corpo humano, aos elementos irracionais. Praticavam assim o antropomorfismo11 ao falar da natureza, antropomorfismo do qual eis
aqui alguns casos típicos:
o poço de Beer é convidado a subir (!) e soltar clamores de
alegria, por ocasião da vitória de Israel (cf. Núm 21,17s)
os montes prorrompam em júbilo, e as árvores do campo batam
as mãos em aplausos; exultem os céus e as profundezas da terra; rejubilem-se as
colinas e suas florestas, por ocasião da libertação de Israel detido no exílio
babilónico (cf. Is 44,23; 55,12);
o sol é como um herói que exulta ao percorrer a sua via (ci.
SI 18,6);
a terra abriu a boca para tragar Datã e Abiron (cf. Núm
16,32) e receber o sangue de Abel (cf. Gên 4,11);
este sangue, por sua vez, profere um brado, que se ergue da
terra aos céus (cf. Gên 4,10);
as estrelas da manhã cantavam em coro, quando Deus criou a
terra (cf. Jo 38,7).
Pergunta-se: que sentido terá um modo de falar tão alheio ao
nosso?
Tais expressões constituem para os hagiógrafos mais do que
ornamentos literários. Com efeito, por elas se traduz uma concepção religiosa
intimamente arraigada na alma do israelita e nos escritos bíblicos em geral: a
natureza toda é solidária com o homem, seu rei; é transmissora de mensagem
divina, ora de repreensão (para o indivíduo ou os povos pecadores), ora de
louvor e congratulação jubilosa (para quem é reto); em outros termos: a
natureza reflete a voz de Deus, por ela se manifesta o Criador e o Senhor
Providente. Esta verdade, aliás, é insinuada já pelas primeiras páginas da
Escritura, que referem ter a natureza entrado em desordem por efeito do pecado
do homem (cf. Gen 3); S. Paulo, em consequência, diz que até o fim dos tempos os
irracionais "gemem", sujeitos aos abusos que deles faz o homem, e
aguardam a glorificação dos filhos de Deus (cf. Rom 8, 19-22).
Expressão muito viva de solidariedade são as palavras de Já,
que assim interpela o justo:
"Tu te rirás da
devastação e da fome, não temerás os animais da terra. Terás uma aliança com as
pedras do campo, e o bestiame da terra estará em paz contigo."
(5,22s.)
Mas não somente aos elementos irracionais se aplicam os
antropomorfismos na Sagrada Escritura; os hagiógrafos nos apresentam mesmo o
Senhor Altíssimo sob traços humanos...
Dom Estêvão Bettencourt, OSB
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16 A expressão também era
usual fora da literatura bíblica. Sófocles, por exemplo, coloca nos lábios de
Ismena a seguinte exclamação: "Ó infeliz, se as coisas chegaram a este
ponto, eu, quer ligue, quer desligue, que poderia ainda conseguir?"
(Antígono, 40). Entenda-se: eu, por nenhum expediente, poderia mudar a
situação.
17 Palavra derivada do grego:
(ánthropos = homem; morphé = forma.
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Para Entender o Antigo
Testamento
Livraria Agir Editora
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