A Palavra de Deus que hoje nos é servida convida-nos a tomar consciência
da radicalidade e da exigência da missão que Deus nos confia. Não há
meios-termos: Deus convida-nos a um compromisso, corajoso e coerente, com a
construção do “novo céu” e da “nova terra”. É essa a nossa missão profética.
A primeira leitura apresenta-nos a figura do profeta Jeremias. O profeta
recebe de Deus uma missão que lhe vai trazer o ódio dos chefes e a desconfiança
do Povo de Jerusalém: anunciar o fim do reino de Judá. Jeremias vai cumprir a
missão que Deus lhe confiou, doa a quem doer. Ele sabe que a missão profética
não é um concurso de popularidade, mas um testemunhar, com verdade e coerência,
os projetos de Deus.
Evangelho reflete sobre a missão de Jesus e as suas implicações. Define
a missão de Jesus como um “lançar fogo à terra”, a fim de que desapareçam o
egoísmo, a escravidão, o pecado e nasça o mundo novo – o “Reino”. A proposta de
Jesus trará, no entanto, divisão, pois é uma proposta exigente e radical, que
provocará a oposição de muitos; mas Jesus aceita mesmo enfrentar a morte, para
que se realize o plano do Pai e o mundo novo se torne uma realidade palpável.
A segunda leitura convida o cristão a correr de forma decidida ao
encontro da vida plena – como os atletas que não olham a esforços para chegar à
meta e alcançar a vitória. Cristo – que nunca cedeu ao mais fácil ou ao mais
agradável, mas enfrentou a morte para realizar o projeto do Pai – deve ser o
modelo que o cristão tem à frente e que orienta a sua caminhada.
Comentário dos textos bíblicos
Textos: Jr 38,4-6.8-10; Hb 12,1-4;
Lc 12,49-53
A contradição de que
Jesus é sinal, segundo o evangelho, prefigura-se na vida daquele, entre os
profetas, que mais faz pensar em Jesus: Jeremias. A missão de Jeremias era
muito ingrata. Estamos em 587 a.C. Dez anos antes, em 597 a.C., o rei da
Babilônia, Nabucodonosor, já havia mostrado seu poder em Jerusalém e
substituído o rei Joaquim (Jeconias) por Sedecias, com a intenção de que este
lhe fosse submisso. Porém, por alguma ilusão de grandeza nacional ou por causa
de seus amigos políticos, Sedecias preferiu optar pelos egípcios. Agora,
Jeremias enxergava, com lucidez profética, que a política do rei Sedecias,
querendo aliar-se aos egípcios, já em fase de declínio, era uma opção errada. O
rei e a elite de Jerusalém se achavam inexpugnáveis. Nas palavras do profeta
Ezequiel, eles consideravam Jerusalém uma panela e eles a carne dentro. Ilusão:
Nabucodonosor iria fritar a panela com a carne dentro, até a panela derreter
(Ez 11,3; 24,3-5.10-11)!
Jeremias, na sua
honestidade de porta-voz de Deus, com aquela voz que lhe queimava dentro (Jr
20,9), não podia deixar de denunciar a farsa do orgulho da elite de Judá, sob
pena de ser tratado como um traidor da glória nacional. Por isso, foi
perseguido e jogado numa cisterna vazia com o fundo cheio de lodo (Jr 38,4-6),
até que um funcionário negro, o eunuco etíope Ebed-Melec, conseguiu a
transferência dele para o quartel da guarda (34,7-13).
Esse episódio foi
escolhido para a primeira leitura de hoje porque prefigura em muitos pontos a
sorte de Jesus, “sinal de contradição” (cf. Lc 2,34-35).
O evangelista Lucas
elabora longamente a subida de Jesus, da Galileia a Jerusalém, para a Páscoa
final (Lc 9,51-19,27). No percurso dessa “viagem”, Lucas insere diálogos e
declarações de Jesus, muitas das quais se encontram também no Evangelho de
Mateus, embora talvez em outro contexto. Trata-se de palavras de Jesus tomadas
da “Quelle”, a coleção de ditos com que Mateus e Lucas enriqueceram, cada um a
seu jeito, o primitivo Evangelho de Marcos. Com esses ditos, Lucas transforma o
relato da viagem num ensinamento rico e, muitas vezes, radical. O de hoje, que
se encontra também em Mt 10,34-36, é certamente radical. Lucas o insere logo
depois de uma exortação à prontidão permanente em vista da volta do Senhor para
pedir contas de nossa fidelidade e prática (Lc 10,35-48). Assim, essa
perspectiva final marca as nossas opções do dia a dia. E essas opções podem
opor-nos, na prática, às pessoas com as quais convivemos, nas nossas sinagogas
ou igrejas e até nas nossas casas e famílias: “pai contra filho e filho contra
pai, mãe contra filha e filha contra mãe, sogra contra nora e nora contra
sogra” – como já dizia o profeta Miqueias (Mq 7,3). Aliás, o fato de Jesus
citar um profeta acrescenta uma dimensão especial: o cumprimento das
Escrituras. Aquilo de que falavam os profetas alcança sua plenitude agora.
A palavra de Jesus supõe
que o tomem pelo Messias (em 9,18-20 Simão já havia declarado essa opinião).
Mas não é um Messias como eles imaginam, alguém que produza pacificamente e
quase que por milagre a paz. Que a “paz” fosse o grande presente do Messias era
a expectativa corriqueira, e isso no sentido mais amplo que se possa imaginar,
pois na língua de Jesus paz significa a plenitude, a satisfação de tudo o que o
ser humano possa desejar honestamente diante de Deus. O problema é que a paz
messiânica é fruto da justiça (Is 32,17), supõe o agir justo dos “filhos da
paz”. E é isso, exatamente, que vai dividir as pessoas, de modo que o Messias,
de fato, traz uma divisão. E o critério dessa divisão é Jesus mesmo. O que
combina com seu caminho, com seu modo de agir, garante o beneplácito de Deus; o
contrário, não. É bom lembrar o que já anunciou João Batista: o “mais forte”
que viria depois dele batizaria com o Espírito Santo e com fogo (Lc 3,16). Pois
bem, o fogo chegou (Lc 12,49).
Apesar de escolhida sem
relação intencional com o evangelho e a primeira leitura, mas em função da lectio
contínua da carta aos Hebreus, a segunda leitura reforça a mensagem
principal da liturgia de hoje: a fidelidade a Deus e a firmeza no testemunho.
Esse é, de fato, o conteúdo dos maravilhosos capítulos 11 e 12 da carta. O
texto de hoje evoca a imagem do cristão como estando no estádio de esportes
rodeado de testemunhas – em grego: mártires! – e com os olhos fixos em Jesus
Cristo. Jesus é chamado “aquele que conduz” (archegós) e “completa” (teleiotés)
a nossa fé, linguagem militar, correspondente ao estilo retórico daquele tempo,
mas suficientemente clara para entregar o recado: do início até o fim, podemos
seguir confiantemente Jesus em nossa performance no estádio da vida,
completar nosso percurso, combater o bom combate, enfrentando as maiores
dificuldades, como ele mesmo enfrentou a cruz (Hb 12,2). Diante disso, nada de
desânimo! Mensagem oportuna para o momento que vivemos.
PARA REFLETIR
Caros irmãos e irmãs, o Evangelho deste
domingo começa definindo a missão de Jesus como um “lançar fogo à terra”, a fim
de que desapareça o pecado e nasça um novo tempo. A proposta de Jesus trará, no
entanto, divisão, pois é uma proposta exigente, que provocará a oposição de
muitos. Na primeira parte do texto: “Eu
vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!”
(v. 49). No Antigo Testamento o fogo
traz consigo um elemento teofânico, usado para representar a santidade divina
(cf. Ex 3,2; 19,18; Dt 4,12; 2Rs 2,11).
O fogo também aparece na linguagem dos profetas para ressaltar o quadro
do castigo das nações pecadoras (cf. Is 30,27.30.33). No entanto, ao mesmo
tempo que castiga, o fogo também faz desaparecer o pecado (cf. Is 9,17-18; Jr
15,14; 17,4.27); e surge, assim, como elemento de purificação e transformação
(cf. Is 6,6; Dn 3). Neste contexto, o fogo tem um poder transformador, e
dele nascerá o mundo novo, de justiça e
de paz.
Jesus veio revelar aos homens a santidade de
Deus. A sua proposta destina-se a destruir o erro e o pecado. Também podemos
lembrar do Espírito Santo, quando no dia de Pentecostes, desceu como línguas de
fogo sobre os apóstolos e a Virgem Maria, estando eles reunidos em oração no
Cenáculo (cf. At 2,3-11). O Espírito
Santo passa a dar energia e força a
eles, para que possam propagar o fogo da sua palavra e do seu amor, como
pedimos na oração: “Vinde Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e
acendei neles o fogo do vosso amor…”.
Na segunda parte (v. 51-53), Jesus confessa
que não veio trazer a paz, mas a divisão: “Julgais que Eu vim estabelecer a paz
na terra?” E acrescenta: “Daqui por diante estarão cinco divididos numa só
casa: três contra dois e dois contra três; dividir-se-ão o pai contra o filho e
o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra
contra a nora e a nora contra a sogra” (Lc 12,51-53).
A Sagrada Escritura nos diz que a paz é um dom
messiânico (cf. Lc 2,14.29; 7,50; 8,48; 10,5-6; 11,21; 19,38.42; 24,36) e que a
função do Messias será guiar os passos dos homens “no caminho da paz” (Lc
1,79). Ele é mensagem de paz por
excelência. O Cristo Senhor, como escreve São Paulo, “é a nossa paz” (Ef
2,14). Ele morreu e ressuscitou para
derrubar o muro da inimizade e inaugurar o Reino de Deus que é amor, alegria e
paz. Jesus é anunciado no Antigo Testamento como o príncipe da paz (cf. Is 9,5)
e caberia a ele anunciar a paz aos povos (cf. Zc 9,10). Por ocasião do seu nascimento os anjos anunciaram:
“Paz na terra” (Lc 2,14). E após a sua ressurreição ele aparece aos seus
apóstolos dizendo: “A paz esteja convosco” (Jo 20,21).
Contudo, a mensagem que Jesus traz à
humanidade é questionante e interpeladora: alguns a acolhem positivamente;
outros a rejeitam, não estão interessados nem em Jesus nem mesmo na proposta
que ele traz. Como consequência, haverá divisão e desavença, até mesmo dentro
da própria família, mediante as opções que cada um pode fazer.
Por isso, quem deseja seguir Jesus e
comprometer-se sem hesitações pela verdade deve saber que encontrará oposições
e se tornará, infelizmente, sinal de divisão entre as pessoas. O amor aos pais
é um mandamento sagrado, mas para ser vivido de modo autêntico, nunca pode ser
anteposto ao amor de Deus e de Cristo.
A fé exige que se escolha Deus como critério
básico da vida. Deus é misericórdia,
Deus é fidelidade, é vida que se doa a todos nós. Jesus não quer dividir os
homens entre si, pelo contrário: Jesus é a nossa paz, é a nossa reconciliação!
Mas esta paz comporta a renúncia ao mal, ao egoísmo, e a escolha do bem, da
verdade e da justiça, mesmo quando isto exige sacrifício e renúncia aos
próprios interesses. E isto sim, divide; como sabemos, divide até os vínculos
mais estreitos. Mas não é Jesus que divide! Ele propõe o critério: viver para
si mesmo, ou para Deus e para o próximo; ser servido, ou servir; obedecer ao
próprio eu, ou obedecer a Deus. O velho Simeão já havia dito que o próprio
Cristo seria um “sinal de contradição” (Lc 2,34).
Parece difícil conciliar a paz e a divisão.
Por isto, para entendermos a mensagem do evangelho deste domingo, faz-se
necessário lembrar de uma outra afirmação de Jesus. Ele disse: “A verdade vos libertará” (Jo
8,32). E também afirmou: “Eu sou o
caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Não se pode trair a verdade. E então, poderá acontecer que algumas pessoas
não concordarão com o que o Evangelho ensina e se afastarão do caminho apontado
por ele.
A paz que Jesus veio trazer não é sinônimo de
simples ausência de conflitos, ao contrário, a paz de Jesus é fruto de uma luta
constante contra o mal. O confronto que Jesus está decidido a enfrentar não é
contra homens ou poderes humanos, mas contra satanás, o inimigo de Deus e do
homem. Quem quer resistir a este inimigo, permanecendo fiel a Deus e ao bem
deve necessariamente enfrentar incompreensões e, às vezes, verdadeiras
perseguições.
As perseguições já ocorriam na época dos
profetas, como ressalta a primeira leitura, que nos mostra a figura do profeta
Jeremias, cuja existência se traduziu em arriscar a vida por causa do anúncio
da Palavra de Deus. Ele foi seduzido
pelo Senhor e colocou-se inteiramente ao seu serviço, mesmo que isso tenha
significado violentar a sua própria maneira de ser, afastar-se dos familiares,
dos amigos e deparar com o ódio dos opositores à sua mensagem. Jeremias é o
protótipo do profeta que dá a sua vida para que a Palavra de Deus seja
anunciada a todos. Para estar a serviço
da Palavra de Deus, Jeremias experimentou o sofrimento, a incompreensão e a
morte, ocorrida por volta do ano 580 a.C, estando ele exilado no Egito. Uma
tradição judaica diz que ele foi apedrejado até a morte pelos próprios
compatriotas.
Nisso, pode-se lembrar do início do
cristianismo e do tempo das perseguições.
Muitos pagãos convertidos eram desprezados pelos seus familiares. Podemos lembrar de São Sebastião, que viveu no século terceiro e era amigo
pessoal do Imperador Diocleciano, mas tendo se convertido ao cristianismo, foi
por ele abandonado e condenado à morte.
Podemos lembrar ainda dos apóstolos, de Santo Estêvão, o primeiro
mártir, de São João Batista, o maior dos profetas de Cristo, que soube
renegar-se a si mesmo para dar espaço ao Salvador, e sofreu e morreu pela
verdade. Podemos ainda recordar de muitos outros santos que foram perseguidos e
mortos por causa da verdade, por causa de Cristo. Neste mês de agosto celebramos vários deles,
dentre os quais ressaltamos de São Lourenço, do século III, vindo a falecer por
ocasião da perseguição contra os cristãos no ano de 258, ordenada por
Valeriano, imperador pagão, que mandou amarrar Lourenço em uma grelha, para ser
assado vivo e lentamente. E Santa Teresa Benedita da Cruz, também morta num
campo de concentração, por ocasião da perseguição nazista.
E neste domingo, 14 de agosto, recordamos
também um outro mártir, São Maximiliano Maria Kolbe, que concluiu com o
martírio a sua peregrinação terrestre, também na época da perseguição nazista,
há 75 anos. Foi no final de julho de 1941, quando vários prisioneiros foram
destinados a morrer de fome, e, neste dia, São Maximiliano, então sacerdote,
apresentou-se espontaneamente, declarando-se pronto a morrer em substituição a
um deles, porque era um pai de família e a sua vida era necessária aos seus
entes queridos. Dando a sua vida por um
irmão, São Maximiliano soube cumprir o preceito do Senhor: “Ninguém tem maior
amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15,13). E São Maximiliano, após mais de duas semanas
de tormentos por causa da fome, enfim teve tirada a sua vida, com uma injeção
letal, aos 14 de agosto daquele ano. Segundo relatos, a última palavra
pronunciada por São Maximiliano, foi “Ave-Maria!”, no momento em que estendia o
braço para aquele que o matava.
Este é o testemunho dos santos, este é
especialmente o testemunho dos mártires, associados de maneira íntima ao
sacrifício redentor de Cristo, que na cruz deu a própria vida em prol da
humanidade. A Virgem Maria, Rainha da
Paz, partilhou até ao martírio da alma a luta do seu Filho Jesus contra o
maligno, e continua a partilhá-la até o fim dos tempos. Invoquemos a sua
proteção materna, para que nos ajude a sermos sempre testemunhas da paz de
Cristo. Que ela nos ajude também a
manter o olhar bem fixo em Jesus e a segui-lo sempre, mesmo quando for difícil.
E como mãe, se digne a interceder sempre por nós, por nossa cidade, pelo mundo
inteiro, para que obtenhamos um futuro que não pode ser de ódio, mas de
fraternidade; que não seja de confronto, mas de colaboração, fraternidade,
respeito recíproco e de paz. Assim seja.
Nenhum comentário:
Postar um comentário