Uma sociedade de eternos adolescentes?
Continua-se a
estar sempre mais atingido pelo nivelamento das gerações que se vê em rapazes e
moças, jovens e adultos unidos por uma mesma dinâmica: no modo de vestir,
falar, se comportar, mas, sobretudo, nas relações e na afetividade revelam-se
muitas vezes as mesmas dificuldades, até o ponto em que se torna difícil
entender quem desses é realmente o adulto. Ao mesmo tempo, preocupa a sempre
maior difundida fuga da responsabilidade, que leva a procrastinar
indefinidamente as escolhas de vida, iludindo-se de ter sempre intactos, diante
de si, todas as possibilidades.
Uma pesquisa da
Istat[ii], realizada em 2008 (e, por conseguinte, anterior à grave crise que
infelizmente levou ao desemprego milhares de jovens e de adultos), revelava que
mais de 70% das pessoas com idade entre 19 e 39 anos vivem ainda com os pais. O
motivo é também, mas não somente, econômico, já que nessa faixa há pessoas com
trabalho estável e uma renda que permitiria viver de maneira independente.
As mesmas
pesquisas mostram, além disso, que na Itália, mas também em outros países da
Europa, há um aumento preocupante de jovens/adultos que pararam numa espécie de
“limbo”, sem escolhas e sem perspectivas. Essa situação abarca uma faixa etária
sempre maior, ao ponto de ser agora classificada como categoria sociológica, “a
geração nem-nem”[iii]. Mas, principalmente, tal condição, não é vista como
problemática pela maioria das pessoas: “Há 270 mil jovens entre 15 e 19 anos
que não estudam e não trabalham (9%): a maior parte porque não encontra
trabalho; 50 mil porque fizeram de sua inatividade uma escolha; há ainda 11 mil
que não querem saber de trabalhar ou estudar (“não me interessa”, “não
preciso”, dizem). A mesma tendência ocorre nos dados relativos aos jovens entre
25 e 35 anos: um milhão e noventa mil não estudam e não trabalham; ou seja,
quase um quarto deles (25%). Um milhão e duzentos mil desses gravitam no
desemprego (mas entre estes últimos há quem diga que não procura bem porque
está “desanimado” ou porque “de qualquer modo, o emprego não existe mesmo”).
Setecentos mil são, ao contrário, os “inativos convictos”: não procuram trabalho
e não estão dispostos a procurá-lo […]. Uma pesquisa espanhola recente,
assinada pela sociedade Metroscopia, revela que 54% dos jovens da idade dos 18
aos 35 anos declara “não haver nenhum projeto sobre o qual desenvolver o
próprio interesse ou os próprios sonhos”[iv].
A essa situação
de impasse e confusão acompanha uma igualmente grave crise de autoridade e de
normatividade que, como se verá, constituem um dever educativo irrenunciável.
Tal dever é rejeitado por muitos motivos: porque esses que deveriam fazer valer
a norma, os adultos, não possuem a força, têm medo de parecerem impopulares ou,
muitas vezes, porque muitos não acreditam mais em ditas normas, vistas somente
como uma fonte de conflito e dificuldade.
Mas o aspecto
talvez mais triste dessa carência seja que a norma que o adulto deveria
estabelecer, vem a faltar porque, às vezes, os mesmos educadores e pais se
encontram perdidos em problemas afetivos, relacionais, até mesmo de
dependência. E daí a crise profunda do adulto, com o risco de seu desaparecimento:
“Se um adulto é alguém que tenta assumir as consequências de seus atos e de
suas palavras […], não podemos deixar de constatar um forte declínio da sua
presença na nossa sociedade […]. Os adultos parecem estar perdidos no mesmo mar
onde se perderam os próprios filhos, sem qualquer distinção de geração”[v].
Uma motivação
possível, na origem dessa amálgama indiferenciada, pode ser detectada no
prolongamento da meia idade, própria das últimas décadas e agravada devido à
crise econômica atual, a qual não encoraja a levar em consideração os custos e
os esforços adicionais para comprometer-se numa situação futura incerta. Além
disso, a nova cultura tecnológica contribui para confundir os limites entre a
realidade e a fantasia, que é a característica típica da criança. Já o havia
compreendido com lucidez Johan Huizinga no longínquo 1935: “[O homem moderno]
pode viajar de avião, falar com pessoas do outro hemisfério, comprar guloseimas
inserindo poucas moedas numa máquina automática […]. Aperta um botão, e a vida
cai aos seus pés. Pode tal vida torná-lo emancipado? Ao contrário. A vida para
ele tornou-se um brinquedo. É de se espantar que ele se comporte como uma
criança?”[vi].
A dificuldade de crescer na sociedade
tecnológica
A cultura dita
tecnológica se impõe hoje, não só pela difusão de instrumentos sempre mais
sofisticados, principalmente pela possibilidade de planificar a existência de
uma maneira impensável às gerações precedentes[vii]. E isso, especialmente, em
nível de natalidade. Em tal campo, apareceram termos usados sempre mais
frequentemente, até surgir o slogan que resume uma concepção de vida:
“procriação responsável”, filhos “queridos e desejados”, ou mesmo
“programáveis”.
Parece assim
ter-se realizado o sonho, desejado por Freud no fim do século XIX, de poder
separar a concepção da pulsão erótica: tal separação não favoreceu, todavia,
como esperava o fundador da psicanálise, o “triunfo da humanidade”[viii]. Mais
precisamente essa levou a um empobrecimento psicológico e afetivo, nunca antes
conhecido, uma verdadeira “revolução antropológica”, para retomar o subtítulo
de um livro de Marcel Gauchet.
Desde o seu
nascimento, o ser humano tem a ânsia de que, no fundo, poderia não ter sido
desejada e que deve, de qualquer modo, “merecer” ter vindo ao mundo,
correspondendo às fortes expectativas dos seus pais. Como observa Gauchet:
“Disso pode derivar a invencível fé na própria sorte, ou, ao contrário, a
sensação de irremediável precariedade da própria existência. Em relação àquele
desejo que o subtraiu ao destino comum, manterá muitas vezes uma irredutível
aflição […]. Um filho é cada vez mais desejado quanto menos é filho da
natureza; mais é fruto de um artifício, qualquer que este seja, menos é aquilo
que deve ser: o filho de seus pais”[ix].
Outro aspecto
paradoxal dessa desenvolvida potencialidade planificadora é que a acurada
seleção do nascituro corresponde sempre menos àquela atenção afetiva e
educativa indispensáveis para educá-lo, tornando-o um adulto responsável. O
filho se encontra, ao contrário, sufocado pela atenção dos pais que, depois de
o terem programado por tanto tempo, veem nele a possibilidade de realizarem
suas expectativas, muitas vezes até de preencherem seus vazios e suas
incompetências.
A criança corre o
risco, assim, de ser bem cedo tratada como um mini adulto, sobretudo se está
sendo criada por um genitor solteiro: nesse caso, forte será a tendência a
depositar no filho esperanças e expectativas que na verdade deveriam estar
voltadas ao próprio companheiro, dando origem àqueles perversos díades nas
quais o filho ou a filha são chamados a tornarem-se respectivamente
“vice-marido” ou “vice-esposa” do próprio genitor, impedindo-se de viver a
etapa infantil e a própria filiação, duas condições essenciais para a
maturidade psíquica, cognitiva e afetiva[x].
A “síndrome do
filho único”, vista em outras ocasiões[xi], parece confirmar essa inconsciente
agitação, o desconforto de lidar com a polaridade desejo/rejeição dos pais. Ele
se torna assim esmagado pelas expectativas dos pais, da mesma forma que um
brinquedo é chamado a compensar as carências dos adultos.
Tudo isso
contribui à incapacidade de um filho se tornar adulto; incapaz, sobretudo, de
saber o que verdadeiramente quer da própria vida. Uma vez crescido, aquele menino
ou aquela menina procurarão de fato aquela infância perdida que jamais tiveram,
recusando-se a crescer.
A Síndrome de Peter Pan
A rejeição ao
crescimento é um fenômeno em expansão, também desde o ponto de vista
geracional, a tal ponto de ocupar a vida inteira do homem. Essa situação de
“bloqueio interior”, de impossibilidade de se passar à fase adulta da vida, foi
recentemente ratificada como categoria psicológica, chamada de Síndrome de
Peter Pan através da obra do psicólogo junguiano Dan Kiley. Ele se inspira no
célebre romance de James Barrie Peter and Wendy, publicado em 1911, embora
tenha conseguido maior fama o título escolhido para a representação teatral, de
1904 (Peter Pan: o menino que nunca quis crescer).
A escolha do
personagem, protagonista do romance, já é por si significativa. Peter era
também o nome do irmão de James que morreu aos catorze anos num acidente de
patinagem; enquanto Pan, na mitologia grega, era filho de Ermes e da filha de
Driope, que o rejeitou, abandonando-o ao seu destino[xii]. Como na mitologia e
no romance de Barrie, também na Síndrome de Peter Pan à base da condição
instável e errante desse personagem é principalmente a ausência de relações
afetivas importantes, em particular com os pais, vistos como frios e distantes,
ou incapazes de suscitar respeito[xiii].
Desse modo, quem
sofre dessa síndrome busca a própria infância perdida, comportando-se como se o
tempo tivesse parado, assumindo por toda a vida a instabilidade psíquica e
afetiva própria da adolescência, prisioneiro “no abismo entre o homem que não
se quer tornar e o garoto que não se pode continuar a ser”[xiv]. E se essa
pessoa, no meio tempo, também se casa, acaba por entrar em concorrência com os
próprios filhos, imitando-lhes os comportamentos e os modos de pensar. Como
confessava uma jovem desconsolada: “meu pai não faz outra coisa a não ser
correr atrás das minhas amigas e depois quer se confidenciar comigo”[xv].
Por sua vez, os
filhos, colocados no mesmo nível dos seus pais, tendem a comportarem-se como
adultos: desse modo, nenhum dos dois vive as responsabilidades e peculiaridades
da própria etapa de vida; como num jogo perverso, esses vêm trocados,
invertendo perigosamente o significado da derrota edípica: “Se olhamos
atentamente ao conteúdo da TV, podemos encontrar uma documentação bastante
precisa não somente do nascimento da ‘criança adulta’, mas também do adulto
‘feito criança’ […] Salvo raras exceções, os adultos na televisão não tomam
seriamente o próprio trabalho, não educam seus filhos, não participam na vida
política, não praticam nenhuma religião, não representam nenhuma tradição, não
têm capacidade de pensar o próprio futuro ou de formular seriamente projetos de
vida, não são capazes de fazer longos discursos e não são nunca capazes de
evitar comportamentos dignos de uma criança de oito anos”[xvi].
Na atual
sociedade “líquida” a fase adulta corre o risco assim de reduzir-se a uma
expressão de meros dados sem mais responsabilidades específicas que a
caracterizam e, sobretudo, a diferenciam das fases precedentes da vida,
conferindo-lhe uma identidade: ser adultos era sinônimo de ser maduros, não
certamente como as crianças, mas capazes de assumir responsabilidades. Essas
características aparecem sempre mais raramente, ao ponto em que “não é excessivo
falar de uma liquidação da idade adulta. Estamos assistindo a uma desagregação
daquilo que significava maturidade”[xvii].
O desaparecimento do pai
A contínua
popularidade e atualidade de Peter Pan não falam somente de uma dificuldade de
crescimento. Esse personagem é também uma forma de protesto em relação à fuga
dos educadores, daqueles que podem fazer bela, ainda que difícil, a missão de
tornar-se adulto, deixando-o só: “Se Peter Pan é o símbolo de um fenômeno que
tem crescido sempre mais nos últimos cem anos, ou seja, a obstinada vontade de
permanecer criança, Peter Pan nos diz ainda algo mais inquietante: perdemos os
nossos pais como modelos, os pontos de referência sólidos, fomos abandonados a
nós mesmos”[xviii].
É significativo
que autores das mais diversas escolas de proveniência individuam
particularmente na ausência da figura paterna, acentuada dramaticamente nas
últimas décadas, uma das principais razões para o vazio de sentido e de
identidade que parece ser comum a jovens e a adultos. Um autor que não pode
certamente ser etiquetado de tradicionalismo nostálgico observa a esse
propósito: “O vazio estrutural da moderna sociedade ocidental provem da
ausência do pai. Em certo sentido o enfraquecimento ou inclusive o
desaparecimento de todos os outros papéis de parentesco derivam daquela lacuna
que está no vértice da família”[xix]. Nessa falta, se constata, de fato, a
incapacidade de uma geração de transmitir valores e tradições capazes de ajudar
o futuro adulto a enfrentar as dificuldades da vida tornando, por sua vez,
educadores de outros.
O desaparecimento
dos vínculos familiares foi infelizmente visto como o sinal profético da vinda
de uma nova sociedade; nos anos setenta do século passado era desejada a morte
do matrimônio e da família, vista como o símbolo da opressão que penaliza a
liberdade do indivíduo, impedindo a auto realização[xx]. Os resultados se
revelaram, porém, muito diversos, precursores de problemas bem mais graves, que
correm o risco de levar ao desaparecimento da sociedade ocidental, como acentua
sempre Scalfari: “na maior parte dos casos o indivíduo, abandonado na sua
solidão, não encontrou outro remédio melhor do que o de confundir-se no bando,
isto é, de se tornar um sujeito anônimo e indiferenciado, sustentado somente
por motivações emocionais”[xxi].
Não é mais a
comunidade ou o vinculo a um determinado estrato social, mas sim “o bando” a
caracterizar a sociedade sem adultos, uma sociedade que abandonou o seu dever
educativo.
Os Procis, filhos de um pai ausente
Essa linha de
leitura vem confirmada também na mitologia, na qual está narrada a história do
homem e da mulher de todos os tempos. A categoria de “bando” lembra os Procis,
magnificamente descritos por Homero, aquela massa numerosa (108 segundo a
Odisseia XVI, 247 s.), violenta e parasita, dominada por uma agressividade
desenfreada.
Exatamente como
Peter Pan, esses não são mais crianças e nem mesmo homens; não fizeram nenhuma
escolha em suas vidas; vivem cada dia, dos expedientes, gozando do instante
presente, sem nenhum projeto pelo qual valha a pena empenhar-se. A atualidade
psicológica e social desses personagens é digna de atenção: “Os Procis […] são
a massa supérflua que logo preenche todo vazio de poder na sociedade. Mas na
psiché são o adversário interno, a desagregação da responsabilidade […]. O que
Ulisses odeia decididamente neles não é a arrogância – que não lhes é uma coisa
estranha – mas o viver cada dia, sem nenhum objetivo: o ato supérfluo (anenysto
epi ergo) […]. Aquilo que esses representam não pode ser readmitido na
civilização, sob a pena da sua desagregação: a hilaridade, na qual o imaturo
esconde o seu medo; o dia para chegar a noite; a obstinação a conquistar a
mulher e a casa, a rainha e o palácio, sem a disponibilidade para organizar o sistema
familiar e econômico. Mais uma vez, é o quadro do jovem desadaptado”[xxii].
O desenvolvimento
narrativo da Odisseia faz agudamente notar como esses aparecem no dia seguinte
ao desaparecimento do pai. A partida de Ulisses conduz à proliferação daqueles:
os Procis podem ser considerados como a prefiguração ante litteram de Peter
Pan. A comparação de ambos, de fato, não é forçada: é a mesma mitologia grega a
colocar esses personagens em estreita relação entre eles. Pan seria, pois, o
fruto da múltipla união dos Procis com Penélope durante a ausência de
Ulisses[xxiii].
Colocados de
frente à “prova do arco” (que, como veremos, é um símbolo da paternidade) se
mostram incapazes de enfrentá-la (tendendo o arco para lançar a flecha), isso
é, de assumir uma responsabilidade generativa que pode fazer deles homens. Têm
idades diferentes, porém se apresentam com uma única classe, amorfa, sem
identidade.
A tarefa de se tornar adultos
Mas o que
significa ser adulto? Significa, antes de tudo, aceitar não ser mais criança,
renunciando aos valores e comportamentos de idades precedentes para assumir a
novos: a renúncia é a condição do crescimento, como bem tinha intuído Max
Scheler[xxiv].
Deixar uma fase:
isto é o que o adulto atual não parece mais capaz de fazer, antes de tudo, a
nível imaginativo, lamentando-se sempre da criança ou do adolescente que jamais
foi. Trata-se, porém, de acolher o que Freud chamava de o princípio da
realidade que passa por uma ferida, uma experiência de impotência e de
mortalidade que, paradoxalmente, no momento no qual vem assumido, fortalece o
ser humano.
Isto era o
significado dos “ritos de passagem” ou de iniciação, que nas sociedades de cada
época marcavam o ingresso do jovem na idade adulta, mediante cerimônias guiadas
por adultos. Os ritos de iniciação resultam fundamentais porque têm como objeto
a agressividade, o sofrimento e a morte, em outras palavras, o ser humano na
sua verdade e fragilidade. O rito podia fazer isso, porque recordava a
sacralidade da vida e a sua relação com Deus; isso era o significado do gesto
de tirar com violência a criança dos braços da mãe (que até aquele momento era
o ponto de referência peculiar) para elevá-la ao céu, um gesto com o qual ela
recebe a confirmação da própria identidade: “O significado desse gesto é claro:
se consagram os neófitos ao Deus celeste”[xxv]. Essa tarefa sempre foi peculiar
do pai.
Quando não se
cumprem os ritos de iniciação, esses não desaparecem, mas enlouquecem, dando
origem às derivas do “bando”. As violências das baby gang, o bullying masculino
e feminino, os estupros de grupo, os “embalos de sábado à noite”, os
comportamentos de risco, o uso de drogas em grupo, a atração pelo macabro são
ritos de iniciação enlouquecidos, pedidos degenerados de tomar contato com a
dimensão da corporeidade, da relação, da agressividade, do perigo, da morte,
mas sem que exista, no entanto, um adulto capaz de acompanhar-lhes.
O desaparecimento
dos adultos se traduz também numa redefinição dos papéis familiares: não são
mais os filhos que devem aprender dos pais e receber deles normas e
ensinamentos, mas ao contrário, são os pais que se conformam aos critérios e
aos comportamentos dos filhos, procurando desse modo conseguirem a aprovação
deles.
A necessidade de um modelo
Para ser adulto
deve-se, pois, ter recebido uma ferida, aquela ruptura violenta que caracteriza
o ingresso na realidade representada pelos ritos de iniciação. Tomar contato
com aquela ferida significa para o jovem reconhecer e acolher a própria
fragilidade. Isso lhe permite afrontar a realidade, abandonando as fantasias
pueris e reconhecendo os próprios desejos profundos. Tornar-se adulto não
significa de nenhuma maneira sentir-se onipotente, livre de defeitos ou
limites, mas ocupar o próprio lugar, aceitando a possibilidade de equivocar,
acolhendo o tempo que passa[xxvi].
O primeiro
ensinamento que Deus dá ao homem na Bíblia é exatamente esse: se queres viver,
se queres saborear a vida, recorda-te de que eres criatura, de que não és Deus.
Isso é expresso na proibição de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal
(cfr. Gn. 2, 16): no trecho, aquela árvore simboliza o próprio Deus e o homem
deve preservar-se do desejo de querer tomar-lhe o posto, porque acabará se
destruindo. Naquele ensinamento podem-se conter as três etapas fundamentais do
desenvolvimento humano: o nascimento, o desaleitamento, a derrota edípica.
Essas constituem as três diferentes derrotas da onipotência, são os três
“pontos de não-retorno” próprios do crescimento (em relação à condição
pré-natal, ao aleitamento, a um ligame exclusivo com a mãe), indispensáveis
para entrar na realidade, para ser “vivo”. Se cumpridas corretamente, essas
três renúncias permitem, na idade adulta, fazer escolhas definitivas; por outro
lado, a maior parte das dificuldades e do desgosto de viver é ligada exatamente
a esses três aspectos.
À raiz de muitos
pedidos de ajuda psicológica está frequentemente a não aceitação da própria
verdade de criatura, marcada pelo limite e pela fragilidade: não se aceitar a
si mesmo, antes de tudo o próprio corpo (pensemos no boom de cirurgias
plásticas e do lifting com consequências também graves para a própria saúde,
mas também nos distúrbios alimentares como a bulimia e a anorexia), não se
aceita a própria família de proveniência, a própria história e personalidade.
Dever fundamental
da mãe e do pai, o qual, como visto em outras ocasiões, é símbolo forte do Pai
celeste, é apresentar novamente aos próprios filhos esse ensinamento do livro
de Gênesis[xxvii], de tomar consciência dos próprios limites, condição
fundamental para se tornar adulto e para produzir frutos na própria vida. Os
pais podem fazer isso porque precedentemente acertaram as contas com a própria
fragilidade, com a própria ferida originária[xxviii].
Se os pais
querem, em vez, salvaguardar os filhos de todo tipo de dificuldade, isso levará
ao aparecimento de dúvidas e frustrações interiores, que minam, à raiz, a
estima de si e a capacidade de assumir responsabilidades. Principalmente os
filhos terão dificuldades em aproximar-se aos seus desejos profundos, àquilo
que realmente querem das suas vidas: “A clínica dos assim ditos novos sintomas
mostra bem como o problema da atual insatisfação da juventude não seja tanto
aquele do conflito entre o programa do impulso e aquele da Civilização […], mas
de como aceder à experiência do desejo […]. A crise atual da operabilidade da
ordem simbólica coincide com a crise do poder de interdição, mas também com a
dificuldade da transmissão do desejo de uma geração a outra”[xxix].
Trata-se de saber
dizer “não”, de colocar limites, impopulares certamente, mas que permitam de
aceder ao desejo do coração e tornam capaz de superar os obstáculos que se
entrepõem à realização dos mesmos. O limite e a frustração são elementos
essenciais da educação, ainda que acompanhados do afeto e da confiança. Às
vezes é o filho mesmo a pedir esse limite e que uma relação assimétrica (de
adulto a filho) seja posta, também em forma não verbal, como no caso da garota
surpreendida roubando em uma grande loja: “Essa jovem não estava simplesmente
fraudando a lei ou gozando da emoção causada pela sua transgressão. Em modo
paradoxal, ela estava fazendo exatamente o contrário: estava buscando ser vista
pela lei, isto é, de fazer existir uma lei. ‘Alguém me vê? Alguém pode me ajudar
a não me perder, a não me extraviar? Existe em qualquer lugar uma lei ou, mais
simplesmente, um adulto que possa responder-me, que possa perceber a minha
existência?’ A pergunta dos nossos jovens insiste e nos coloca com as costas
contra o muro: ‘Vocês existem? Os adultos ainda existem? Há alguém ainda que
saiba assumir responsavelmente o peso da própria palavra e dos próprios atos?’
Na cleptomania daquela garota podemos perceber toda a grandeza da insatisfação
da juventude contemporânea”[xxx].
O filho pode
compreender o valor do limite se vê nos pais não um tirano que o rejeita, nem o
“camarada” que se coloca no mesmo nível dizendo-lhe sempre “sim”, mas alguém
que o introduz com afeto na realidade, na sua dimensão de mediocridade e de
fragilidade. O adulto pode fazer isso porque antes a acolheu em si mesmo. Isso
lhe consente não colocar-se no mesmo nível daquele que é chamado a educar e de
não ceder a chantagens afetivas.
Não se trata
certamente de uma tarefa fácil: essa é, porém, o único modo para não fazer do
filho um escravo dos próprios caprichos. A incapacidade de dizer “não” é um dos
sinais mais fortes da crise do adulto e da perigosa inversão da derrota
edípica, uma inversão inédita, na qual são os pais a pedir aos filhos de serem
reconhecidos[xxxi].
Retomar o arco de Ulisses
A crise do
adulto, reconhecida e descrita pela mitologia, pode encontrar, na mesma
mitologia, possíveis saídas. Toda a primeira parte da Odisseia é chamada de
Telemaqueia, a busca afanosa pelo pai ausente, por parte do filho. Ele não se
resigna com o seu desaparecimento, mas deseja ver o pai, ainda que não o tenha
jamais conhecido verdadeiramente, anseia de poder ter dele ao menos uma imagem
para ser impressa na sua mente[xxxii].
O caso de
Telêmaco é muito parecido à situação da juventude atual. Para ambos não são,
certamente, algumas coisas que lhes faltam, nem mesmo o bem-estar; esses se
descobrem, às vezes, desprovidos daquela representação ideal de si que somente
o pai é capaz de dar.
Na Odisseia,
Ulisses pode ser finalmente reconhecido como pai somente quando, no final da
poesia, o filho o vê empunhar o arco, com aparência humilde, mas decidido:
“parece que Homero pensou nos nossos tempos e que nos advertiu: jamais o pai
desaparece totalmente. Mas não creiais de reencontrá-lo nos machos barulhentos:
aqueles são os Procis, os eternos não-adultos. Se alguém, em vez, é humilde,
paciente, poderia ser ele, o sobrevivente de guerras e tempestades”[xxxiii].
O arco pode
simbolizar o papel e a tarefa do pai, que não é delegável; e, de fato, nenhum
dos Procis tem a capacidade de manejá-lo, porque não possuem autoridade para
isso. Mas o pai do qual se fala não é certamente o pai-patrão que caracterizou
as nossas sociedades dos últimos dois séculos, levando ao final à sua rejeição e
afastamento. Ulisses, em vez, diz com precisão Homero, sabe tender o arco como
um músico acaricia a harpa, associando com esse gesto as duas funções
essenciais do pai: a força e a ternura[xxxiv].
Somente quando é
capaz de unirem em si essas duas virtudes, a autoridade e a ternura, Ulisses
pode novamente empunhar o seu arco e meter fim à “noite dos Procis” [xxxv].
Giovanni Cucci S.I.[i]
_____________________________________
[i] Artigo
publicado em La Civiltà Cattolica, II 220-232, caderno 3885 (5 de maio de
2012).
[ii] Istat é o
instituto nacional de estatísticas, um ente de pesquisas públicas na Itália
(nota do tradutor).
[iii] Assim
traduzimos à expressão italiana “generazione né-né”, que quer se referir àquelas
pessoas que nem estudam, nem trabalham (Nota do tradutor).
[iv] MANGIAROTTI,
A. Generazione “né-né”. Settecentomilla giovani “inattivi convinti” In:
Corrieri della Serra, 16 de julho de 2009, p. 25.
[v] RECALCATI, M.
Dove sono finiti gli adulti? In: La Repubblica, 19 de fevereiro de 2012, p. 56.
O recente filme 17 ragazze (17 moças) (de Delphine e Muriel Coulin) inspirado
no fato real de um grupo de adolescentes estadunidenses, unidas por um pacto
comum, de ficarem ao mesmo tempo grávidas, apresenta ao mesmo tempo toda a
dificuldade do mundo adulto (na escola como na família) a compreender o
desconforto dessas jovens, por estarem com os mesmos problemas não resolvidos.
[vi] HUIZINGA, J.
La crisi della civiltà. Totino, Einaudi, 1962, p. 115.
[vii] Veja-se as
célebres análises de HEIDEGGER, M. “A questão da técnica”, In ID., Saggi e
discorsi, Milano, Mursia, 1991, p. 5 -27.
[viii] PREUD, S.
“La sessualità nell’etiologia delle neurosi”, in ID., Opere (1892-98), Torino,
Boringhieri, 1968, 410.
[ix] Cfr.
GAUCHEI, M. Il figlio del desiderio. Una rivoluzione antropologica, Milano,
Vita e Pensiero, 2010, 70; cfr. 49. Cfr. os problemas levantados por PAROT, F.
– TEITBAUM, E. Des enfants sans toi ni moi, Paris, Flammarion, 2002, e por J.
HABERMAS, segundo o qual programar o nascimento comporta a “dificuldade de
conceber-se como autônomo”, também desde o ponto de vista da responsabilidade
moral (L’avenir de la nature humaine. Vers un éugenisme liberale, Paris,
Gallimard, 2002, 82).
[x] O célebre
estudo de Miller sobre o alto custo que a nível afetivo paga a criança
“constituída dote”, isto é, sensível a acolher a necessidade do progenitor,
reprimindo o próprio, se insere nesta perversa dinâmica relacional, na qual os
papéis são trocados. Esta afetividade reemerge na idade adulta nos níveis nas
quais tinha sido congelada, e, uma vez adulto e progenitor, traz à tona uma
série de desejos desatendidos. Frequentemente tal situação está na origem da
atração de profissões relacionadas com o escutar e à ajuda, como a psicoterapia.
Miller resume a própria experiência dos seus vinte anos em relação a três
elementos fundamentais: “1) estava sempre presente uma mãe profundamente
insegura no campo emotivo, a qual para o próprio equilíbrio afetivo dependia de
um certo comportamento ou modo de ser de criança. Essa insegurança podia
facilmente ficar velada à criança e às pessoas do seu ambiente, escondida atrás
de uma fachada de durezaautoritária ou inclusive totalitária; 2) a essa
necessidade da mãe ou dos dois progenitores, correspondia uma surpreendente
capacidade da criança de percebê-lo e de dar-lhe resposta intuitivamente; 3) em
tal modo a criança se assegurava ‘o amor’ dos pais. Ela percebia que tinham
necessidade dela e isso legitimava a sua vida e o seu existir” (MILLER, A. Il
dramma dei bambino dotato e la ricerca del vero sé, Torino, Boringhieri, 1999,
16 s). Daqui vem a dinâmica instintiva de ajuda aos outros, mesmo na escolha da
profissão, mas em forma perturbada, tendendo ao apagamento dos vazios afetivos
que não ficaram resolvidos no curso da infância.
[xi] Cfr. CUCA,
«Il matrimonio, ultimo simbolo di eternità dell’uomo occidentale», in Civ.
Catt. 2011 II 431 433. Cfr. PHILIPS, A. I «no» che aiutatino a crescere,
Milano, Feltrinelli, 1999, 47 s.
[xii] Cfr. GRIMAL,
P. Mitologia, Milano, Garzanti, 2006, 475.
[xiii] KILEY, D.
The Peter Pan Syndrome: Men Who Have Never Grown up, New York, Avon Books,
1984, 26 s.
[xiv] Ivi, 23.
[xv] RECALCATI,
M. «Dove sono finiti gli adulti?», cit., 56.
[xvi] POSTMAN, N.
La scomparsa dell’infanzia, Roma, Armando, 1984, 156; cfr. OLIVERIO FERRARIS,
A. La Síndrome Lolita. Perché i nostri figli crescono troppo in fretta,
Rizzoli, 2008.
[xvii] GAUCHET,
M. Il figlio del desiderio…, cit., 42; cursiva no texto. Cfr. BOUTINET, J. P.
L’immaturité de la vie adulte, Paris, PUF, 1998; ID., Psychologie de la vie
adulte, ivi, 2002; ANATRELLA, T. Interminables adolescences. La psychologie des
12/30 ans, Paris, Cerf-Cujas, 1998; LADAME, F. Gli eterni adolescenti, Milano,
Salani, 2004.
[xviii]
CATALUCCIO, F. M. Immaturità. La malattia del nostro tempo, Torino, Einaudi,
2004, 40.
[xix] SCALFARI,
E. «Il padre che manca alla nostra società», in La Repubblica, 27 dicembre
1998.
[xx] Cfr. COOPER,
D. La morte della famiglia. Il nucleo familiare nella società capitalistica,
Torino, Einaudi, 1972.
[xxi] SCALFARI,
E. «Il padre che manca alla nostra società», cit.
[xxii] ZOJA, L.
Il gesto di Ettore. Preistoria, storia, attualità, scomparsa del padre, Torino
Boringhieri, 2000, 115 s.
[xxiii] Cfr.
GRIMAL, P. Mitología, cit., 476.
[xxiv] Cfr.
SCHELER, M. Il risentimento nella edificazione delle morali, Milano, Vita e
Pensiero, 1975, 53.
[xxv] ELIADE, M.
La nascita mistica. Riti e simboli d’iniziazione, Brescia, Morcelliana, 1974,
24; cfr. tbm. ZOJA, L.: «A elevação da criança entre os Romanos servia ao
nascimento psíquico do filho e do pai como pai» (Il gesto di Ettore …, cit.,
247; cursiva no texto). De outra época e cultura, veja-se a descrição de
MANDELA, N. culminante com o grito “Ndiyindoda! (‘Sou um homem!’)” (Lungo
cammino verso la libertà, Milano, Feltrinelli, 2010, 35). Sobre os ritos de
iniciação permanecem fundamentais os estudos de VAN GENNEP, A. I riti di
passaggio, Torino, Boringhieri, 1981.
[xxvi] Cfr.
RECALCATI, M. Cosa resta del padre? La paternità nell’’epoca ipermoderna,
Milano, Cortina, 2011, 111-115.
[xxvii] Para ser
mais preciso, os dois primeiros aspectos vêem a mãe como protagonista, o
terceiro não redutível apenas à derrota edipiana, é próprio do pai e reflete o
simbolismo mais complexo dos ritos de iniciação. Na realidade, ambos os pais
também são fundamentais na diferente especificidade de suas intervenções, para
a ajuda mútua que são chamados a dar-se, nas diferentes fases da vida dos
filhos (cf. Cucci, G. Esperienza
religiosa e psicologia, Leumann [To] – Roma, Elledici – La Civiltà
Cattolica, 2009, 79,98;. ID., La forza dalla debolezza. Aspetti psicologici
dela vita spirituale, Roma, Adp, 2011, 121-133).
[xxviii] Cfr.
RISÉ, C. Il padre, l’assente inaccettabile, Cinisello Balsamo (Mi), San Paolo,
2003, 14-24. C. CUCCI, “o pai é chamado a desenvolver um papel decisivo n avida
de fé”, in Civ. Catt. 2009 III 118-127; “Il suicidio giovanile. Una drammatica
realtà del nostro tempo”, ivi, 2011 II 121-134.
[xxix] RECALCATI,
M. Cosa resta del padre? …, cit., 105-107. Cfr. CUCCI, G. «Il desiderio, motore
della vita», in Civ. Catt., 2010 I 568-578.
[xxx] RECALCATI,
M. “Dove sonno finiti gli adulti?”, cit., 57.
[xxxi] Cfr. ID.,
Cosa resta del padre? …, cit., 108 s.
[xxxii] “Na
Telemachia o protagonista busca notícias do pai não só para saber onde era e
para saber como era, mas, sobretudo, para conhecer a personalidade e
desenvolver a si mesmo segundo aquele modelo» (PRIVITERA, G. A. Il ritorno del
guerriero. Lettura dell’Odissea, Torino, Einaudi, 2005, 57; cfr. HOMERO,
Odisseia, Torino, Utet, 2005, 1. I, 83.111.115 s. 240; 1, IV, 317).
[xxxiii] ZOJA, L.
Il gesto di Ettore, cit, 113 s; HOMERO, Odissea, cit., XVI, 148 s.
[xxxiv] “O astuto
Odisseu, não apenas deliberou e em todas as partes provou o grande arco, como
quando um homem experto em tocar citra e em cantar move facilmente a corda […]
imediatamente moveu assim, sem esforço, o grande arco” (HOMERO, Odisseia, cit.,
XXI, 404-410).
[xxxv] ZOJA, L.
Il gesto di Ettore…, cit., 305.
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Presbíteros
Tradução: Pe. Anderson Alves e Joyce
Scoralick.
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