A Quaresma é um tempo de conversão, penitência,
oração e esmolas, para nos prepararmos para a Páscoa. A Igreja no Brasil,
incentivando-nos a esses exercícios espirituais, convida-nos também a um gesto
concreto na área social, através da Campanha da Fraternidade. É claro que essa
ação social não pode ocupar o lugar das obras espirituais e caritativas, nem se
suplanta a elas, mas é o seu complemento. Assim, a Campanha da Fraternidade tem
como finalidade unir as exigências da conversão e da oração com algum projeto
social, na intenção de renovar a vida da Igreja e ajudar a transformar a
sociedade, a partir de temas específicos, tratados sob a visão cristã,
convocando os cristãos a uma maior participação nos sofrimentos de Cristo,
vendo-o na pessoa do próximo, especialmente dos mais necessitados da nossa
ajuda.
A carta a Diogneto, joia da literatura cristã
primitiva (ano 120 D.C.), descreve como era a vida dos primeiros discípulos:
“Os cristãos não se distinguem dos demais homens, ... participam de tudo, como
cidadãos...”. Assim, além dos deveres religiosos, nós, cristãos, temos os
deveres de cidadãos, deveres civis e humanitários, para nós decorrentes do amor
a Deus e à sua obra. O católico deve ser um excelente cidadão, educado e
cumpridor dos seus deveres. Assim, católico não joga lixo na rua, não prejudica
a natureza com um desmatamento desregrado, não suja os rios nem desperdiça a
água, cuida da limpeza da sua cidade, fazendo a sua parte, não polui o ar com
seu escapamento desregulado, nem com um som que incomoda os vizinhos, não
atrapalha o trânsito nem causa tumulto e confusão por onde passa
etc.
A Campanha da Fraternidade desse ano tem como tema
“Fraternidade e Políticas Públicas, com o lema “Serás libertado pelo direito e
pela justiça” (Is 1, 27). O Papa Francisco, em sua mensagem para a Campanha da
Fraternidade (CF) desse ano, explica: “Muito embora aquilo que se entende por
política pública seja primordialmente uma responsabilidade do Estado cuja
finalidade é garantir o bem comum dos cidadãos, todas as pessoas e instituições
devem se sentir protagonistas das iniciativas e ações que promovam ‘o conjunto
das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações
alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição’ (Gaudium et spes, 74)”.
“Reconhecendo muito embora a autonomia da realidade
política, deverão se esforçar os cristãos solicitados a entrarem na ação
política por encontrar uma coerência entre as suas opções e o Evangelho” (Paulo
VI, Octogesima Adveniens, 46). Esse é um trabalho sobretudo dos leigos.
“A Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias
mãos a batalha política... não pode nem deve se colocar no lugar do Estado. Mas
também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça. Deve inserir-se
nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais,
sem as quais a justiça... não poderá firmar-se nem prosperar” (Papa Bento XVI,
Deus caritas est, n. 28).
“A Igreja não tem soluções técnicas para oferecer e
não pretende de modo algum imiscuir-se na política dos Estados, mas tem uma
missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e contingência, a
favor de uma sociedade à medida do homem, da sua dignidade, da sua vocação... A
fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de
liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade dum desenvolvimento humano
integral. É por isso que a Igreja a procura, anuncia incansavelmente e reconhece
em todo o lado onde a mesma se apresente... Aberta à verdade, qualquer que seja
o saber donde provenha, a doutrina social da Igreja acolhe-a, compõe numa
unidade os fragmentos em que frequentemente a encontra, e serve-lhe de
medianeira na vida sempre nova da sociedade dos homens e dos povos” (Bento XVI,
Caritas in Veritate, 9).
Mas, infelizmente, como pode acontecer e acontece,
os temas da CF são às vezes manipulados e direcionados para a política, de
tendência socialista e revolucionário, e favorecer ideologias heterodoxas, o
que pode levar alguns a pensar equivocadamente que a Igreja é assim. “Abusus
non tollit usum”, o abuso não impede o uso: pode-se usar de uma coisa boa em
si, mesmo quando outros usam dela abusivamente.
Entre as manipulações possíveis do tema, está a de
querer ressuscitar o viés marxista da Teologia da Libertação. Essa ideologia
teológica surgiu como reação às escravidões sociais e econômicas, que todos
lamentamos, mas muitas vezes enfatizou demasiadamente a linha social em
detrimento da espiritual, tentando reduzir o Evangelho da salvação a um
evangelho terrestre e, pior, dentro de uma análise marxista, com rejeição da
doutrina social da Igreja.
Ao receber Bispos do Brasil em visita ad limina, em
dezembro de 2009, o Papa Bento XVI recordou a “Instrução Libertatis nuntius da
Congregação para a Doutrina da Fé, sobre alguns aspectos da teologia da
libertação, que sublinha o perigo que comportava a aceitação acrítica,
realizada por alguns teólogos, de tese e metodologias provenientes do
marxismo”. Bento XVI advertiu que as sequelas da teologia marxista da
libertação “mais ou menos visíveis de rebelião, divisão, desacordo, ofensa,
anarquia, ainda se fazem sentir, criando em suas comunidades diocesanas um
grande sofrimento e grave perda de forças vivas”. Por essa razão, o Santo Padre
exortou “aos que de algum modo se sintam atraídos, envolvidos e afetados no
íntimo por certos princípios enganosos da teologia da libertação, que se
confrontem novamente com a referida Instrução, acolhendo a luz benigna que a
mesma oferece com mão estendida”.
O “trabalho político não é competência imediata da
Igreja. O respeito de uma sã laicidade – até mesmo com a pluralidade das
posições políticas – é essencial na tradição cristã autêntica. Se a Igreja
começasse a se transformar diretamente em sujeito político, não faria mais
pelos pobres e pela justiça, mas faria menos, porque perderia sua independência
e sua autoridade moral, identificando-se com uma única via política e com posições
parciais opináveis. A Igreja é advogada da justiça e dos pobres, precisamente
ao não se identificar com os políticos nem com os interesses de partido. Só
sendo independente pode ensinar os grandes critérios e os valores irrevogáveis,
orientar as consciências e oferecer uma opção de vida que vai além do âmbito
político” (Bento XVI, Aparecida, 13-5-2007, Disc. Inaug. do CELAM).
Dom Fernando Arêas
Rifan,
bispo administrador
apostólico da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney.
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