"A essência do carnaval é a suspensão momentânea de hierarquias. Mas, no Brasil, já não há ordem estabilizada, papéis sociais bem definidos ou hierarquias institucionais dignas de respeito" |
“Só
me senti brasileiro duas vezes. Uma, no carnaval, quando sambei na rua. Outra,
quando surrei Julie, depois que ela me traiu” (Paulo Rigger, personagem de
Jorge Amado em O país do Carnaval).
"É
carnaval, enfim. Por todo o país as pessoas saem às ruas para brincar e, como
se diz, esquecer a rotina do dia a dia. Sob o lema “manda a tristeza embora” –
e variações como “deixa a tristeza pra lá” ou “hoje não quero tristeza” –, tudo
passa a ser permitido. Na minha cidade, o Rio de Janeiro, por exemplo, não se
trata de opção: você é praticamente obrigado a esquecer a rotina, já que a
ruidosa celebração adentra pelas frestas da janela, e quase toda rua é tomada
por uma massa impenetrável de foliões em êxtase. No último dia 5, por exemplo,
na Avenida Beira-Mar, uma tal multidão depredou um ônibus que ousou cruzar o
seu caminho. Talvez tenham visto naquele monstro metálico cuspindo gás
carbônico a tristeza que não deveria estar ali. Vai saber...
Mas,
enfim, é carnaval. E este artigo não está aqui como lamento, mas, num período
em que a palavra de ordem é tudo esquecer, como lembrança. Na tradição cristã
medieval, o carnaval sempre serviu para lembrar a todos da iminente chegada da
Quaresma, período de 40 dias que vai da Quarta-Feira de Cinzas até a Páscoa, e
no qual, em memória do martírio de Nosso Senhor Jesus Cristo, os fiéis observam
uma rigorosa disciplina religiosa, que inclui jejum, abstinência sexual,
estudo, autorreflexão e uma série de atos de caridade.
Não há mais um nítido contraste entre o
tempo do carnaval e alguma ordem que ele viria a subverter.
Na
Idade Média, o carnaval era encarado como uma espécie de festa de despedida,
uma compensação prévia ao espírito de autossacrifício e contrição
característico do período subsequente. Não é por acaso que a celebração esteja
envolta num simbolismo de glutonaria, licenciosidade e excesso, como ilustram a
figura falstaffiana do Rei Momo (tão típica da sátira medieval) e o epíteto
“terça-feira gorda”, reservado à véspera da Quarta-Feira de Cinzas e que, em
algumas línguas europeias, como o francês (Mardi gras), denomina a própria
festa em sua totalidade. Tradicionalmente, portanto, o carnaval só faz sentido
em oposição à Quaresma. Ele é o toque de extroversão que antecede, prepara e,
de algum modo, ressalta por contraste a introspecção quaresmal. Para falar como
Gilberto Freyre, poderíamos dizer que carnaval e Quaresma formam um antagonismo
em equilíbrio. São, em outras palavras, as duas faces de uma mesma moeda.
O
estilo caracteristicamente burlesco da festa, em claro contraste com o tom
grave e solene da liturgia oficial, faz parte de uma longa tradição popular
europeia, que, ademais do carnaval propriamente dito, incluía uma série de
outras festividades tais como “a festa dos tolos” (festum stultorum) e a “festa
do asno” (festum asinorum). Quase toda igreja europeia promovia festejos
paroquiais nos quais esse aspecto visceralmente cômico – tão bem descrito,
entre outros, por Rabelais – nunca deixava de estar presente. Nas feiras ao ar
livre, o público tinha acesso a uma variedade de atrações e divertimentos
circenses, com a participação de anões, gigantes, palhaços, figuras mascaradas
e animais amestrados. Rituais solenes, tais como a coroação de reis e a
consagração de cavaleiros, eram frequentemente parodiados, para as gargalhadas
da audiência. No “entrudo” português, antepassado direto do nosso carnaval, os
foliões entregavam-se a uma guerra ritualizada em que água, farinha, ovos e
limões faziam as vezes de munição. Vem daí, aliás, a tradição brasileira do
lança-perfume.
É
importante observar que o cômico medieval não se voltava contra a tradição
religiosa, apartando-a, qual um objeto externo, daqueles que dela riam. Ao
contrário, incluía também, e necessariamente, os próprios comediantes.
Diferente do iconoclasta moderno, cuja ironia individualista caracteriza-se
pela arrogância de quem se situa acima de seu objeto de sátira, o zombeteiro
medieval dava vazão a um sentimento coletivo, inserindo-se plenamente na
tradição da qual fazia troça. O contraste entre a extroversão carnavalesca e a
introspecção quaresmal – magistralmente retratado, por exemplo, no quadro A
Luta entre o Carnaval e a Quaresma (1559), do pintor flamengo Peter Bruegel, o
Velho – não era absoluto, nem opunha elementos externos uns aos outros. Ao
contrário, tinha lugar na própria alma do homem medieval, ao mesmo tempo
lascivo e penitente, beberrão e abstêmio, glutão e temperante. Para esse homem,
havia um tempo para cada coisa, e o ciclo (ou, melhor dizendo, pêndulo) ritual
servia precisamente para marcá-los.
Leia
também: Um patrimônio público nacional (artigo de Dario Paixão, publicado em 26
de janeiro de 2016)
Do
mesmo autor: Termostato da diversidade (7 de janeiro de 2018)
Há
vasta literatura sociológica e antropológica mostrando como o carnaval foi
sempre um ritual de tipo satírico e subversivo, com ênfase na suspensão
momentânea de hierarquias, status e posições sociais, e, sobretudo, na inversão
de papéis. Desde as Saturnais romanas, festividades nas quais,
excepcionalmente, os escravos eram servidos por seus mestres, passando pelas
festividades medievais supramencionadas, com seus reis-momos, cavaleiros de
taverna e travestis (tanto masculinos quanto femininos), o carnaval tem se
constituído como celebração de um tempo excepcional em que a ordem habitual é
ritualisticamente desafiada, para voltar a se afirmar na Quarta-Feira de
Cinzas.
O
problema é que, no Brasil de hoje, já não há ordem estabilizada, papéis sociais
bem definidos ou hierarquias institucionais dignas de respeito. Que força
burlesca teria o travestismo num país em que um homem que se diz mulher ganha a
permissão, senão mesmo o direito inquestionável, de jogar na liga feminina de
vôlei? Que autoridade oficial haveria por subverter num país em que os
traficantes já a ignoram solenemente? Que hierarquias há por quebrar num país
em que alunos quebram as cabeças de professores? Que Estado há por
ridicularizar num país em que uma criança de 3 anos é morta por assaltantes e
nada acontece? Não há mais um nítido contraste entre o tempo do carnaval e
alguma ordem que ele viria a subverter. No atual caos brasileiro, o carnaval
deixou de ser extraordinário, perdendo, pois, sua função ritual, e tornando-se,
ao contrário, a expressão típica e consagrada de um mero anseio nacional pela
autossatisfação irrefreada e ególatra, pela gula sem o jejum, a lascívia sem o
pudor, o pecado sem a redenção, a terça-feira gorda sem a Quarta-Feira de
Cinzas. Vivemos o ideário de um carnaval sem a perspectiva da Quaresma, um
carnaval perpétuo."
Flavio
Gordon
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