quinta-feira, 7 de março de 2019

O carnaval perpétuo

"A essência do carnaval é a suspensão momentânea de hierarquias. Mas, no Brasil, já não há ordem estabilizada, papéis sociais bem definidos ou hierarquias institucionais dignas de respeito"

“Só me senti brasileiro duas vezes. Uma, no carnaval, quando sambei na rua. Outra, quando surrei Julie, depois que ela me traiu” (Paulo Rigger, personagem de Jorge Amado em O país do Carnaval).

"É carnaval, enfim. Por todo o país as pessoas saem às ruas para brincar e, como se diz, esquecer a rotina do dia a dia. Sob o lema “manda a tristeza embora” – e variações como “deixa a tristeza pra lá” ou “hoje não quero tristeza” –, tudo passa a ser permitido. Na minha cidade, o Rio de Janeiro, por exemplo, não se trata de opção: você é praticamente obrigado a esquecer a rotina, já que a ruidosa celebração adentra pelas frestas da janela, e quase toda rua é tomada por uma massa impenetrável de foliões em êxtase. No último dia 5, por exemplo, na Avenida Beira-Mar, uma tal multidão depredou um ônibus que ousou cruzar o seu caminho. Talvez tenham visto naquele monstro metálico cuspindo gás carbônico a tristeza que não deveria estar ali. Vai saber...

Mas, enfim, é carnaval. E este artigo não está aqui como lamento, mas, num período em que a palavra de ordem é tudo esquecer, como lembrança. Na tradição cristã medieval, o carnaval sempre serviu para lembrar a todos da iminente chegada da Quaresma, período de 40 dias que vai da Quarta-Feira de Cinzas até a Páscoa, e no qual, em memória do martírio de Nosso Senhor Jesus Cristo, os fiéis observam uma rigorosa disciplina religiosa, que inclui jejum, abstinência sexual, estudo, autorreflexão e uma série de atos de caridade.

Não há mais um nítido contraste entre o tempo do carnaval e alguma ordem que ele viria a subverter.

Na Idade Média, o carnaval era encarado como uma espécie de festa de despedida, uma compensação prévia ao espírito de autossacrifício e contrição característico do período subsequente. Não é por acaso que a celebração esteja envolta num simbolismo de glutonaria, licenciosidade e excesso, como ilustram a figura falstaffiana do Rei Momo (tão típica da sátira medieval) e o epíteto “terça-feira gorda”, reservado à véspera da Quarta-Feira de Cinzas e que, em algumas línguas europeias, como o francês (Mardi gras), denomina a própria festa em sua totalidade. Tradicionalmente, portanto, o carnaval só faz sentido em oposição à Quaresma. Ele é o toque de extroversão que antecede, prepara e, de algum modo, ressalta por contraste a introspecção quaresmal. Para falar como Gilberto Freyre, poderíamos dizer que carnaval e Quaresma formam um antagonismo em equilíbrio. São, em outras palavras, as duas faces de uma mesma moeda.

O estilo caracteristicamente burlesco da festa, em claro contraste com o tom grave e solene da liturgia oficial, faz parte de uma longa tradição popular europeia, que, ademais do carnaval propriamente dito, incluía uma série de outras festividades tais como “a festa dos tolos” (festum stultorum) e a “festa do asno” (festum asinorum). Quase toda igreja europeia promovia festejos paroquiais nos quais esse aspecto visceralmente cômico – tão bem descrito, entre outros, por Rabelais – nunca deixava de estar presente. Nas feiras ao ar livre, o público tinha acesso a uma variedade de atrações e divertimentos circenses, com a participação de anões, gigantes, palhaços, figuras mascaradas e animais amestrados. Rituais solenes, tais como a coroação de reis e a consagração de cavaleiros, eram frequentemente parodiados, para as gargalhadas da audiência. No “entrudo” português, antepassado direto do nosso carnaval, os foliões entregavam-se a uma guerra ritualizada em que água, farinha, ovos e limões faziam as vezes de munição. Vem daí, aliás, a tradição brasileira do lança-perfume.

É importante observar que o cômico medieval não se voltava contra a tradição religiosa, apartando-a, qual um objeto externo, daqueles que dela riam. Ao contrário, incluía também, e necessariamente, os próprios comediantes. Diferente do iconoclasta moderno, cuja ironia individualista caracteriza-se pela arrogância de quem se situa acima de seu objeto de sátira, o zombeteiro medieval dava vazão a um sentimento coletivo, inserindo-se plenamente na tradição da qual fazia troça. O contraste entre a extroversão carnavalesca e a introspecção quaresmal – magistralmente retratado, por exemplo, no quadro A Luta entre o Carnaval e a Quaresma (1559), do pintor flamengo Peter Bruegel, o Velho – não era absoluto, nem opunha elementos externos uns aos outros. Ao contrário, tinha lugar na própria alma do homem medieval, ao mesmo tempo lascivo e penitente, beberrão e abstêmio, glutão e temperante. Para esse homem, havia um tempo para cada coisa, e o ciclo (ou, melhor dizendo, pêndulo) ritual servia precisamente para marcá-los.

Leia também: Um patrimônio público nacional (artigo de Dario Paixão, publicado em 26 de janeiro de 2016)

Do mesmo autor: Termostato da diversidade (7 de janeiro de 2018)

Há vasta literatura sociológica e antropológica mostrando como o carnaval foi sempre um ritual de tipo satírico e subversivo, com ênfase na suspensão momentânea de hierarquias, status e posições sociais, e, sobretudo, na inversão de papéis. Desde as Saturnais romanas, festividades nas quais, excepcionalmente, os escravos eram servidos por seus mestres, passando pelas festividades medievais supramencionadas, com seus reis-momos, cavaleiros de taverna e travestis (tanto masculinos quanto femininos), o carnaval tem se constituído como celebração de um tempo excepcional em que a ordem habitual é ritualisticamente desafiada, para voltar a se afirmar na Quarta-Feira de Cinzas.

O problema é que, no Brasil de hoje, já não há ordem estabilizada, papéis sociais bem definidos ou hierarquias institucionais dignas de respeito. Que força burlesca teria o travestismo num país em que um homem que se diz mulher ganha a permissão, senão mesmo o direito inquestionável, de jogar na liga feminina de vôlei? Que autoridade oficial haveria por subverter num país em que os traficantes já a ignoram solenemente? Que hierarquias há por quebrar num país em que alunos quebram as cabeças de professores? Que Estado há por ridicularizar num país em que uma criança de 3 anos é morta por assaltantes e nada acontece? Não há mais um nítido contraste entre o tempo do carnaval e alguma ordem que ele viria a subverter. No atual caos brasileiro, o carnaval deixou de ser extraordinário, perdendo, pois, sua função ritual, e tornando-se, ao contrário, a expressão típica e consagrada de um mero anseio nacional pela autossatisfação irrefreada e ególatra, pela gula sem o jejum, a lascívia sem o pudor, o pecado sem a redenção, a terça-feira gorda sem a Quarta-Feira de Cinzas. Vivemos o ideário de um carnaval sem a perspectiva da Quaresma, um carnaval perpétuo."


Flavio Gordon
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