O tema central da
liturgia deste domingo convida-nos a refletir sobre esta questão: aquilo que
nos enche o coração e que nós testemunhamos é a verdade de Jesus, ou são os
nossos interesses e os nossos critérios egoístas?
O Evangelho dá-nos os critérios para discernir o verdadeiro do falso “mestre”: o verdadeiro “mestre” é aquele que apenas apresenta a proposta de Jesus gerando, com o seu testemunho, comunhão, união, fraternidade, amor; o falso “mestre”, ao contrário, é aquele que manifesta intolerância, hipocrisia, autoritarismo e cujo testemunho gera divisões e confusões: o seu anúncio não tem nada a ver com o de Jesus.
A primeira leitura, na mesma linha, dá um conselho muito prático, mas muito útil: não julguemos as pessoas pela primeira impressão ou por atitudes mais ou menos teatrais: deixemo-las falar, pois as palavras revelam a verdade ou a mentira que há em cada coração.
A segunda leitura não tem, aparentemente, muito a ver com esta temática: é a conclusão da catequese de Paulo aos coríntios sobre a ressurreição. No entanto, podemos dizer que viver e testemunhar com verdade, sinceridade e coerência a proposta de Jesus é o caminho necessário para essa vida plena que Deus nos reserva. Do nosso anúncio sincero de Jesus, nasce essa comunidade de Homens Novos que é anúncio do tempo escatológico e da vida que nos espera.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
Textos: Eclo 27,5-8; 1Cor 15,54-58; Lc 6,39-45
No Evangelho (Lc 6,39-45)
escutamos a Palavra de Deus, aparentemente muito clara: um cego não pode guiar
outro cego; por que vês o cisco no olho do teu irmão… ?; não existe árvore boa
que dê frutos ruins. O texto nos parece compreensível e óbvio; mas a
compreensão que a Liturgia nos fez invocar é outra: não é tanto no que se
refere à inteligência, mas o que se refere ao coração; não é tanto um entender
quanto um compreender, isto é, abraçar com todo o ser, tornar nossas as
palavras. Ao “foi dito” Jesus opõe agora seu revolucionário “mas eu vos digo”,
que cumpre e transforma, ao mesmo tempo, a lei antiga. A vós que escutais, eu
vos digo…: assim começa a falar Jesus naquele dia (Lc 6,27) e assim nos fala
agora também a nós. O que nos diz exatamente?
Jesus mostra aqui que
dirige a seus discípulos uma série de advertências que, em outras passagens,
tinha dirigido, com tom de admoestação, aos fariseus. Foi contra os fariseus
que exclamou: ”Deixai-os; são guias cegos de cegos. E, quando um cego guia
outro cego, ambos cairão num buraco” (Mt 15,14); foi aos fariseus, sobretudo,
que em várias oportunidades Jesus gritou seu hipócritas! E eis que hoje esta
terrível exclamação, “Hipócritas”, a encontramos num discurso dirigido a seus
discípulos e, portanto, também a nós: Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu
olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão.
Jesus Cristo põe uma
dupla comparação: a da árvore que, se é boa, dá frutos bons, e a do homem que
fala das coisas que tem no coração. “O tesouro do coração é o mesmo que a raiz
da árvore – afirma São Beda –. A pessoa que tem um tesouro de paciência e de
perfeita caridade no seu coração produz excelentes frutos: ama o seu próximo e
reúne as outras qualidades que Jesus ensina: ama os inimigos, faz o bem a quem
o odeia, abençoa a quem o amaldiçoa, reza pelo que o calunia, não se rebela
contra quem lhe bate ou o despoja, dá sempre quando lhe pedem, não reclama o
que lhe tiraram, deseja não julgar e não condenar, corrige com paciência e com
carinho os que erram. Mas a pessoa que tem no seu coração um tesouro de maldade
faz exatamente o contrário: odeia os seus amigos, fala mal de quem o ama, e
todas as outras coisas condenadas pelo Senhor”.
Ensina São João
Crisóstomo: “Brilhe a vossa luz, ou seja, haja grande virtude, haja fogo
abundante, brilhe uma luz inefável, porque, quando a virtude alcança esse
grau, é impossível ficar definitivamente oculta… Nada torna o homem tão
ilustre, por mais que o queira ocultar, do que a prática de virtude” (Comentário
ao Evangelho de São Mateus, 15, 7-8).
Se fizermos um exame de
consciência sincero e deixar-nos julgar pelo Evangelho, seremos obrigados a
admitir, por mais que nos desagrade, que somos todos uns hipócritas.
Nós, cristãos, só
contribuiríamos para perpetuar o erro de querer tirar o cisco do olho alheio,
sem remover a trave do nosso, se nos limitarmos a fazer um discurso sobre a
hipocrisia da sociedade ou da Igreja sem descer nunca a nós mesmos e à nossa
multiforme hipocrisia. Uma sociedade hipócrita é o resultado de indivíduos
hipócritas, como um lago poluído é o produto de tantas gotas de água suja. No
livro Eclesiástico, o Senhor exorta-nos exatamente sobre esta autocrítica muito
pessoal: “Quando a gente sacode a peneira, ficam nela só os refugos; assim os
defeitos de um homem aparecem no seu falar” ( Eclo 27, 5 ). Percorramos o
Evangelho para ver quais são, de acordo com Jesus, as manifestações principais
da hipocrisia e para ver se estas não se encontram, por acaso, todas, ora mais
ora menos em nossa vida.
Hipócrita é aquele que
continuamente acha motivo para falar dos outros, a começar, talvez, do amigo
mais íntimo, e nunca se pergunta se aquilo que detesta nos outros – a vaidade,
o egoísmo, a avareza, a falsidade, a mesquinhez – não se encontra, em medida
ainda maior, nele mesmo! Hipócrita – conforme diz Jesus, num outro contexto – é
quem impõe aos outros obrigações morais muito pesadas, que pretende que os
outros não se queixem, que não avancem reinvindicações, que nunca digam estar
cansados, porém reconhecendo, em todo momento, todos estes direitos para si
mesmo ( Mt 23,4 ).
Hipócrita – ainda de
acordo com o que diz Jesus – é quem paga o dízimo das pequenas colheitas, mas
não dá importância alguma às coisas realmente importantes da lei: a justiça com
os pobres, a misericórdia e a fidelidade ( Mt 23, 23 ). Aqui, realmente, nos
descobrimos todos parentes próximos dos fariseus. Quantos cristãos pensam estar
em dia diante de Deus porque pagam o dízimo da hortelã, do endro, isto é,
porque dão uma oferta, talvez miserável, ao pároco que passa benzendo as casas,
porque acendem, de vez em quando, uma vela a Santo Antônio, porque financiam
uma obra pia, mas não se põem nunca o problema se são justos com a família, com
os próprios dependentes, se não devoram também eles as casas das viúvas,
impondo condições de aluguel intoleráveis, se exercem, de fato, a
misericórdia com as pessoas e a fidelidade com Deus.
Falando da esmola e da
oração, Jesus coloca às claras a raiz última e a mola da hipocrisia, que é a de
ser vistos pelos homens: Quando deres esmola, não o anuncies a toque de
trombeta, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas para serem
elogiados pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam sua recompensa.
Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas
sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade
vos digo: já receberam sua recompensa ( Mt 6, 2.5 ).
O que é a hipocrisia? É
uma tentativa para ludibriar a Deus; é a falsidade do coração, a ilusão de
contentar a Deus com as aparências, quase se iludindo de que Ele possa se
enganar e tomar por coisa boa o que não é. Entre os homens, é uma atitude que
nós chamamos de astúcia, esperteza, duplicidade. O hipócrita é, no fundo, um
falsário, alguém que tenta pagar a Deus com moeda falsa, alguém que O honra com
os lábios enquanto seu coração está longe de Deus (Mt 15,8 ).
Sobre os hipócritas, o
Evangelho pronuncia a mais terrível das ameaças: Já receberam sua recompensa (Mt
6,2). Como se dissesse: Deus não lhes deve mais nada. Quando esta é uma atitude
consciente e deliberada, este é, deveras, um pecado terrível; é, na prática, um
ateísmo, porque significa crer num Deus que tem olhos, mas não vê, tem ouvidos
mas não ouve; é esquecer que o Deus bíblico é um Deus vivo e santo que
perscruta os corações e lê os pensamentos antes que se formem na mente. São Paulo
tem estas palavras de fogo: Não vos enganeis: de Deus não se zomba. O que o
homem semeia, isso mesmo colherá (Gl 6,7). A hipocrisia é, por isso, antes de
tudo, uma ingenuidade, uma insensatez, uma mentira de pernas curtas, destinada
a ser desmascarada já nesta vida.
A Palavra de Deus nos
conduziu a uma salutar autocrítica; dela deve despontar em nós um desejo
intenso de ser de verdade “honestos com Deus”! Quando, no fim do Pai-Nosso,
dizemos hoje: “Livrai-nos do mal”, é deste mal que devemos pedir a libertação:
do mal da hipocrisia.
Que a Virgem Maria nos
ajude em nossa conversão diária! Ser guia, ajudar as pessoas com dificuldade no
caminho, supõe enxergar bem. Em vez de criticar e querer corrigir os outros, os
seguidores de Jesus trabalham sobre os próprios defeitos e limitações. É este o
testemunho que dão ao mundo, corrigindo em si mesmos também os problemas que
veem nos outros.
PARA REFLETIR
Caros irmãos e irmãs,
A página do Evangelho
para este domingo nos apresenta uma série de ensinamentos provavelmente
dirigidos por Jesus aos fariseus (cf. Mt 15,14), um grupo observante da lei de
Moisés que se apresentava como guia do povo no caminho para a santidade. Eram
eles assíduos no estudo das leis e procuravam observá-las em seus mínimos
detalhes. Para eles o importante era o que estava escrito na Lei, mas careciam
de amor para com os outros. Estes ensinamentos tornam-se válidos também para
cada um de nós hoje.
Jesus começa dizendo:
“Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?” (v. 39). Com
isto, Jesus quer mostrar que o guia de uma comunidade não pode ser cego. Ele
deverá ser iluminado pelo ensinamento de Jesus para que possa iluminar, também,
o seu irmão. Nos primeiros séculos da Igreja os que recebiam o batismo eram
chamados de iluminados, porque a luz de Cristo lhes tinha aberto os olhos. Os cristãos
deveriam ser aqueles que enxergam bem, os que sabem escolher os valores certos
da vida e que estão em condições de apontar o caminho seguro para quem ainda
peregrina na escuridão. Jesus adverte os seus discípulos sobre um grave perigo:
eles também correm o risco de perder a luz do Evangelho, de voltar novamente às
trevas, quando deixam-se guiar pelos falsos testemunhos. Quando isto acontece,
eles se tornam guias cegos, nos quais já não é possível confiar.
A cegueira da qual Jesus
fala é aquela de quem ainda não descobriu suas próprias sombras, seus defeitos.
Se estamos cegos, não reconhecemos as nossas próprias falhas e não buscamos
corrigir o que está imperfeito em nós. A trave nos nossos olhos nos impede de
enxergar as nossas fraquezas e limitações. Para tirá-la, nós precisamos pedir
ao Espírito Santo que purifique os nossos pensamentos, sentimentos e atitudes.
Caso contrário, Jesus nos lembra: poderemos cair no buraco e levar muitos
conosco.
Nesta linha de
intenções, a primeira leitura aponta um exercício e um critério que é norma de
sabedoria para ajuizar uma pessoa: a palavra que sai de sua boca (cf. Eclo
27,5-8). Com isso, Jesus fala do aspecto interior da pessoa: “O homem bom, do
bom tesouro que é seu coração, tira o bem; mas o homem mau, do seu mau tesouro,
tira o mal, pois a boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6,45). Na Sagrada
Escritura, o coração do homem é a própria fonte de sua personalidade e, por
isso, já no Antigo Testamento vimos que o homem precisava trocar o seu coração
de pedra por um coração de carne (cf. Ez 36,25s). No Novo Testamento Jesus
sequencia os ensinamentos dos profetas e chama a atenção para o verdadeiro mal,
proveniente do coração: “É do coração do homem que procedem maus desejos,
homicídios, adultérios… são estas coisas que tornam o homem impuro” (Mt
15,19ss). Jesus, por várias vezes, lembra a exigência divina de
generosidade interior: é preciso receber a palavra num coração bem disposto
(cf. Lc 8,15), amar a Deus de todo o coração (cf. Mt 23,37), perdoar ao irmão do
fundo do coração (cf. Mt 18,35). E é aos puros de coração que Jesus promete a
visão de Deus (cf. Mt 5,8). E nós somos convidados a imitar o próprio Cristo
que é “manso e humilde de coração” (Mt 11,29).
Neste sentido, numa
linguagem bíblica, o coração é centro dos nossos pensamentos, desejos e
sentimentos, é a fonte de nossas obras boas ou más e sede de nossas decisões.
O que procede de nosso coração permite reconhecer como está nosso
interior. Como centro de nossas decisões, o coração assemelha-se ao cofre forte
de um tesouro. Os discípulos de Jesus devem acumular nesse cofre um tesouro
salvífico que façam deles homens bons e os levem às boas obras. Este tesouro
interno jorrará pelas suas palavras, como afirma Jesus: “A boca fala daquilo de
que o coração está cheio” (v. 45). Sabemos que o discípulo de Jesus deve ser
luz para os outros, por isso, o seu coração deve ser semelhante ao coração de
Cristo.
No texto evangélico
Jesus usa uma frase forte, que deve encontrar eco também em cada um de nós:
“Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem
para tirar o cisco do olho do teu irmão” (v. 42). O termo “hipócrita” não
designa só o homem dissimulado, falso, cujos atos não correspondem ao seu
pensamento e às suas palavras, mas equivale ao termo aramaico “hanefa” que, no
Antigo Testamento, significa “perverso”, “ímpio”. São aqueles que estão sempre
à procura de uma falha dos outros para condenar, mas não estão preocupados com
os seus próprios erros e falhas. Hipócrita é aquele que continuamente acha
motivo para falar mal dos outros e nunca se pergunta se aquilo que detesta dos
outros, como a vaidade, o egoísmo, a avareza, a falsidade, não se encontra, em
medida maior ou menor, nele mesmo.
Em outras passagens da
Sagrada Escritura Jesus usa esta mesma expressão: “Quando, pois, deres esmola,
não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e
nas ruas, para serem louvados pelos homens. Quando orardes, não façais como os
hipócritas, que gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas,
para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua
recompensa (cf. Mt 6,2.5). Diante destas considerações podemos definir a
hipocrisia como uma falsidade do coração, a ilusão de contentar a Deus com as aparências.
O hipócrita é aquele que usa moeda falsa para Deus, alguém que o honra com os
lábios enquanto seu coração está longe (cf. Mt 15,8).
Jesus hoje nos chama à
purificação. Possamos organizar corajosamente nosso exame de consciência e
deixar-nos julgar pelo evangelho. Talvez sejamos obrigados a admitir, por
mais que nos desagrade, que somos todos hipócritas. Como todos os discursos de
Cristo, também este sobre a hipocrisia pode encontrar ressonância em nós.
Através do evangelho de hoje todos nós somos chamados a lançar um olhar para
nós mesmos. Com frequência queremos tirar o cisco do olho alheio sem nos
preocuparmos em remover a trave do nosso. Criticamos os outros sem olhar a nós
mesmos.
O verdadeiro discípulo
de Jesus é aquele que dá bons frutos (v.43-45). Na primeira leitura ouvimos: “O
fruto revela como foi cultivada a árvore; assim, a palavra mostra o coração do
homem” (Eclo 27,7). É um sábio ensinamento para desvendar o que há no coração
de cada pessoa. Cristo acrescenta ainda as obras, que também brotam do
coração; e frisa que é pelos frutos conhecemos a árvore: “Não há árvore boa que
dê maus frutos, nem árvore má que dê bons frutos. Cada árvore se conhece pelo
seu fruto” (v.43). Nossa ação exterior e nossa intenção interior devem formar
unidade.
Precisamos
necessariamente produzir bons frutos, mas, para que isso se concretize, é
necessário um processo prévio de interiorização, de contato com Deus pela
oração, assimilando a sua Palavra num diálogo pessoal com Ele no silêncio de
nosso coração. No final da oração do Pai Nosso, dizemos: “Livrai-nos do mal”, é
deste mal que devemos pedir a Deus que nos liberte: do mal da hipocrisia, da
falsidade, do erro, do pecado. Que o Senhor nos conceda esta graça para que
possamos apresentar ao Senhor frutos maduros e saborosos. Que Ele mesmo
nos ajude a reagir abrindo o nosso coração ao bem e ao amor, para que a nossa
vida interior nunca se assemelhe a árvore seca e sem vida. Que Ele também nos
ajude a tirar a trave que carregamos em nossos olhos, a fim de termos condições
de ajudar os nossos irmãos e irmãs a tirarem o cisco de seus olhos. Assim seja.
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