Em novembro do ano passado eu comentei
aqui sobre as dúbia enviadas por alguns cardeais ao Papa Francisco a respeito
de algumas interpretações da exortação Amoris Laetitia. Já então eu disse achar
ter sido a divulgação bastante oportuna, uma vez que poderia ensejar um «debate
franco, aberto e desapaixonado a respeito dessas questões». Estava e ainda
estou convencido de que disso não pode advir senão o bem de toda a Igreja, uma
vez que o Cristianismo é a religião do Logos de Deus — cuja doutrina é, portanto,
racional e racionalizável, adequada ao homem. A polêmica é uma coisa boa porque
fortalece as posições, sedimenta os entendimentos e dissipa as dúvidas; a
própria Igreja é intrinsecamente polemista, e o único caso em que agora me
recordo de ter a Igreja intervindo para silenciar uma polêmica foi na discussão
entre jesuítas e dominicanos a respeito da predestinação — e isso só porque, à
época, tal debate havia perdido as fundamentais características de «franco,
aberto e desapaixonado».
Pouco tempo depois do lançamento da
Amoris Laetitia, ainda em maio, discutindo sobre o assunto no espaço de
comentários do blog, eu escrevi aqui o seguinte:
i. não é somente a loucura ou a
ignorância material que são capazes de mitigar a responsabilidade pessoal dos
atos humanos, mas qualquer circunstância capaz de tornar «o juízo prático
obscurecido e a vontade enfraquecida» (DEL GRECO);
ii. a AL não trata de abrir sacramentos
a adúlteros ou concubinários, mas sim de discernir as situações em que, «[p]or
causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes» (AL 305) — e jamais sem
eles –, haja a possibilidade de alguém se encontrar em uma situação de pecado
objetiva sem culpa grave correspondente;
iii. não há nenhuma orientação
específica da AL para estes casos; no entanto, o que quer que se vá fazer, deve
ser feito sempre «evitando toda a ocasião de escândalo» (AL 299) e sem «nunca
se pensar que se pretende diminuir as exigências do Evangelho» (AL 301).
De lá para cá muita água rolou por
debaixo da ponte. Por exemplo, além da publicação das (agora famosas) dúbia, eu
tive a sorte de conhecer e ler o livro do pe. Iraburu (Comentarios sobre la Amoris
Laetitia), o que me deu a oportunidade de burilar alguns pensamentos e
precisar alguns conceitos. Entre outras coisas, agora me parece claro — mais
claro do que então — que o primeiro dever da Igreja, diante de uma eventual
circunstância atenuante (como por exemplo a ignorância axiológica, ou o
condicionalismo social), é e não pode nunca deixar de ser o de libertar o
pecador (ainda que só materialmente pecador) de sua limitação. Em outras
palavras, não é possível institucionalizar uma pastoral da condescendência, que
distribui sacramentos mantendo, no entanto, prostrados na lama os filhos de
Deus chamados à perfeição.
Porque não pode haver a menor
possibilidade de dúvida de que um divorciado recasado, ainda na hipótese de que
o seu matrimônio seja sacramentalmente nulo, está prostrado na lama. Ainda que
ele talvez possa, ontologicamente falando, não ser adúltero (no caso em que o
seu primeiro matrimônio seja de fato nulo), torna-se ao menos fornicador na
medida em que não é possível aos cristãos batizados casarem-se (= produzirem o
vínculo sacramental fora do qual é defeso todo consórcio sexual) fora das
condições que a Igreja estabelece para o Sacramento. Uma eventual
inimputabilidade subjetiva não elide a natureza objetiva do ato praticado:
este, em quaisquer hipóteses, é intrinsecamente desordenado e clama por sua
reordenação.
A Amoris Laetitia, em sua
famigerada nota 351, fala que há «casos» de pessoas vivendo em uma situação
objetiva de pecado em que «poderia haver também a ajuda dos sacramentos».
Tem-se gastado muito latim para perguntar quais seriam exatamente estes casos.
No entanto, penso que se tem esquecido uma outra pergunta, muito mais
fundamental, que exsurge imediatamente da leitura da nota de rodapé: é possível
haver «a ajuda dos sacramentos» para quê?
Só pode ser para que a pessoa possa
«crescer na vida de graça e de caridade» (AL 305), que é o período ao final do
qual está posta a nota que fala da ajuda dos sacramentos. E crescer na graça
santificante exige necessariamente, no limite, a superação daqueles
«condicionalismos» ou «fatores atenuantes» que podem tornar em certa medida
inimputável alguém que viva em uma situação de pecado objetiva. Em outras
palavras, a «ajuda dos sacramentos» em última instância é e não pode jamais
deixar de ser para que a pessoa abandone a situação objetiva de pecado. Achar
diferente disso é amesquinhar a graça de Deus.
O silogismo é bastante simples. Todos
são chamados à perfeição; uma «união irregular» — concubinária ou adulterina —
é evidentemente imperfeita; logo, ninguém é chamado a uma reunião irregular.
Não é, portanto, possível estabelecer uma analogia entre a «união irregular» e
o Sagrado Matrimônio: este necessariamente tende a se perpetuar e fortalecer
aperfeiçoando-se cada vez mais, enquanto aquela, por sua própria natureza,
exige a própria destruição. Outra leitura não é possível do parágrafo 303:
mesmo nos casos em que alguém acredite em consciência estar realizando a
vontade de Deus no pecado, ainda assim «deve permanecer sempre aberto para
novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de
forma mais completa». E é para essa realização do ideal de forma mais completa
que a Igreja deve sempre ajudar o fiel; sempre que não o faz está traindo a
própria missão.
Notícias recentes nos dão conta de que
os bispos alemães autorizaram fiéis divorciados a receberem os sacramentos; a
notícia solta, assim, na mídia secular, não nos permite submeter as normas
germânicas ao crivo que expúnhamos nas linhas acima. Parece, no entanto, que
infelizmente a «pastoral» alemã é outra daquelas que conduz as almas ao
Inferno, institucionalizando a condescendência e confirmando na imundície do
pecado filhos de Deus chamados à santidade: também recentemente o prefeito da
Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, o Card. Müller, deu uma entrevista
deplorando exatamente que exatamente «que muchos obispos estén interpretando
“Amoris laetitia” según su propio modo de entender la enseñanza del Papa». Não
parece despropositado imaginar que o cardeal alemão esteja justamente
respondendo aos seus conterrâneos.
Não faltou quem enxergasse, na
entrevista do cardeal Müller, uma resposta tácita às dubia de setembro passado.
Resposta oportuna: sim, existem atos intrinsecamente desordenados que não se
podem jamais justificar à força de consciências malformadas ou circunstâncias
atenuantes. Sim, os ensinamentos da Familiaris Consortio permanecem
válidos e devem ser observados. Não, as interpretações confusas que existem no
orbe católico não são provocadas pela Amoris Laetitia, senão pelos
intérpretes confusos dela. Todas essas coisas precisam ser ditas com
honestidade e clareza: porque é a céu aberto e a plenos pulmões que cumpre
dissipar os equívocos urdidos a portas fechadas e disseminados por sussurros
erráticos.
Jorge Ferraz
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Pergunte e Responderemos / Deus Lo Vult
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