Do polêmico manifesto de Emile Zola estou plagiando
somente o título – e, se puder, a veemência. Fora isso, não pretendo revisitar
nesta crônica o clamoroso affaire Dreyfus. O meu j’accuse é assestado contra a
televisão brasileira. E o lanço como brasileiro preocupado com meu País e como
bispo responsável por grande número de fiéis.
Não quero, de modo algum, generalizar. Estou pronto
a excetuar da minha acusação o canal dedicado à educação e cultura e os
programas que, nos diferentes canais, contribuem para o crescimento e a
elevação cultural e humana da população.
Feito isso, e tomando por testemunhas a sociedade
brasileira em geral, os pais de família e os educadores em particular, os
pastores de Igrejas e líderes religiosos, eu acuso a televisão brasileira pelos
seus muitos delitos.
Acuso-a de descumprir sistematicamente as funções
em vista das quais obteve do governo uma concessão: informar, educar, cultivar,
formar consciência e divertir. Em vez disso, ávida somente de pontos no Ibope e
de faturamento, ela não hesita em apelar aos instintos mais baixos do homem.
Seu pecado mais grave é o que concerne à educação por ser esta a necessidade e
as exigências fundamentais no nosso País. Com raras e louváveis exceções, a
tevê brasileira não só educa, mas, com requinte de perversidade, deseduca.
Abusando dos seus recursos técnicos, do seu poder de persuasão e de penetração
nos lares do País inteiro, ela destrói o que outras instâncias pedagógicas e
educativas, a duras penas, procuram construir.
Acuso a televisão brasileira de ministrar
copiosamente à sua clientela os dois ingredientes que, por um curioso fenômeno,
andam sempre juntos: a violência e a pornografia. A primeira é servida em
filmes para todas as idades. A segunda impera, solta, em qualquer gênero
televisivo: telenovelas, entrevistas, programas ditos humorísticos, spots
publicitários e clips de propaganda. Há cerca de três anos, em artigo no JB, o
editor e jornalista Sérgio Lacerda denunciava que, com sua enxurrada de
pornografia, a TV brasileira está formando uma geração de voyeurs.
Acuso a televisão do nosso País de estar utilizando
aparelhagens e equipamentos sofisticados com o objetivo de imbecilizar faixas
inteiras da população. Uma geração de debilóides. O processo se torna
consternador e inquietante quando, a pretexto de humor, um instrumento de
educação, como a escola, se transforma em "escolinha", onde o mau
gosto, a idiotice, o achincalhe são dados em pasto a crianças, adolescentes e
jovens em formação. Em matéria de humor televisivo, aliás, poucos o analisaram
tão profundamente como Moacyr Werneck de Castro, ao apontá-lo como verdadeira
regressão à infância, por meio de um ‘repertório de boçalidades’ (Humor na
Televisão, JB 06/07/91).
Acuso a TV brasileira de ser demolidora dos mais autênticos
e inalienáveis valores morais, sejam eles pessoais ou sociais, familiares,
éticos, religiosos e espirituais. Demolidora porque não somente zomba deles,
mas os dissolve na consciência do telespectador e propõe, em seu lugar, os
piores contravalores. Neste sentido, é assustadora a empresa de demolição da
família e dos mais altos valores familiares – amor, fidelidade, respeito mútuo,
renúncia, dom de si – realizada quotidianamente, sobretudo pelas telenovelas.
Em lugar disso, o deboche e a dissolução, o adultério, o incesto.
Acuso a TV brasileira de ser corruptora de menores,
em virtude de programas da mais baixa categoria moral, pelas cenas e pelo
palavreado, em horários em que crianças estão diante da caixa mágica.
Acuso-a de atentar contra o que há de mais sagrado,
como seja, a vida. Não há muitos dias, em programa reprisado, milhares de
espectadores viram e ouviram, no diálogo entre um talkman e uma jovem de vinte
anos a mais explícita apologia do aborto e o não velado incitamento à supressão
de vidas humanas no seu nascedouro.
Acuso-a de disseminar, em programas vários, idéias,
crenças, práticas e ritos ligados a cultos os mais estranhos. Ela se torna,
deste modo, veículo para a difusão de magia, inclusive magia negra, satanismo,
rituais nocivos ao equilíbrio psíquico.
Acuso a TV brasileira de destilar em sua
programação e instilar nos telespectadores, inclusive jovens e adolescentes,
uma concepção totalmente aética da vida: triunfo da esperteza, do furto, do
ganho fácil, do estelionato. Neste sentido, merecem uma análise à parte as
telenovelas brasileiras sob o ponto de vista psicossocial, moral, religioso.
Quando foi que, pela última vez, uma novela brasileira abordou temas como os
meninos de rua, os sem-teto e sem-trabalho, os marginalizados em geral? Qual
foi a novela que propôs ideais nobres de serviço ao próximo e de construção de
uma comunidade melhor? Em lugar disso, as telenovelas oferecem à população
empobrecida, como modelo e ideal, as aventuras de uma burguesia em
decomposição, mas de algum modo atraente.
Acuso, enfim, a televisão brasileira de instigar à
violência: ‘A televisão brasileira terá de procurar dentro de si as causas da
violência que ela desencadeou e de que foi vítima’ (Editorial Estrelas
candentes, JB, 06/01/93). ’Já se chamou a atenção para o fato de que o
crescimento de rede monopolística da televisão coincida com o crescimento da
violência no país e jamais se chegará no âmago da questão enquanto a própria
televisão se recusar a assumir sua responsabilidade’ (Editorial Limites da dor,
JB, 08/01/93). Ela não pode procurar álibis quando essa violência produz frutos
amargos. Quem matou, há dias, uma jovem atriz? Seria ingenuidade não indiciar e
não mandar ao banco dos réus uma co-autora do assassinato: a TV brasileira. A
novela das oito. E – sinto ter que dizê-lo – a própria novela De corpo e alma.
Cardeal, e ex-Primaz do Brasil Dom
Lucas Moreira Neves (+ in memorian)
Artigo publicado em 13 de janeiro de 1993 no Jornal do Brasil
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