Há meses
acompanhamos o desenrolar de uma profunda crise política no nosso país, que
acaba de ter como consequência o afastamento, ainda temporário, da presidente
da República e a formação de um novo governo. Que dizer, diante dessa situação?
É difícil fazer
uma avaliação serena e objetiva, uma vez que o conhecimento dos fatos e dos
motivos de decisões tomadas nem sempre está ao alcance de todos. Além disso, a
paixão política e ideológica pode turbar a objetividade das discussões. Mesmo
assim, e apesar das perplexidades suscitadas, cada brasileiro foi formando a
sua opinião. A meu ver, o Brasil passa, a duras penas, por um amadurecimento
político, que terá consequências benéficas.
Muitos perguntam
sobre a posição da Igreja
Católica diante da crise. A esse propósito, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
durante a sua recente assembleia-geral, em abril passado, emitiu uma declaração
com a posição do episcopado. O texto não entra propriamente no mérito das
acusações feitas à presidente, reconhecendo que esse papel cabe às instâncias
competentes da vida
pública nacional.
Em matéria
política, os cidadãos têm direito às suas próprias opiniões e por isso mesmo a
Igreja Católica não obriga a aderir a uma posição única. No seio da própria
Igreja, tratando-se de questões políticas, existe uma legítima diversidade de
posições, contanto que não estejam em desacordo com as convicções da própria fé
cristã. Vale lembrar um antigo dito, atribuído a Santo Agostinho: “No
essencial, unidade; no secundário, liberdade; e em tudo, caridade”.
Os bispos, no
entanto, manifestaram preocupações em relação ao cenário político, econômico,
social e ético e apontaram critérios e referências importantes a serem levados
em conta na busca da superação da crise brasileira.
Para que serve a
política? Ela deve respeitar critérios éticos?
A atual
polarização política atingiu níveis nunca antes vistos no Brasil e chega a
passar a impressão de uma torcida apaixonada, na qual se quer, a todo custo, a
vitória de um ou de outro lado. A política pode despertar paixões inflamadas,
sobretudo quando é motivada por ideologias fortemente arraigadas; pode até tornar-se
paixão cega e fanática, capaz de turbar a paz social. Não vai por aí o ideal da
ação política, à qual se reconhece um papel essencial na edificação do convívio
social e da paz.
Depois da
tempestade, a bonança permite olhar com mais serenidade o cenário e retomar a
reflexão sobre o que, de fato, importa para que a vida continue. Permito-me
fazer alusão a alguns princípios fundamentais da doutrina social da Igreja, que
deveriam iluminar a inteira vida política de um povo.
Primeiro de
todos, o princípio da dignidade da pessoa humana é a razão de ser e sustento de
toda instituição e toda ação política – que seriam ilegítimas e espúrias se
fossem contrárias à dignidade da pessoa humana, ou não fizessem caso dela. Como
qualificar a ação política que não fosse orientada fortemente pela promoção
desse bem fundamental?
Vem, depois, o
princípio do bem comum, que leva em conta a igual dignidade e os mesmos
direitos fundamentais de todas as pessoas. A vida social e política deve estar
orientada para a consecução do bem de todos, e não apenas de alguns. A promoção
do bem comum é dever de todos os cidadãos e de todas as instituições e
autoridades públicas, é objetivo primário do Estado e de tudo aquilo que o
representa.
Cabe ao Estado
assegurar a coesão e a organização da sociedade civil, da qual ele é expressão
máxima. Já ensinava o papa Leão XIII na primeira encíclica social (Rerum
novarum, 1891) que o objetivo da vida social é o bem comum historicamente
realizável. A promoção do bem comum é a própria razão de ser da autoridade
política; se deixasse de estar orientada por essa motivação, ela deixaria de
cumprir a sua missão primordial.
Outro princípio
importante que deve orientar a vida social e política é a “destinação universal
dos bens”. Os bens existentes neste mundo destinam-se ao sustento de todos,
“com o critério da equidade, tendo por guia a justiça e por companheira a
caridade” (Gaudium et spes, 69). Ninguém deve ser excluído, a priori,
do uso dos bens e nenhuma pessoa deveria ser privada do necessário para viver
dignamente. Assegurar o acesso aos bens indispensáveis à vida digna para todos
é uma das atribuições mais relevantes da política e de quem governa.
Necessário para
ordenar e dinamizar a vida social e política também é o princípio de
subsidiariedade, apontado já pelo papa Leão XIII, na encíclica antes citada. O
poder do Estado e o exercício da autoridade não podem ser concentrados e
sufocantes, mas precisam respeitar as múltiplas competências das instâncias
intermediárias entre o cidadão e o Estado. Das organizações da sociedade civil
surge um tecido social vivo e dinâmico, onde se expressam as pessoas e se
traduzem os valores por elas cultivados. Toda pessoa tem o direito de
participar da vida social e política. O poder concentrado no Estado empobrece e
sufoca a sociedade, sua iniciativa, liberdade e responsabilidade.
E não pode ser
ignorado o princípio da solidariedade. Há uma interdependência inequívoca de
todas as pessoas e de todos os povos, que vai ficando sempre mais evidente à
medida que cresce o fenômeno da globalização. O papa Francisco evidenciou esse
fato, de maneira prática e inquestionável, na sua encíclica Laudato sì, sobre
as questões ambientais. O futuro da natureza e do planeta Terra, nossa “casa
comum”, depende do cuidado de todos: para o bem e para o mal.
Difícil seria
edificar o futuro do nosso país sem levar em conta esses princípios basilares
da vida social e política. Nem mesmo a pluralidade dos partidos ou as
divergências ideológicas poderiam prescindir deles.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo
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