Lutero começou por negar.
Negou a autoridade, negou a tradição, negou o magistério
eclesiástico, negou a Igreja orgânica, visível, hierárquica. Com
que direito? Com que títulos? Não
existia havia 15 séculos o cristianismo? Não ascendiam os seus
pastores, os seus bispos, os seus papas, por uma sucessão
ininterrupta até aos apóstolos, até ao próprio Cristo?
—
Mas a Igreja Católica havia
perdido o espírito primitivo, havia adulterado os ensinamentos do
Evangelho, havia-o sobrecarregado com uma farragem de superstições
humanas, havia-o prostituído com a idolatria de Babilônia.
—
E como o sabe ele? Como o
prova? Não
havia Cristo prometido a sua assistência infalível à Igreja? Não
lhe havia assegurado que com ela estaria todos
os dias até
à consumação dos séculos?
Não
importa. Lutero entrincheira-se na Bíblia. — Mas
a Bíblia, quem a interpreta? Não a possuía, não a possui
porventura a Igreja Católica? Não
a liam todos os Santos Padres e Doutores? Não a conheciam todos os
concílios? Não a vulgarizavam todos os santos reformadores? E por
que a nenhum ocorreu a ideia de começar uma reforma destruindo a
Igreja em nome da Escritura, de embandeirar a Bíblia em pendão de
revolta contra a autoridade constituída por Cristo?
Falar
à consciência religiosa, ensinando verdades a crer e preceitos a
praticar, sem autorização divina, é embuste, impostura e
charlatanismo.
Lutero,
porém, possui um segredo especial de exegese desconhecido de toda a
antiguidade eclesiástica. Ele, o frade despeitado, guinda-se
às alturas proféticas de novo evangelista, recebe diretamente
ilustrações do Espírito Santo,
comunica com o santuário da Trindade [1] e dos seus recessos
inacessíveis traz ao mundo o dom de uma hermenêutica sacra, de cujo
bojo sai um cristianismo todo novo.
Destarte,
de consequência em consequência, Frei
Martinho é obrigado a arvorar-se uma missão divina,
a atribuir-se uma legação religiosa especial.
Ora, onde estão as
credenciais desta embaixada extraordinária? Nenhum homem pode
levantar-se no meio dos seus semelhantes e afirmar, sem provas
cabais, que é um enviado do Altíssimo. Nenhum homem pode guindar-se
à trípode dos oráculos e daí legislar religião para a humanidade
sem antes demonstrar apoditicamente a autenticidade de sua missão
plenipotenciária. Religião,
só Deus a pode impor ao homem.
Falar à consciência religiosa, ensinando verdades a crer e
preceitos a praticar, sem títulos divinos, sem autorização divina,
sem sanção divina, é embuste, é impostura, é charlatanismo.
Nossa dignidade de seres racionais revolta-se contra semelhantes
exploradores da credulidade pública. — Profeta
de Wittenberg, onde estão as cartas de crença de tua missão
divina?
A
garantia que temos da origem celeste de uma doutrina reside na
autoridade recebida do alto por aquele que no-la propõe.
Ora
os sinais com que Deus chancela a autoridade dos seus enviados são
os milagres: milagres que se manifestam na ordem física, milagres
que resplendem na santidade irrepreensível do divino enviado. Só
o milagre, intervenção extraordinária da divina onipotência, pode
autenticar as missões do céu.
Com milagres provou Jesus a
sua messianidade (cf. Jo 5,
36; 10, 37-38; 15, 22; Mt 12,
39-40); com milagres sigilou Deus a embaixada dos seus apóstolos
(cf. 2Pd1,
18; 2Cor 12,
12; Mc 16,
20); no milagre reconheceu sempre a apologética cristã, firmada nos
princípios da razão e nos ensinamentos dos livros inspirados, a
assinatura inimitável do divino Autor nas suas manifestações
extraordinárias à humanidade.
Que
milagres fizeram os primeiros reformadores para atestar o caráter
divino de sua missão?