O Lecionário para a Missa pós-Vaticano II se caracteriza por
uma série de finíssimos detalhes. Um deles é a leitura contínua dos Atos dos
Apóstolos durante as missas feriais do tempo pascal. Enquanto celebra a
Ressurreição ao longo de cinquenta dias, a Igreja também reflete sobre a
primeira evangelização: a comunidade cristã primitiva, com o poder do Espírito
Santo, espalha pelo mundo mediterrâneo a histórica notícia de que Jesus de
Nazaré, tendo ressuscitado dentre os mortos, constituiu-se Senhor e Salvador
para o perdão dos pecados.
Essa leitura em série dos Atos dos Apóstolos termina com
Paulo estabelecido em Roma, provavelmente no atual bairro do Trastevere,
falando com a comunidade judaica romana sobre as suas antigas esperanças na
aliança com Deus, que chega à plenitude em Cristo ressuscitado.
Há, no entanto, uma omissão dessa história cristã primitiva
que eu lamento muito: o lecionário omite o capítulo 27 dos Atos, que conta a
dramática história do naufrágio de Paulo e da sua breve estada em Malta, onde o
apóstolo é milagrosamente salvo de uma víbora venenosa e de onde ele parte em
outro navio para Roma.
Eis uma questão para refletirmos: inúmeros livros sobre a
história da Igreja foram escritos ao longo de dois milênios, mas o único livro
inspirado por Deus sobre a história da Igreja, os Atos dos Apóstolos, termina
com o relato de um naufrágio. Um aparente desastre que se transforma, por obra
da divina providência, em oportunidade para estender a missão da Igreja.
As cenas continuam em Atos 28. Paulo não está desfrutando das
melhores circunstâncias em Roma: ele vive sob uma espécie de prisão domiciliar.
Mesmo assim, ele transforma os seus aposentos em um centro de evangelização,
conclamando a comunidade judaica romana a repensar sobre Jesus e a reconsiderar
as críticas que eles tinham ouvido sobre a nova "seita" cristã, além
de explicar como Deus, por seu Espírito Santo, tinha estendido a salvação
vivificante também aos gentios. A inconveniência e a indignidade da prisão
domiciliar o levam a uma intensa atividade evangélica: "E ele viveu ali
durante dois anos inteiros, às próprias custas, e congratulou-se com todos
quantos vieram até ele, pregando o reino de Deus e ensinando sobre o Senhor
Jesus Cristo abertamente e sem obstáculos" (Atos 28,30).
Naufrágio e missão, ao que parece, se entrelaçam no DNA
histórico da Igreja.
Não se trata de sugerir que a Igreja deva deliberadamente
procurar o naufrágio. Grande parte dos danos infligidos ao catolicismo nas
últimas décadas são ferimentos que os próprios católicos abriram contra si
próprios e que as autoridades da Igreja têm a obrigação de sanar: os escândalos
de abusos sexuais, as histórias de terror sobre a vida católica de meados do
século XX na Irlanda, as formas de dissidência intelectual que esvaziaram o
catolicismo do patrimônio da verdade legado a ele pelo Senhor, o
contratestemunho público dos católicos que não conseguem defender com firmeza a
dignidade da pessoa humana em todas as fases da vida e em todas as condições de
vida. O assalto cultural mais amplo cometido contra a Igreja, porém, é outra
questão.
Alguns podem considerar um "naufrágio" a atual
agonia do catolicismo cultural que transmitiu e sustentou a fé em tantos países
do Ocidente. Mas o que é que deveríamos esperar, se a cultura pública ambiental
se torna tóxica, contrária à Bíblia e cristofóbica (para usar o agudo termo
recentemente enfatizado pelo jurista judeu ortodoxo Joseph Weiler)? Talvez o
fim do catolicismo cultural seja uma espécie de naufrágio; afinal, o
catolicismo que foi oferecido à próxima geração, sem grande esforço, é um tipo
de catolicismo por osmose.
E por que não tirarmos uma lição dos últimos capítulos dos
Atos dos Apóstolos e ver naquela dura realidade um convite providencial a nos
tornarmos, mais uma vez, uma Igreja em missão permanente? Uma Igreja em que
cada católico saiba que foi batizado para uma vocação missionária? Uma Igreja
em que os católicos saibam que a qualidade do seu discipulado é medida pelo
poder do seu testemunho de Cristo e da sua capacidade de convidar outras
pessoas a experimentarem a amizade com o Senhor ressuscitado?
O naufrágio e a missão parecem ser a dupla hélice que
impulsiona a história da Igreja.
O desafio é discernir as possibilidades para a missão que
Deus sempre codifica naquilo que nos parece, à primeira vista, um naufrágio
total.
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Fonte: Aleteia
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