A crença religiosa é infantil, de acordo com Auguste Comte, o
fundador da escola filosófica positivista. Essa ideia, de quase dois séculos de
idade, virou um mantra no coro dos atuais "novos ateus". Acontece que
este ponto de vista é danoso não tanto para a crença religiosa quanto para a
própria proposta científica. Como disse Marx, a história se repete: primeiro
como tragédia, depois como farsa.
Comte,
que também fundou a disciplina da sociologia, foi um dos primeiros a estudar o
conhecimento humano como produto de forças históricas, ou seja, sociais e
culturais.
Comte
considerava que, numa fase inicial, a mente humana se sente atraída por explicações
ocultas de observações sensoriais, tais como forças personificadas e causas
sobrenaturais. Ao progredir, o conhecimento humano entra num estágio
"metafísico" distinto: neste segundo estágio, a mente reformula a sua
busca de causas em termos racionais, mesmo que ainda sobrenaturais.
Essas
duas fases podem ser sucedidas por uma terceira e última. Nela, o conhecimento
se torna propriamente mundano pela primeira vez, enraizado nos dados positivos
dos sentidos e nas manifestações derivadas deles. Este seria o nascimento da
ciência moderna, positiva: a apoteose da razão humana.
Os
novos ateus também
veem a religião como uma expressão de imaturidade cognitiva. Richard Dawkins
escreve em “The God Delusion” [A Ilusão de Deus]: "Há algo de infantil na
ideia de que alguém tem a responsabilidade de dar significado à sua vida".
Ele contrapõe esta perspectiva à "visão verdadeiramente adulta".
A
ideia comteana de que a filosofia tradicional foi ultrapassada pela marcha da ciência se
tornou popular nos últimos tempos. Segundo este raciocínio, a investigação
metafísica já foi produtiva, mas, na melhor das hipóteses, ficou estéril e, na
pior, se reduziu a mera distração. Mera distração do quê? Da evidência
incontestável dos nossos sentidos, nos quais se alicerça, supostamente, o
conhecimento científico. "Tudo o que sabemos é o que observamos com os
nossos sentidos e instrumentos [...] Não temos a menor ideia do que ‘realmente’
existe além disso", escreve Victor Stenger.
Mas os
novos ateus e
seus aliados ideológicos também evidenciam de outras maneiras a sua
vulgarização comteana. Comte não só procurava deixar de lado os métodos
teológicos e metafísicos do saber: ele queria substituí-los pela nova ciência
positiva, que ele veio a chamar de “religião da humanidade”.
Religião
precisa de doutrina; neste sentido, Comte considerou que as conclusões da
"filosofia positiva", as invariáveis leis da natureza, poderiam
substituir o dogma religioso. Isso exigiria uma “evangelização”. Assim, ele
afirmou que as descobertas científicas devem ser sistematizadas e expostas por
uma "classe especial de homens", que não seriam nem praticantes das
ciências especiais nem analfabetos científicos. Estes "filósofos
positivistas" seriam os guardiões de um novo dogma.
Comte
não era ingênuo quanto ao status epistemológico do conhecimento científico, no entanto. Apesar da sua ênfase na
indubitabilidade das descobertas científicas, ele admitia que elas podiam, no
máximo, ser aproximações humanas. As leis naturais, escreveu ele, "o
verdadeiro objeto da pesquisa [científica], não poderiam permanecer
rigorosamente compatíveis com uma investigação detalhada demais".
O
problema? Se as leis científicas são apenas aproximadas, os leigos podem perder
a fé nelas. Assim, acreditava Comte, devem ser estabelecidos limites para a
investigação científica. A "classe especial de homens" desestimularia
as linhas e métodos de pesquisa que pudessem minar a certeza no conhecimento
científico. Comte foi longe o suficiente para condenar o emergente cálculo de
probabilidades por acreditar que o probabilismo encorajasse a ideia de que o
conhecimento científico é apenas "provável".
Assim, os filósofos positivos
foram os guardiões de uma “verdade escondida”, recapitulando a noção medieval
de que a verdade revelada pela luz da razão natural deve permanecer oculta às
massas cuja fé se fundamenta na escritura.
Os
novos ateus podem não condenar o uso das probabilidades nem estabelecer limites
para a pesquisa científica, mas promulgam, talvez sem se darem conta, a nobre
mentira de que o conhecimento científico é inabalavelmente alicerçado em
observações incontestáveis. Só assim a ciência poderia “roubar o poder da
religião”.
Os
potenciais perigos desse modo de interpretar a ciência são inúmeros. Mas o que
a história do positivismo comteano revela é que a ciência, e não a religião, é
quem mais tem a perder com isso.
A nova
“religião da humanidade” sonhada por Comte não apenas não se concretizou: a sua
nobre mentira teve o efeito oposto ao desejado. A ciência não conseguiu cumprir
as promessas do positivismo no final do século XIX e as pessoas começaram a
perder a fé no empreendimento científico.
Um
historiador escreve: “Os que deificaram a ciência [...] tinham em comum o dogma
fundamental de que a razão humana pode, através do ‘método científico’, vir a
conhecer e a entender tudo [...] O positivismo abordou até mesmo problemas
relacionados com as origens e os fins últimos, prometendo resultados demais, em
especial nas áreas morais, sociais e religiosas [...] Mas o contraste entre as
promessas e as limitadas realizações do cientificismo levou a uma forte reação
antipositivista”.
O
assim chamado debate sobre a "falência da ciência" permeou a cultura
francesa e viu o confronto entre pensadores religiosos e ideólogos do
cientificismo, entre céticos e racionalistas, ameaçando a hegemonia cultural de
que a ciência tinha desfrutado durante boa parte do século.
Estamos
hoje presenciando os nossos próprios debates sobre a "falência da
ciência". Os pilares do empreendimento científico – a reprodutibilidade
dos resultados experimentais e, mais recentemente e de forma destacada, o
processo de revisão por pares – têm estado na berlinda, corroendo a
credibilidade da ciência. E, como nos dias de Comte, esse debate não é questão
acadêmica: tem implicações culturais, sociais e políticas mais amplas.
Os cientistas e
os seus fanáticos têm razão ao criticar os céticos e os crentes religiosos que
exploram as "lacunas" das teorias científicas, as falhas no consenso
universal e a falta de evidências indiscutíveis. Ao agirem assim, estes céticos
mantêm a ciência, de modo implícito, num patamar impossivelmente alto de
certeza epistêmica. Mas o que os defensores da ciência muitas vezes não
conseguem perceber é que são eles mesmos, e não os céticos, os primeiros a
venderem esse alto patamar.
As
razões são evidentes. A ideia de ciência indubitável é reconfortante não só por
causa do – excepcionalmente alto – status epistêmico que ela confere à
disciplina, mas também porque estabelece limites claros e incontestáveis
entre ciência e “não-ciência”. As noções não apenas religiosas, mas também "pseudocientíficas",
podem ser firmemente descartadas: são "infantis", carentes de prova,
irracionais e assim por diante. Na pior das hipóteses, os esquemas ideológicos
e políticos podem ser justificados com base em fatos científicos supostamente
incontestáveis.
É
difícil convencer o público leigo de que certas conclusões devem ser aceitas
porque possuem alto grau de probabilidade e são válidas até que surja uma
interpretação melhor dos dados que vão sendo descobertos. Seria mais fácil
afirmar a descoberta de um fato incontroverso através apenas de meios de
observação.
O problema é que a ciência não
chega até os fatos incontroversos através apenas de meios de observação. Ela
propõe teorias, modelos conceituais para explicar e interpretar dados
empíricos, através de experimento, de inferência e – sim! – de imaginação e de
especulação filosófica. Seja capaz ou não o público leigo de articular o que a
ciência faz, é óbvio para muitos que as reivindicações exageradas feitas tantas
vezes em nome da ciência não se sustentam.
O
perigo de se inflar assim o estado da ciência é que as características comuns,
neutras ou mesmo positivas da ciência (a sua atitude experimental, a sua
abertura à refutação, a sua dependência de suposições extraempíricas, a
interpenetração de observação e teoria e até mesmo a dificuldade de reproduzir
experiências cruciais) se tornam lacunas, suposições a ser exploradas, razões
para se abandonar a fé na ciência como tal.
Embora
a influência de Comte permaneça, a geração de pensadores que se seguiu aos
debates sobre a "falência da ciência" exibiu maior sofisticação na
sua compreensão da ciência, produzindo alguns dos mais brilhantes cientistas,
filósofos e historiadores da ciência do século XX. Talvez os detritos dos
atuais debates sobre ciência e religião proporcionem um terreno similarmente
fértil para que uma visão mais sofisticada e humanista da ciência se enraíze.
Para começar, poderíamos acatar uma sugestão de Comte e examinar a nossa
própria história.
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Fonte: Aleteia
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