Permanece
vivo em muitas igrejas o costume de cobrir com um véu roxo a cruz e as imagens
sacras durante a última semana da Quaresma. Embora tal tradição já se tenha
perdido em alguns lugares e em outras tantos não se saiba mais qual seu
significado, a igreja ainda o recomenda. Neste pequeno artigo apresentaremos
algumas informações de caráter histórico sobre a origem desse costume e, ao
fim, verificaremos nos livros litúrgicos restaurados por decreto do Concílio
Vaticano II como se deve proceder atualmente.
O velum quadragesimale
Para descobrir a origem do véu das imagens é
preciso retroceder aos primeiros séculos do cristianismo, pois é a partir da
prática penitencial antiga que se desenvolverá esse costume, como veremos. A
disciplina penitencial da Igreja antiga era extremamente rígida: durante meses
e até anos, ou em certos casos até ao fim da vida, o penitente deveria realizar
atos ascéticos e não poderia participar plenamente da liturgia. Assim como os
penitentes, todos os pagãos, hereges e os catecúmenos não podiam acompanhar
toda a celebração eucarística.
Sinal disso é que, até a publicação do Missal de
Paulo VI (1969), a missa era dividida em duas partes: a “missa dos catecúmenos”
(orações ao pé do altar, intróito, kyrie, glória, oração coleta, leitura, salmo
gradual, evangelho, prédica, credo) e missa dos fiéis (ofertório, cânon, ritos
de comunhão, oração pós-comunhão, bênção final, último evangelho). De início a
missa dos catecúmenos era concluída com uma oração de bênção e o convite do
diácono para os “não-fiéis” já enumerados retirarem-se¹.
Véu quaresmal que cobre todo o
presbitério (Freiburg - Münster, Alemanha)
|
Tal convite – que num largo processo desembocou no
atual “Ite, missa est”, “Ide, a missa terminou” ou “Ide, é a missa [missão,
envio]” – marcava a saída dos catecúmenos e penitentes do recinto sagrado. Os
penitentes eram reconciliados na manhã da Quinta-feira Santa, para participarem
do Tríduo Pascal.
Segundo D. Prósper Guéranger e o Pe. João Batista
Reus (p. 149-150), quando a penitência pública caiu em desuso e passou a ser
praticada a penitência privada dada pelo confessor, o sentido da saída dos
penitentes foi preservado com o uso litúrgico do “velum quadragesimale”, o “véu
da quaresma”. Esse véu inicialmente recobria todo o presbitério, ocultando
completamente o altar aos olhos de todos, como que advertindo-os de que é
necessário fazer penitência antes de tomar parte nos Sagrados Mistérios.
O Pe. Edward McNamara conduz tal costume a uma
tradição germânica:
Em seguida, tal prática foi simplificada.
Desapareceu o véu quaresmal, ficando apenas o véu da cruz e das imagens.
... a origem histórica desta prática [...]
provavelmente deriva do costume, existente na Alemanha desde o IX século, de
estender um grande tecido na frente do altar desde o início da Quaresma. Este
tecido, chamado “Hungertuch” (pano de fome), cobria inteiramente o altar para
os fiéis durante a quaresma e não era removido até a leitura da Paixão na
Quarta-feira Santa, às palavras “o véu do templo partiu-se em dois”. (tradução
livre nossa – original em inglês)
Uma interpretação alegórica:
“... mas Jesus
escondeu-se” (Jo 8,59).
Após a explicação da origem histórica dos véus
quaresmais, vejamos agora o significado alegórico e espiritual que foi
atribuído a este rito e que ajuda a tomá-lo como auxílio visual na preparação à
Páscoa do Senhor.
Na liturgia anterior ao Concílio Vaticano II,
chamada agora de “Forma Extraordinária do Rito Romano”, a V Semana da Quaresma
era chamada de Tempo da Paixão, estendendo-se até o início do Tríduo Sacro. Era
um período profundamente austero.
Se no IV Domingo (Laetare²) a Igreja despojou-se
das vestes penitenciais para vestir as da alegria pela proximidade da Páscoa,
agora no Tempo da Paixão ela deve intensificar a penitência e estimular os
piedosos pensamentos sobre a morte de Cristo.
Durante toda a Quaresma o “enlutamento” da Igreja
pelo Noivo que é retirado vai tornando-se sempre maior. Durante o Tempo da
Paixão, além do “Aleluia” e do “Glória a Deus nas alturas”, que não são
entoados desde a Quarta-feira de Cinzas, também não é mais rezado o “Glória ao
Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”. Ao aproximar-se o sacrifício do Cordeiro
Pascal a Igreja mergulha na dor da sua morte.
Os paramentos deste tempo ainda são roxos. Mas
(sempre na liturgia anterior a 1969) na Sexta-feira Santa o luto chegará ao seu
ápice: a Igreja vestir-se-á de preto, como faz por ocasião do falecimento de
qualquer cristão (embora hoje dificilmente se veja um padre vestir paramentos
pretos em celebrações exequiais...). É o dia da morte do Esposo. Dia de luto
universal.
No Domingo da Paixão (hoje V Domingo da Quaresma)
lia-se o evangelho de João 8,46-59, que apresenta o grande conflito de Jesus
com os judeus. Ele apresenta-se como o Messias divino (“Eu sou” é o nome de
Deus), anterior a Abraão (cf. Jo 8,58). O resultado é que os judeus tentam
apedrejá-lo. Jesus tem de esconder-se e sair do templo.
Ao escolher este evangelho, a liturgia anterior
ressaltava o clima de tensão que conduziria à condenação capital de Jesus. Para
expressar simbolicamente esse mistério a liturgia cobria as imagens com um véu
roxo. Este é o sentido espiritual apresentado por D. Prósper Guéranger, OSB:
Na espera desta hora [a hora da agonia do Filho,
quando o Esposo será tirado], a santa Igreja manifesta os seus dolorosos
pressentimentos velando antecipadamente a imagem do divino Crucificado. A
própria Cruz fica invisível aos fiéis, desaparecendo através de um véu. Não se
verão mais as imagens dos santos, porque é justo que o servo se esconda, quando
se eclipsa a glória do Patrão. Os intérpretes da Liturgia ensinam que o austero
uso de velar a Cruz no tempo da Paixão significa a humilhação do Redentor, que
foi constrangido a esconder-se para não ser lapidado pelos judeus... (tradução
livre nossa – original em italiano).
O véu das
imagens no Missal de Paulo VI
Historicamente, como vimos, a velatio das
imagens é uma adaptação do costume de impedir aos penitentes, hereges e
não-batizados a participação, a “visão” dos Sagrados Mistérios: da expulsão dos
penitentes passou-se ao véu amplo que escondia todo o presbitério e que foi
reduzido, posteriormente, ao véu das cruzes e imagens sacras na Igreja.
Do ponto de vista espiritual o costume foi
interpretado como sinal da penitência à qual todos os fiéis são chamados, ainda
como sinal da antecipação do luto da Igreja pela morte do seu Esposo e da
humilhação de Cristo, que teve de esconder-se para escapar da ameaça de morte.
Até a publicação do Missal de Paulo VI, em 1969,
era obrigatório o costume de cobrir as imagens na V Semana da Quaresma. A
reforma litúrgica, porém, ao contrário do que muitos imaginam, não aboliu este
uso. Ele foi tornado facultativo, podendo ser mantido a juízo das conferências
episcopais. É o que afirma a rubrica do sábado da IV Semana da Quaresma:
Pode-se
conservar o costume de cobrir as cruzes e imagens da igreja, a juízo das
Conferências Episcopais. As cruzes permanecerão veladas até o fim da celebração
da Paixão do Senhor, na Sexta-feira Santa. As imagens, até o início da Vigília
Pascal.
Note-se, contudo, que mesmo onde não se mantém o costume de cobrir com o véu roxo as imagens na última semana quaresmal, é recomendado cobrir ou retirar da igreja as cruzes no final da Missa na Ceia do Senhor, na Quinta-feira Santa, durante o Tríduo Pascal, de modo que na Celebração da Paixão apresente-se aos fiéis uma única cruz. No final da Celebração da Paixão todas as cruzes são desveladas. Eis a rubrica do Missal Romano:
Após
alguns momentos de adoração silenciosa [ao Santíssimo Sacramento que foi levado
em procissão após a oração depois da comunhão], o sacerdote e os ministros
fazem genuflexão e voltam à sacristia. Retiram-se as toalhas do altar e, se
possível, as cruzes da Igreja. Convém velar as que não possam ser retiradas.
Se na sua igreja este belo costume ainda é conservado, aproveite essas informações para explicar aos demais membros da comunidade o seu sentido. Assim, também com os sinais externos da penitência, do recolhimento, da purificação da visão e do coração de tudo o que é secundário ou mesmo supérfluo, poderemos concentrar o nosso sentir, pensar e agir no Cristo Crucificado. Com os olhos fixos no Senhor, percorrendo com ele a Via Dolorosa, chegaremos às núpcias do Cordeiro Redivivo, à Páscoa da Ressurreição.
Laersio
da Silva Machado
Seminarista
da Diocese de Imperatriz,
3º ano de
Teologia
________________________________________
Notas:
Notas:
¹ Pode-se aprofundar o assunto no livro clássico de Pe. Josef Andreas
Jungmann, Missarum Sollemnia, Parte III “Os ritos das partes da missa. A
liturgia da Palavra”, Capítulo II “A Liturgia da Palavra”, n. 9 “Despedidas”,
(São Paulo: Paulus, 2009. pp. 460-465).
² Sobre o IV Domingo da Quaresma, veja o post AQUI.
______________________________
REFERÊNCIAS:
REFERÊNCIAS:
MISSAL ROMANO. Restaurado por decreto do Sagrado Concílio Ecumênico
Vaticano Segundo e promulgado pela autoridade do Papa Paulo VI. Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo/Petrópolis:
Paulinas/Vozes, 1992.
GUÉRANGER, D. Prósper, OSB. L’Anno liturgico. “Mistica del Tempo
di Passione e Settimana Santa” Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2011. (em
italiano)
REUS, João Batista, SJ. Curso de liturgia. 2.ed.rev.aum.
Petrópolis: Vozes, 1944.
JUNGMANN, Josef Andreas. Missarum Sollmenia: origens, liturgia,
história e teologia da missa romana. 5.ed.corr. São Paulo:
Paulus, 2009.
MCNAMARA, Edward. Covering of crosses and
images in lent. Entrevista publicada em Zenit, 03 mar. 2005. Disponível em: . Acesso em:
24 mar. 2011. (em inglês)
RIGHETTI, Mario. Historia de la liturgia: I – Introduccion
general. El año liturgico. El breviario. Madrid: La Editorial Catolica, 1955.
(Biblioteca de autores cristianos – BAC, 132). (em espanhol).
____________________________________
Arte de Celebrar
Nenhum comentário:
Postar um comentário