“Eis que a virgem conceberá, e dará a luz a um filho, e lhe chamará Emanuel” (Is 7, 14)
“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio
de graça e de verdade”(Jo 1,14)
01. O Natal aproxima-se. Os cristãos, bem como
todos os homens de boa vontade, sentem que algo diferente ocorre nestes dias:
multiplicam-se as luzes nas cidades, tornam-se comuns os votos de felicidade e
prosperidade, os sorrisos abrem-se de forma mais espontânea em tantas faces, os
presépios encantam as pessoas de todas as idades… Enfim, mergulha-se em uma
atmosfera diferente. Não se pode, entretanto, permitir que o Natal torne-se,
como para muitos se tem tornado, mera ocasião para troca de presentes e
cumprimentos. O Natal e o Advento guardam uma mensagem própria e bastante
peculiar para a Igreja: trata-se de um período de profunda riqueza em nosso ano
litúrgico.
02. Sabe-se que o ano civil destina-se a organizar
as relações humanas, possibilitando que as pessoas tenham um mesmo referencial
de tempo. O ano litúrgico, por sua vez, permite que o Povo de Deus medite e
celebre, em uma mesma época, as verdades relacionadas à encarnação, vida,
paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Leituras, orações, cores, ícones
e canções típicas: tudo se destina a fazer com que os cristãos de todo o mundo
possam melhor compreender e usufruir os frutos da redenção operada, na
plenitude dos tempos, por Jesus Cristo, Filho de Deus vivo. Na alegria e no
conforto que a comunhão dos santos nos oferta, também contemplamos, no decorrer
do ano litúrgico, os méritos dos Santos, isto é, aqueles que, em sua vida,
souberam ser dóceis à graça de Deus e, sob o influxo dela, assemelharam-se ao
seu Senhor e Salvador.
03. É necessário, sobretudo em razão do Ano Santo
que vivemos – justamente o Jubileu dos 2000 anos da Encarnação de Cristo –, que
sejamos levados a meditar sobre o sentido e significado do tempo do Advento,
que antecede e prepara o Natal do Senhor. A Igreja tem ensinado que este
período litúrgico apresenta um caráter dúplice: ao mesmo tempo que somos
levados a fazer memória do nascimento de Jesus, também devemos, em júbilo e esperança,
aguardar, a exemplo da comunidade cristã em seus primórdios, a Sua volta. Ora,
na contemplação destas duas verdades, acabamos por entender que, de forma toda
especial, no período do Advento, renova-se o convite para aprofundarmos nossa
relação de amizade com o Mestre, crescendo nas virtudes, com destaque para a fé
e para a caridade, e renunciando firmemente a todo o vício que nos impede de
vivermos conforme o Seu desígnio de amor.
04. Daí falar-se no Advento como um período de
memória, no qual recordamos o nascimento do Senhor, de vigília, em razão do
retorno do Senhor, e de mística, visto que somos, com redobrado entusiasmo,
convidados a aprofundar nossa comunhão com Deus, percorrendo um itinerário de
amadurecimento na fé, na firme certeza de que o “progresso espiritual tende à
união sempre mais íntima com Cristo. Esta união recebe o nome de “mística”,
pois ela participa do mistério de Cristo pelos sacramentos – “os santos
mistérios” – e, nele, no mistério da Santíssima Trindade. Deus chama-nos a todos
a esta íntima união com ele, mesmo que graças especiais ou sinais
extraordinários desta vida mística sejam concedidos apenas a alguns, em vista
de manifestar o dom gratuito feito a todos”.
05. Em verdade, os Padres da Igreja, ao fazerem
seus sermões acerca da natividade do Senhor Jesus, sempre destacavam a
necessidade de associarmos a Sua primeira Vinda, Seu nascimento em Belém da
Judéia, marcado por profunda simplicidade, com a Sua Volta, no Juízo Final,
acontecimento que se revestirá de grande glória, visto que “assim como o
relâmpago sai do oriente e se mostra no ocidente, assim há de ser a vinda do
Filho do homem”(Mt 24, 27). Vicent Ryan destaca a importância dos textos
patrísticos para bem compreendermos o período litúrgico do Advento: “Os Padres
da Igreja, fiéis à Escritura, não dissociavam estas duas vindas,
consideravam-nas em conjunto e falavam delas quase simultaneamente. Um exemplo
da exposição patrística é dado por São Cirilo de Jerusalém, que nos fala da
dupla vinda de Jesus Cristo no ofício das leituras para o primeiro domingo.
‘Não pregamos somente uma vinda de Cristo’, diz ele, ‘mas também a segunda,
muito mais gloriosa do que a primeira’. Depois prossegue, contrastando as duas
vindas: ‘Na primeira, ele foi envolvido em panos em uma manjedoura. Na segunda,
está vestido de luz como uma túnica. Na primeira carregou a cruz, desprezando o
opróbrio; virá uma segunda vez na glória acompanhado por hostes de anjos’ “.
Bem se percebe que tais eventos guardam ampla relação entre si e não devemos dissociá-los.
Ao contemplarmos e adorarmos o Menino Deus na humildade da gruta de Belém,
devemos lembrar que uma próxima visita do mesmo Jesus, agora glorificado, está
prevista no plano amoroso de Deus.
06. Com efeito, ensina a Igreja que “no dia do
juízo, por ocasião do fim do mundo, Cristo virá na glória para realizar o
triunfo definitivo do bem sobre o mal, os quais, como o trigo e o joio, terão
crescido junto ao longo da história”. As primeiras comunidades cristãs, como já
visto, aguardavam a segunda vinda do Senhor e nutriam a expectativa de que Seu
retorno se daria brevemente. Durante o Medievo, o “Dia do Juízo” foi confundido
com o “Dia da Ira” – Dies Irae –, talvez de modo impróprio, posto que Cristo é
nosso Salvador e nossas próprias obras, que podem se ajustar ou não à palavra
do Senhor, é que dão testemunho contra nós, de modo que Ele não nos julga, mas
nos salva, e a palavra que Ele nos anuncia é que nos julgará no último dia.
Contemporaneamente, a Liturgia mostra que os cristãos tem uma compreensão,
acerca da volta do Senhor, mais assemelhada a dos nossos primeiros pais que a
da Igreja no Medievo: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa
ressurreição. Vinde Senhor Jesus”, reza a Igreja perante o Cristo eucarístico.
07. Parece ser mais simples meditarmos os mistérios
já ocorridos na História da Salvação, como a encarnação do Verbo de Deus, Jesus
Cristo, do que aqueles mistérios cuja a realização ainda está por
concretizar-se. Não podemos, entretanto, deixar de entendê-los no contexto
único que eles compõem. É inegável, de qualquer forma, que a proximidade do
Natal torna mais presente a imagem do Menino Jesus, de modo que se faz mais
freqüente a nossa reflexão sobre o grande amor de Deus manifestado no
nascimento de Seu filho unigênito, cheio de graça e de verdade, para dar ao
mundo uma nova vida. Quão grande é o amor de Deus! Perfeito em si mesmo, assume
a forma humana – bem como muitas de suas decorrências: nossas necessidades,
doenças, sofrimentos, lágrimas(!) – para resgatar-nos de nossas profundas
imperfeições. Deus verdadeiro e homem verdadeiro, participante da natureza
humana e divina simultaneamente, Jesus Cristo veio divinizar a humanidade e
derrotar justamente aquele mal que nos aflige e não O aflige: veio ser o
Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Em sua Epístola aos Filipenses,
São Paulo nos fala de maneira muito profunda sobre a encarnação de Jesus
Cristo: “Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com
Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tomando a
semelhança humana”. Esvaziar-se. Trata-se de uma palavra-chave neste ponto da
reflexão. Imagine o infinito tomando uma forma finita, imagine o todo-poderoso
assumindo a fragilidade de uma criança, imagine aquele para quem todas as
coisas foram feitas acomodado na simplicidade extrema de uma manjedoura.
Bondade tamanha, por amar “até o extremo”, só poderíamos mesmo encontrar em
Deus! Colocando-se entre suas criaturas, na forma tão singela de um menino,
Jesus Cristo – Deus que assume a natureza humana – começa a dar seu testemunho
de amor pela humanidade. Entre José e Maria, dois Santos, na pobreza da
manjedoura, ele dá seu primeiro grande testemunho de amor na qualidade de Deus
encarnado. Entre os dois ladrões, no alto do Calvário, pendendo em uma cruz,
ele dá seu último testemunho de amor antes de ser glorificado pela
ressurreição. Em ambos os testemunhos, um esvaziamento inefável. Jesus Cristo,
na manjedoura e no Calvário, oferta provas irrefutáveis de seu amor sem fim e deve
ser por todos amado, adorado e glorificado.
08. Há um lugar especial no qual Jesus quer ser
acolhido, sendo que o Advento e o Natal são sempre propícios para fazermos
memória disto: no coração de cada homem – independente de qualidades, condição
social, raça, língua – Jesus quer estabelecer morada. São Bernardo foi o
responsável pela associação desta “segunda vinda do Senhor” – a primeira é a
natividade e terceira é a Sua volta – ao período litúrgico do Advento. Esta
vinda intermediária tem natureza espiritual, concerne ao tempo presente – ao
hoje –, depende do nosso sim e compõe o significado místico do Advento e do
Natal. Melhor deixar a palavra com o próprio São Bernardo: “Esta vinda
intermediária é como entrada que conduz da primeira para a última vinda. Na
primeira, Cristo foi a nossa redenção, na segunda, surgirá como nossa vida;
nesta vinda intermediária ele é o nosso repouso e o nosso consolo”. Há belos
textos, nas Sagradas Escrituras, que falam desta vinda do Senhor ao coração do
homem, e que denotam o sentido de comunhão que deve reger a relação entre Deus
e o fiel. Exemplo disto está no livro do Apocalipse: “Eis que estou à porta e
bato: se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, entrarei em sua casa e
cearemos, eu com ele e ele comigo”. Alguns bem-aventurados abrem-se de tal
forma a Cristo que são capazes de afirmar, em um testemunho cristão sem igual,
que sua relação com o Ele já tomou conta de todo o seu viver: “Eu vivo, mas já
não sou eu; é Cristo quem vive em mim. A minha vida presente, na carne, eu a
vivo na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”. Que o Advento
e o Natal deste Ano Santo possam produzir em cada cristão frutos espirituais
abundantes, fortalecendo nossa relação com o Mestre de Nazaré, nascido pobre em
Belém, que nos revela a face invisível de Deus Pai Criador e nos envia o
Espírito Santo Paráclito.
09. Papel destacado, no Advento, é o reservado a
Maria Santíssima, aquela que foi dócil instrumento para que plano salvífico de
Deus fosse realizado. Sua postura, de meditar, em seu coração, os
acontecimentos extraordinários ocorridos quando do nascimento do Menino Jesus,
é para nós um modelo ímpar e muito precioso, sobretudo nestes dias, nos quais a
necessidade de contemplação das verdades reveladas é tão evidente. Deve-se
destacar que “Maria é a personagem de ligação entre a humanidade que busca Deus
e Deus que busca a humanidade. Ela representa a esperança e a ansiedade humana,
numa atitude de espera e de busca, de fé e coragem.(…) O ‘sim’ de Maria
predispõe o nosso espírito inconstante para o ‘sim’ ao projeto de Deus em nossa
história”. Portanto, ela é a Mater Spei – Mãe da Esperança –, que apesar de não
compreender de imediato todas as coisas que se passavam, firmou seu olhar em um
futuro que haveria de ser desenhado pelas mãos providentes de Iahweh, o Senhor
que a “cheia de graça” testemunha santo, misericordioso e poderoso. É
necessário destacar que, no Advento, vivemos a Festa da Imaculada Conceição de
Maria. De fato, quem é absolutamente repleta de graça, em quem há esta graça
que transborda, não pode haver qualquer pecado, seja original ou pessoal, visto
que o pecado e a graça de Deus são inconciliáveis. Por privilégio divino, em
virtude dos méritos previstos de Cristo, Maria não foi manchada pelo pecado original
e perseverou livre de qualquer mácula durante toda sua vida. Que a Imaculada
Conceição, Maria Santíssima, interceda por nós, a fim de que seja possível,
durante este Advento, transformarmos nosso coração em morada de Jesus Cristo,
seu Filho e Salvador da humanidade.
10. As Escrituras Sagradas manifestam que o Menino
Jesus, de importância central no Advento, crescia em “sabedoria e graça”. Que a
Comunidade de Emaús, presente em tantos pontos do Brasil, possa, haurindo as
‘forças que saem’ de Cristo, dar testemunho de que medita o nascimento de seu
Salvador, aguarda ansiosa Seu retorno e quer viver em profunda comunhão com
Ele, crescendo em sabedoria e graça. Possamos, no limiar do III Milênio
Cristão, pela intercessão de Maria, anunciar destemidamente o Deus Uno e Trino,
a quem amamos sobre todas as coisas, em quem esperamos e em quem depositamos
nossa fé. Que a Comunidade de Emaús, sempre a serviço da Santa Madre Igreja,
fortalecida pelo tempo do Advento, propague que “em Jesus de Nazaré nasceu o
Salvador do mundo. Essa é a resposta ao nosso mais profundo questionamento
sobre o significado da vida. É a grande boa nova da salvação”. Que a benção de
Deus, sobre nossa Comunidade Missionária, derrame-se em profusão! Shalom!
Referências
Cf. 1Cor 16,22; Ap 22, 17.20
Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 524.
Catecismo da Igreja Católica, n. 2014.
Ver também Ap 1, 7.
RYAN, Vicent. Do Advento à Epifania. São Paulo:
Paulinas, 1992. p.12-3.
Catecismo da Igreja Católica, n. 681.
Ver Ap 14, 13;
Cf. Jo 12, 47-48
Fl 2, 6-7.
Cf.
Jo 1, 3.
Apud
RYAN, Vicent. Op. cit. p.11-12.
Ap
3, 20.
Gl
2, 20.
Cf. Lc 1, 29 e 2, 19.
BOGAZ, Antônio Sagrado. Natal: Festa de luz e de
alegria. São Paulo: Paulus, 1996. p. 132-3.
Lc 1, 28.
Cf.
Lc 1, 49-50.
Lc
2, 52.
Cf.
Mc 5, 30.
RYAN,
Vicent. Op. cit. p.122.
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Fonte:
Marcelo Câmara
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