Todos nós sabemos dos grandes perigos que hoje
sofrem algumas das nossas famílias: famílias fragmentadas, feridas, quebradas,
em necessidades de pobreza, de miséria e de angustia. Dificuldades internas e
externas. Preocupações de tipo laboral e econômico; visões distintas na
educação dos filhos, provenientes de diferentes modelos educativos dos pais; os
reduzidos tempos para o diálogo e o descanso. A tudo isto se junta fatores
disgregados como a separação e o divórcio, e o preocupante crescimento da
prática abortiva. O mesmo egoísmo pode levar à falsa visão de considerar os
filhos como objetos de propriedade dos pais, que podem ser fabricados segundo
os seus desejos. Violência, abusos, álcool, drogas, pornografia e outras formas
de dependência sexual. E também essas situações pastorais difíceis: as uniões
livres ou em segundas núpcias sem ter recebido o sacramento do matrimonio. O
que fazer diante destes desafios?
Hoje temos que olhar o modelo da Sagrada Família
para que nos digam o segredo para formar uma família ideal e possamos lançar
luz nestes desafios. Devemos voltar uma e outra vez ao plano originário de
Deus para a família. É verdade que Deus começou o seu plano arrancando Abraão
do seio da sua família, mas ao mesmo tempo lhe fez a promessas de um
descendente, de um herdeiro, Cristo, ao redor do qual se formaria a família
perfeita. E quando com braço poderoso tirou os judeus do Egito fez isso para
constitui-los em povo, em família de Deus. Seguindo a mesma linha, Deus
constituiu depois a Igreja - novo Israel- ao modo de uma família, com um Pai
comum. Somos todos da família de Jesus. E nesta família perfeita está o pai, a
mãe e os filhos. São Paulo na segunda leitura de hoje nos dá a chave para
edificar esta família de Jesus com um único alicerce: o amor mútuo, feito
humildade, afabilidade, paciência, perdão, paz, gratidão, oração, respeito,
obediência. O pai é a cabeça, a mãe é o coração e os filhos são a coroa desses
pais.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
Textos: Eclo 3, 3-7.14-17; Col 3, 12-21; Lc 2,20-40
Hoje celebramos a festa da Sagrada Família
Jesus, Maria e José. Deus quis manifestar-se aos homens integrado numa família
humana. Ele quis nascer numa família, quis transformar a família num presépio vivo.
Pode-se dizer que hoje celebramos o verdadeiro Dia da Família!
A Palavra de Deus em (Eclo. 3, 3 – 7. 14 – 17)
lembra aos filhos o dever de honrarem pai e mãe, de socorrê-los e compadecer-se
deles na velhice, ter piedade, isto é, respeito e dedicação para com eles; isto
é cumprimento da vontade de Deus.
São Paulo, em Cl 3, 12 – 21, enumera as
virtudes que devem reinar na família: sentimentos de compaixão, de bondade,
humildade, mansidão e paciência. Suportar-se uns aos outros com amor,
perdoar-se mutuamente. Revestir-se de caridade e ser agradecidos. Se a família
não estiver alicerçada no amor cristão, será muito difícil a sua perseverança
em harmonia e unidade de corações. Quando esse amor existe, tudo se supera,
tudo se aceita; mas, se falta esse amor mútuo, tudo se faz sumamente pesado. E
o único amor que perdura, não obstante os possíveis contrastes no seio da
família, é aquele que tem o seu fundamento no amor de Deus.
A Sagrada Família é proposta pela Igreja como
modelo de todas as famílias cristãs: na casinha de Nazaré, Deus ocupa sempre o
primeiro lugar e tudo Lhe está subordinado.
Os lares cristãos, se imitarem o da Sagrada
Família de Nazaré, serão lares luminosos e alegres, porque cada membro da
família se esforçará em primeiro lugar por aprimorar o seu relacionamento
pessoal com o Senhor e, com espírito de sacrifício, procurará ao mesmo tempo
chegar a uma convivência cada dia mais amável com todos os da casa.
A família é escola de virtudes e o lugar
habitual onde devemos encontrar a Deus.
Cada lar cristão tem na Sagrada Família o seu
exemplo mais cabal; nela, a família cristã pode descobrir o que deve fazer e
como deve comportar-se, para a santificação e a plenitude humana de cada um dos
seus membros. Diz o Papa Paulo VI: “Nazaré é a escola onde se começa a
compreender a vida de Jesus: a escola do Evangelho. Aqui se aprende a olhar, a
escutar, a meditar e a penetrar o significado, tão profundo e tão misterioso,
dessa muito simples, muito humilde e muito bela manifestação do Filho de Deus entre
os homens. Aqui se aprende até, talvez insensivelmente, a imitar essa vida”.
A família é a forma básica e mais simples da
sociedade. É a principal escola de todas as virtudes sociais. É a sementeira da
vida social, pois é na família que se pratica a obediência, a preocupação pelos
outros, o sentido de responsabilidade, a compreensão e a ajuda mútua, a
coordenação amorosa entre os diversos modos de ser. Está comprovado que a saúde
de uma sociedade se mede pela saúde das famílias. Esta é a razão pela qual os
ataques diretos à família (como divórcio, aborto, união de pessoas do mesmo
sexo) são ataques diretos à própria sociedade, cujos resultados não tardam a
manifestar-se.
O Messias quis começar a sua tarefa redentora
no seio de uma família simples, normal. O lar onde nasceu foi a primeira
realidade humana que Jesus santificou com a sua presença.
Hoje, de modo muito especial, pedimos à
Sagrada Família por cada um dos membros da nossa família e pelo mais
necessitado dentre eles.
PARA REFLETIR
Estamos no Natal. Vêm-nos à lembrança os
diversos fatos e circunstâncias que rodearam o nascimento do Filho de Deus, e o
olhar detém-se na gruta de Belém, no lar de Nazaré. Maria, José e Jesus Menino
ocupam, de modo muito especial, o centro do nosso coração. Que nos diz, que nos
ensina a vida ao mesmo tempo simples e admirável dessa Sagrada Família?
Entre as muitas considerações que poderíamos
fazer, quero comentar agora principalmente uma. O nascimento de Jesus
significa, como diz a Escritura, a inauguração da plenitude dos tempos, o
momento escolhido por Deus para manifestar por inteiro seu amor aos homens,
entregando-nos o seu próprio Filho. Essa vontade divina cumpre-se no meio das
circunstâncias mais normais e comuns: uma mulher que dá à luz, uma família, uma
casa. A Onipotência divina, o esplendor de Deus, passam através das realidades
humanas, unem-se ao elemento humano. A partir daí, nós, os cristãos, sabemos
que, com a graça do Senhor, podemos e devemos santificar todas as realidades
nobres da nossa vida. Não há situação terrena, por mais insignificante e vulgar
que pareça, que não possa ser ocasião de um encontro com Cristo e etapa do
nosso caminhar para o reino dos céus.
Por isso, não é de estranhar que a Igreja se
alegre e se rejubile, contemplando a modesta morada de Jesus, Maria e José. É
grato - reza o hino de matinas desta festa - recordar a pequena casa de Nazaré
e a existência simples que ali se vive, celebrar com cânticos a simplicidade
humilde que rodeia Jesus, a sua vida escondida. Foi ali que, ainda menino, Ele
aprendeu o ofício de José, foi ali que cresceu em idade e participou num
trabalho de artesão. Junto dele sentava-se sua doce Mãe; junto de José vivia a
sua esposa bem-amada, feliz de poder ajudá-lo e oferecer-lhe seus cuidados.
Ao pensar nos lares cristãos, gosto de
imaginá-los luminosos e alegres, como foi o da Sagrada Família. A mensagem do
Natal ressoa com toda a força: Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na
terra aos homens de boa vontade. Que a paz de Cristo triunfe em vossos
corações, escreve o Apóstolo. A paz de nos sabermos amados por nosso Pai-Deus,
incorporados em Cristo, protegidos pela Virgem Santa Maria, amparados por José.
Essa é a grande luz que ilumina nossas vidas e que, por entre as dificuldades e
misérias pessoais, nos impele a continuar para a frente, cheios de ânimo. Cada
lar cristão deveria ser um remanso de serenidade em que, por cima das pequenas
contrariedades diárias, se pudesse notar uma afeição profunda e sincera, uma
tranquilidade profunda, fruto de uma fé real e vivida.
Para um cristão, o matrimônio não é uma
simples instituição social, e menos ainda um remédio para as fraquezas humanas:
é uma autêntica vocação sobrenatural. Sacramento grande em Cristo e na Igreja,
diz São Paulo , e, ao mesmo tempo e inseparavelmente, contrato que um homem e
uma mulher estabelecem para sempre, porque - queiramos ou não - o matrimônio
instituído por Jesus Cristo é indissolúvel: sinal sagrado que santifica, ação
de Jesus que se apossa da alma dos que se casam e os convida a segui-Lo,
transformando toda a vida matrimonial em um caminhar divino sobre a terra.
Os casados estão chamados a santificar o seu
matrimônio e a santificar-se a si próprios nessa união; por isso, cometeriam um
grave erro se edificassem a sua conduta espiritual de costas para o lar, à
margem do lar. A vida familiar, as relações conjugais, o cuidado e a educação
dos filhos, o esforço necessário para manter a família, para garantir o seu
futuro e melhorar as suas condições de vida, o convívio com as outras pessoas
que constituem a comunidade social, tudo isso são situações humanas, comuns,
que os esposos cristãos devem sobrenaturalizar.
A fé e a esperança têm que manifestar-se na
serenidade com que se encaram os problemas, pequenos ou grandes, que surgem em
todos os lares, no ânimo alegre com que se persevera no cumprimento do dever.
Assim, a caridade inundará tudo e levará a compartilhar as alegrias e os
possíveis dissabores, a saber sorrir, esquecendo as preocupações pessoais para
atender os demais; a escutar o outro cônjuge ou os filhos, mostrando-lhes que
são queridos e compreendidos de verdade; a não dar importância a pequenos
atritos que o egoísmo poderia converter em montanhas; a depositar um amor
grande nos pequenos serviços de que se compõe a convivência diária.
Santificar o lar, dia a dia; criar, com o
carinho, um autêntico ambiente de família: é disso que se trata. Para
santificar cada jornada, é preciso praticar muitas virtudes cristãs; em
primeiro lugar, as teologais, e depois todas as outras: a prudência, a
lealdade, a sinceridade, a humildade, o trabalho, a alegria... Mas no caso do
matrimônio, da vida matrimonial, é preciso começar com uma referência clara ao
amor dos cônjuges.
O amor puro e limpo dos esposos é uma
realidade santa que eu, como sacerdote, abençoo com as duas mãos. Na presença
de Jesus Cristo nas bodas de Caná, a tradição cristã tem visto frequentemente
uma confirmação do valor divino do matrimônio: Nosso Salvador foi às bodas -
escreve São Cirilo de Alexandria - para santificar o princípio da geração
humana.
O matrimônio é um sacramento que faz de dois
corpos uma só carne; como diz com expressão forte a teologia, sua matéria são
os próprios corpos dos nubentes. O Senhor santifica e abençoa o amor do marido
pela mulher e o da mulher pelo marido: estabelece não somente a fusão de suas
almas, mas também a de seus corpos. Seja ou não chamado à vida matrimonial,
nenhum cristão pode desprezá-la.
O Criador deu-nos a inteligência, que é como
uma centelha do entendimento divino, e que nos permite - mediante a vontade
livre, outro dom de Deus - conhecer e amar; e deu ao nosso corpo a
possibilidade de gerar, que é como uma participação do seu poder criador. Deus
quis servir-se do amor conjugal para trazer novas criaturas ao mundo e aumentar
o corpo da sua Igreja. O sexo não é uma realidade vergonhosa, mas uma dádiva
divina que se orienta limpamente para a vida, para o amor e para a fecundidade.
Este é o contexto, o pano de fundo em que se
situa a doutrina cristã sobre a sexualidade. Nossa fé não desconhece nada das
coisas belas, generosas, genuinamente humanas que há aqui em baixo. Ensina-nos
que a regra do nosso viver não deve ser a busca egoísta do prazer, porque só a
renúncia e o sacrifício levam ao verdadeiro amor: Deus amou-nos e convida-nos a
amá-lo e a amar os outros com a verdade e a autenticidade com que Ele nos ama.
Quem conservar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a vida por amor de mim,
encontrá-la-á, escreveu São Mateus em seu Evangelho, com frase que parece paradoxal.
As pessoas em cuidados consigo mesmas, que
agem buscando acima de tudo a sua própria satisfação, põem em risco a sua
salvação eterna e já agora são inevitavelmente infelizes e desgraçadas. Só quem
se esquece de si mesmo e se entrega a Deus e aos outros - também na vida
matrimonial - pode ser feliz na terra, com uma felicidade que é preparação e
antecipação do céu.
Enquanto caminhamos pela terra, a dor é a
pedra de toque do amor. No estado matrimonial, considerando as coisas de uma
maneira descritiva, poderíamos afirmar que há anverso e reverso. De um lado, a
alegria de se saber querido, o entusiasmo de construir e fazer singrar um lar,
o amor conjugal, o consolo de ver os filhos crescerem. De outro, dores e
contrariedades, o passar do tempo, que consome os corpos e ameaça azedar os
caracteres, a aparente monotonia dos dias que parecem sempre iguais.
Formaria um pobre conceito do matrimônio e do
carinho humano quem pensasse que, ao tropeçar com essas dificuldades, o amor e
a alegria se acabam. Precisamente então, quando os sentimentos que animavam
aquelas criaturas revelam a sua verdadeira natureza, é que a doação e a ternura
se enraízam e se manifestam como um afeto autêntico e profundo, mais poderoso
do que a morte.
Essa autenticidade do amor requer fidelidade e
retidão em todas as relações matrimoniais. Comenta São Tomás de Aquino que Deus
uniu às diversas funções da vida humana um prazer, uma satisfação; esse prazer
e essa satisfação são, portanto, bons. Mas se o homem, invertendo a ordem das coisas,
procura essa emoção como valor último, desprezando o bem e o fim a que deve
estar ligada e ordenada, perverte-a e desnaturaliza-a, convertendo-a em pecado
ou em ocasião de pecado.
A castidade - que não é simples continência,
mas afirmação decidida de uma vontade enamorada - é uma virtude que mantém a
juventude do amor, em qualquer estado de vida. Existe uma castidade dos que
sentem despertar em si o desenvolvimento da puberdade, uma castidade dos que se
preparam para o casamento, uma castidade daqueles a quem Deus chama ao
celibato, uma castidade dos que foram escolhidos por Deus para viverem no
matrimônio.
Como não recordar aqui as palavras fortes e
claras com que a Vulgata nos transmite a recomendação do Arcanjo Rafael a
Tobias, antes de este desposar Sara? O anjo admoestou-o assim: Escuta-me e eu
te mostrarei quem são aqueles contra os quais o demônio pode prevalecer. São os
que abraçam o matrimônio de tal modo que excluem Deus de si e de sua mente, e
se deixam arrastar pela paixão como o cavalo e o mulo, que estão desprovidos de
entendimento. Sobre esses o diabo tem poder.
Não há amor humano puro, franco e alegre no
matrimônio se não se vive a virtude da castidade, que respeita o mistério da
sexualidade e o faz convergir para a fecundidade e a entrega. Nunca falei de
impureza e sempre evitei descer a casuísticas mórbidas e sem sentido, mas, de
castidade e de pureza, da afirmação jubilosa do amor, sim, falei muitíssimas
vezes e devo falar.
A respeito da castidade conjugal, assevero aos
esposos que não devem ter medo de expressar o seu carinho, antes pelo
contrário, pois essa inclinação é a base da sua vida familiar. O que o Senhor
lhes pede é que se respeitem e que sejam mutuamente leais, que se confortem com
delicadeza, com naturalidade, com modéstia. Dir-lhes-ei também que as relações
conjugais são dignas quando são prova de verdadeiro amor e, portanto, estão
abertas à fecundidade, aos filhos.
Cegar as fontes da vida é um crime contra os dons
que Deus concedeu à humanidade e uma manifestação de que a conduta se inspira
no egoísmo, não no amor. Então tudo se turva, os cônjuges chegam a olhar-se
como cúmplices; e produzem-se dissensões que, a continuar nessa linha, são
quase sempre insanáveis.
Quando a castidade conjugal acompanha o amor,
a vida matrimonial torna-se expressão de uma conduta autêntica, marido e mulher
compreendem-se e sentem-se unidos; quando o bem divino da sexualidade se
perverte, a intimidade se destrói, e marido e mulher já não se podem olhar
nobremente nos olhos.
Os esposos devem edificar a sua vida em comum
sobre um carinho sincero e limpo, e sobre a alegria de terem trazido ao mundo
os filhos que Deus lhes tenha conferido a possibilidade de ter, sabendo
renunciar a comodidades pessoais e tendo fé na Providência. Formar uma família
numerosa, se tal for a vontade de Deus, é penhor de felicidade e eficácia,
embora afirmem outra coisa os fautores de um triste hedonismo.
Não vos esqueçais de que, entre os esposos, há
ocasiões em que não é possível evitar as rusgas. Não alterqueis nunca diante
dos filhos: fá-los-íeis sofrer e pôr-se-iam de um dos lados, contribuindo
talvez para aumentar inconscientemente a vossa desunião. Mas brigar, sempre que
não seja muito frequente, também é uma manifestação de amor, quase uma
necessidade. A ocasião, não o motivo, costuma ser o cansaço do marido, esgotado
pelo trabalho profissional; a fadiga - oxalá não seja o aborrecimento - da
esposa, que teve de lutar com as crianças, com as empregadas ou com o seu
próprio caráter, às vezes pouco rijo, ainda que vós, mulheres, sejais mais
enérgicas que os homens, se vos propondes sê-lo.
Evitai a soberba, que é o maior inimigo da
vossa vida conjugal: em vossas pequenas brigas, nenhum dos dois tem razão. Aquele
que estiver mais sereno deve dizer uma palavra que contenha o mau humor até
mais tarde. E mais tarde - a sós - discuti, que logo fareis as pazes.
Vós, mulheres, pensai se porventura não
descuidais um pouco o arranjo pessoal; recordai, com o provérbio, que “a mulher
bem-posta tira o homem de outra porta”: é sempre atual o dever de vos
apresentardes amáveis como quando éreis noivas, dever de justiça, porque
pertenceis ao vosso marido; e ele não deve esquecer, igualmente, que é vosso e
que conserva a obrigação de ser, durante toda a vida, afetuoso como um noivo.
Mau sinal se sorrísseis com ironia ao lerdes este parágrafo: seria sinal
evidente de que o afeto familiar se havia convertido em gélida indiferença.
Não se pode falar do matrimônio sem pensar ao
mesmo tempo na família, que é o fruto e a continuação da realidade que se
inicia com o matrimônio. Uma família compõe-se, não só do marido e da mulher,
mas também dos filhos e, em um ou outro grau, dos avós, dos demais parentes e
das empregadas domésticas. O calor íntimo de que depende o ambiente familiar
deve chegar a todos eles.
É certo que há casais a quem o Senhor não
concede filhos: é sinal, então, de que lhes pede que continuem a querer-se com
igual carinho e que dediquem as suas energias - se puderem - a serviços e
tarefas em benefício de outras almas. Mas o normal é que um casal tenha
descendência. Para estes esposos, a primeira preocupação devem ser os seus
próprios filhos. A paternidade e a maternidade não terminam com o nascimento:
essa participação no poder de Deus, que é a faculdade de gerar, deve
prolongar-se mediante a cooperação com o Espírito Santo, para que culmine com a
formação de autênticos homens cristãos e autênticas mulheres cristãs.
Os pais são os principais educadores de seus
filhos, tanto no aspecto humano como no sobrenatural, e devem sentir a
responsabilidade dessa missão, que exige deles compreensão, prudência, saber
ensinar e sobretudo saber amar; e que se empenhem em dar bom exemplo. Não é
caminho acertado para a educação a imposição autoritária e violenta. O ideal
dos pais concretiza-se antes em chegarem a ser amigos dos filhos: amigos a quem
se confiam as inquietações, a quem se consultam os problemas, de quem se espera
uma ajuda eficaz e amável.
É necessário que os pais consigam tempo para
estar com os filhos e falar com eles. Os filhos são o que há de mais
importante: são mais importantes que os negócios, que o trabalho, que o
descanso. Nessas conversas, convém escutá-los com atenção, esforçar-se por
compreendê-los, saber reconhecer a parte de verdade - ou a verdade inteira -
que possa haver em algumas de suas rebeldias. E, ao mesmo tempo, ajudá-los a
canalizar retamente seus interesses e entusiasmos, ensiná-los a considerar as
coisas e a raciocinar, não lhes impor determinada conduta, mas mostrar-lhes os
motivos sobrenaturais e humanos que a aconselham. Em uma palavra,
respeitar-lhes a liberdade, já que não há verdadeira educação sem
responsabilidade pessoal, nem responsabilidade sem liberdade.
Os pais educam fundamentalmente com a sua
conduta. O que os filhos e as filhas procuram no pai e na mãe não são apenas
uns conhecimentos mais amplos que os seus, ou uns conselhos mais ou menos
acertados, mas algo de maior categoria: um testemunho do valor e do sentido da
vida encarnado numa existência concreta, confirmado nas diversas circunstâncias
e situações que se sucedem ao longo dos anos.
Se tivesse que dar um conselho aos pais,
dir-lhes-ia sobretudo o seguinte: que os vossos filhos vejam - não alimenteis
ilusões, eles percebem tudo desde crianças e tudo julgam - que procurais viver
de acordo com a vossa fé, que Deus não está apenas nos vossos lábios, que está
nas vossas obras, que vos esforçais por ser sinceros e leais, que vos quereis e
os quereis de verdade.
Assim contribuireis da melhor forma possível
para fazer deles cristãos verdadeiros, homens e mulheres íntegros, capazes de
enfrentar com espírito aberto as situações que a vida lhes apresente, de servir
aos seus concidadãos e de contribuir para a solução dos grandes problemas da
humanidade, levando o testemunho de Cristo aonde quer que se encontrem mais
tarde, na sociedade.
Escutai os vossos filhos, dedicai-lhes também
o vosso tempo, mostrai-lhes confiança, acreditai no que vos disserem, ainda que
uma vez ou outra vos enganem; não vos assusteis com as suas rebeldias, posto
que também vós, na mesma idade, fostes mais ou menos rebeldes; saí-lhes ao
encontro, até meio do caminho, e rezai por eles. E vereis como recorrerão a
seus pais com simplicidade - podeis estar certos, se agis assim cristãmente -,
em vez de recorrerem, com suas legítimas curiosidades, a um amigalhaço
desavergonhado e brutal. A vossa confiança, a vossa relação amigável com os
filhos, receberá em resposta a sinceridade deles para convosco. E isto é a paz
familiar, a vida cristã, embora não faltem contendas e incompreensões de pouca
monta.
Como descreverei - pergunta um escritor dos
primeiros séculos - a felicidade desse matrimônio que a Igreja une, que a
entrega confirma, que a bênção sela, que os anjos proclamam, e que Deus Pai tem
por celebrado?... Ambos os esposos são como irmãos, servos um do outro, sem que
se dê entre eles separação alguma, nem na carne nem no espírito. Porque
verdadeiramente são dois numa só carne, e onde há uma só carne deve haver um só
espírito... Ao contemplar esses lares, Cristo se alegra e envia-lhes a sua paz;
onde estão dois, ali está Ele também, e onde Ele está, não pode haver nada de
mau.
Procuramos resumir e comentar alguns traços
desses lares em que se reflete a luz de Cristo e que, por isso - repito -, são
luminosos e alegres; lares em que a harmonia que reina entre os pais se
transmite aos filhos, à família inteira e a todos os ambientes que a
acompanham. Assim, em cada família autenticamente cristã, reproduz-se de algum
modo o mistério da Igreja, escolhida por Deus e enviada como guia do mundo.
A todo o cristão, seja qual for a sua condição
- sacerdote ou leigo, casado ou solteiro -, aplicam-se plenamente as palavras
do Apóstolo que se lêem precisamente na Epístola da festa da Sagrada Família:
escolhidos de Deus, santos e amados. Isso somos todos, cada um no seu lugar no
mundo: homens e mulheres escolhidos por Deus para dar testemunho de Cristo e
levar aos que nos rodeiam a alegria de se saberem filhos de Deus, apesar dos
nossos erros e procurando lutar contra eles.
É muito importante que nunca falte o sentido
vocacional do matrimônio, tanto na catequese e pregação como na consciência
daqueles a quem Deus queira nesse caminho, já que estão real e verdadeiramente
chamados a incorporar-se aos desígnios divinos de salvação de todos os homens.
Por isso, talvez não se possa propor aos
esposos cristãos melhor modelo que o das famílias dos tempos apostólicos: o centurião
Cornélio, que foi dócil à vontade de Deus, e em cuja casa se consumou a
abertura da Igreja aos gentios ; Áquila e Priscila, que difundiram o
cristianismo em Corinto e em Éfeso, e que colaboraram com o apostolado de São
Paulo ; Tabita, que com a sua caridade assistiu os necessitados de Jope. E
tantos outros lares de judeus e gentios, de gregos e romanos, aos quais chegou
a pregação dos primeiros discípulos do Senhor.
Famílias que viveram de Cristo e que deram a
conhecer Cristo. Pequenas comunidades cristãs, que atuaram como centros de
irradiação da mensagem evangélica. Lares iguais aos outros lares daqueles
tempos, mas animados de um espírito novo, que contagiava os que os conheciam e
com eles se relacionavam.
Assim foram os primeiros cristãos e assim
havemos de ser nós, os cristãos de hoje: semeadores de paz e de alegria, da paz
e da alegria que Jesus nos trouxe.
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