Reverendíssima Madre Geral,
Eu sou Lucy Veturse, uma das Junioristas que foram
violentadas pelos milicianos sérvios … acontecimento que atingiu a mim e às
duas Irmãs Religiosas: Tatiana e Sendria.
Seja-me permitido não descer a certos particulares
do fato. Há experiências tão tristes na vida que não podem ser comunicadas para
ninguém a não ser àquele Bom Pastor a quem me consagrei no ano passado com os
três votos religiosos.
O meu drama não é a humilhação padecida, como
mulher, nem a ofensa insanável feita à minha escolha existencial e vocacional,
mas é sobretudo a dificuldade de inscrever na minha fé um acontecimento que
certamente faz parte do insondável e misterioso plano dAquele que eu
continuarei a considerar sempre o meu Divino Esposo.
Tinha lido, poucos dias antes, o ´Diálogo das
Carmelitas´ de Bernanos e me tinha sido espontâneo pedir ao Senhor poder eu
mesmo morrer mártir. Ele me tomou na palavra,…mas de que jeito! Encontro-me
atualmente numa angustiante noite escura do espírito. Ele destruiu o projeto de
vida que eu considerava definitivo para mim. De improviso me inseriu em um novo
desígnio que neste momento é , para mim, ainda a ser descoberto. [...]
Escrevo, Madre, não para receber da senhora
conforto, mas para que me auxilie a agradecer a Deus por me ter associado a
milhares de minhas compatrícias ofendidas na honra e forçadas à maternidade
indesejada. Minha humilhação junta-se à delas e, pois que não tenho outra coisa
para oferecer para a expiação dos pecados cometidos pelos anônimos
violentadores e para uma pacificação entre as duas opostas etnias, aceito a
desonra padecida e a entrego à misericórdia de Deus.
Agora eu sou uma entre elas, uma das tantas
anônimas mulheres do meu povo com o corpo destruído e a alma devastada. Nosso
Senhor me admitiu a participar de seu mistério de vergonha; mais ainda a mim,
Religiosa e freira, concedeu o privilégio de compreender até o fundo a força
diabólica do mal.
Sei que, de agora em diante, as palavras de
encorajamento e de consolação que conseguir extrair do meu pobre coração, serão
com certeza aceitas, porque a minha história é a história delas e a minha
resignação, sustentada pela fé, poderá servir, se não de exemplo, pelo menos de
referencial para as suas reações morais e afetivas. [...]
Lembro que, quando frequentava em Roma a
Universidade ´Auxilium´ para a formatura em Letras, uma idosa docente de
Literatura Eslava citava os seguintes versos do poeta Alexei Mislovich: ´Tu não
deves morrer, porque tu escolheste ficar do lado da vida´. Na noite em que fui
dilacerada pelos sérvios, por horas seguidas continuava a repetir para mim
mesma aquelas palavras que me pareciam como um bálsamo para a alma, mesmo no
momento em que o desespero parecia aflorar para me apanhar. Agora tudo passou
e, se me volto para trás, tenho a impressão de ter tido um terrível sonho feio.
Tudo passou, mas, Madre, tudo está para começar. No
seu telefonema, depois de suas palavras de conforto, de que ficarei agradecida
por toda a minha vida, a senhora me colocou uma clara pergunta: ´Que farás da
vida que te foi jogada no seio? ´. Percebi que sua voz tremia ao me colocar
esta interrogação, à qual achei pouco oportuno responder logo, não porque não
tivesse já refletido sobre a escolha, a decisão a ser tomada, mas para não
atrapalhar as eventuais propostas e projetos seus a meu respeito.
Eu já decidi. Se for mãe, o menino será meu e de
ninguém mais. Sei que poderia confiá-lo a outras pessoas, mas ele tem direito,
mesmo não sendo esperado por mim, nem pedido, ao meu amor de mãe.
Não se pode arrancar uma planta de suas raízes. O
grão caído no chão precisa de crescer lá onde o misterioso semeador, mesmo
sendo iníquo, o jogou. Realizarei minha vocação religiosa, mas de outra
maneira. Não peço nada à minha Congregação, que já me deu tudo. Fico agradecida
pela solidariedade fraternal das coirmãs, que nestes dias me encheram de
atenções e amabilidades, em particular por não me ter incomodado com perguntas
indiscretas. Irei embora com meu filho, se Deus quiser. Não sei ainda aonde,
mas Deus, que interrompeu improvisamente minha maior alegria, me orientará e
indicará o caminho a percorrer para cumprir sua vontade.
Voltarei a ser uma moça pobre, retomarei meu velho
avental, meus tamancos, que as mulheres usam nos dias de semana, e irei com
minha mãe a recolher a resina da casca dos pinheiros dos nossos vastos bosques.
Deve mesmo haver alguém que comece a quebrar a corrente
de ódio que deturpa, há tanto tempo, os nossos países. Ao filho que vier (se
Deus quer que venha) ensinarei mesmo somente o AMOR. Ele, nascido pela
violência, testemunhará, perto de mim, que a única grandeza que honra a pessoa
humana, é aquela do PERDÃO.
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O Povo Online/Ancoradouro
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