O anjo entra
em sua casa
A “Força de Deus” (é este o sentido do nome
Gabriel) foi enviada a uma entre todas as províncias, cujo nome vem declinado:
a Nazaré, na Galileia. Gabriel veio encontrar-se com uma mulher entre todas e o
seu nome também nos foi comunicado: Maria, que está noiva de um homem que não é
um homem qualquer: chama-se José. O amor com o qual Deus nos ama não é,
portanto, um amor global, abstrato, voltado à humanidade em geral. Não: é um
amor que se dirige a cada um em particular, pois foi Deus que, aliás, nos
concedeu a cada um o dom de existir. Podemos dizer que cada um de nós é amado e
buscado como se fosse o único no mundo. E este amor, no entanto, nos invade
para nos atravessar e seguir até os outros. Na Anunciação, ele se dirige,
através de Maria e de José, para este Jesus, descendente de Davi, mas que ainda
não estava ali. A partir de Jesus é que o amor irá reunir a humanidade inteira
a qual, de alguma forma, nele irá fundir-se. Então, todos se tornarão Um. O
amor que vem de Deus será como uma circulação sanguínea que irriga todos os
membros. A Igreja, corpo do Cristo, é a figura desta humanidade unificada. Na
origem de tudo isto está o "Sim" de Maria à invasão divina. Devemos
compreender que a Anunciação não se refere somente a Maria, a José e a Jesus,
mas a cada um de nós e à humanidade inteira. A humanidade completada, perfeita,
não é uma coleção de indivíduos justapostos, mas a unidade de um só corpo. A
criança que está prometida a Maria traz consigo a humanidade toda. Não olhemos
a Anunciação como se fosse um acontecimento exterior a nós: ela não é. Estamos
todos incluídos nela. E mais, devemos compreender que este relato não fala
apenas de algo que se passou dois mil anos atrás, mas refere-se também ao que
nos acontece hoje: Jesus vem ao mundo e a cada um de nós sem cessar, e vem de
novo, sempre.
Do medo à fé
Jamais saberemos o que se esconde sob esta figura
da visita do anjo. Há aí qualquer coisa de indizível, sem dúvida, de não
representável. Por mais que o anjo tenha trazido uma boa notícia, a primeira
reação de Maria foi de medo. O anjo então lhe disse: «mè phobou», ou seja, não
tenhas medo. Ela terá de viver a passagem do medo à fé, passagem que temos
todos de cumprir e que representa a própria substância da nossa relação com
Deus. Passagem a se fazer e refazer, o que vale até mesmo para Maria. O anjo
irá deixá-la, a luz deslumbrante se apagará e tudo irá voltar ao mais prosaico
cotidiano. Terá agora de crer sem ver. Serão trinta anos de rotina, mais três
anos de uma aventura incompreensível e inquietante: de fato, em Mateus 12,46 e
Marcos 3,32, não vemos Maria em busca de recuperar Jesus? Enfim, na Cruz, a
Espada da Palavra, espada de dor, a traspassará (ver Lucas 2,35, para ler em
paralelo com Hebreus 4,12). Ter-se-á cumprido então tudo o que se achava
escondido no relato da Anunciação e encontraremos Maria com os apóstolos para
uma nova gestação, a do novo Corpo do Cristo: a Igreja. Mas, por enquanto,
fiquemos com Maria na hora da fecunda visita de Deus e não esqueçamos que,
guardadas as devidas proporções, é também a nós que esta passagem da Escritura
se refere. Abramo-nos à visita de Deus e façamos para Ele uma morada dentro de
nós.
Filho de
Deus, Filho do homem
As palavras que o anjo diz a Maria para anunciar o
nascimento do Cristo podem causar-nos admiração. Ele, por certo, dá à criança
que está por vir o título de «Filho de Deus», mas, para nos atermos ao texto, o
futuro desta criança limita-se a herdar o trono de Davi seu pai, e a reinar
para sempre sobre a casa de Jacó… Daí se entende que, mesmo depois da
Ressurreição, os discípulos perguntassem a Jesus: «Senhor, é agora o tempo em
que irás restaurar a realeza em Israel?» (Atos 1,6). Nada está dito sobre a
salvação da humanidade inteira. Talvez Maria não estivesse ainda em condição de
receber esta mensagem. Notemos o momento em que o nome de Davi vem citado duas
vezes na Anunciação: uma vez no versículo 27, para nos dizer que José é «da
casa de Davi», e uma vez no versículo 32, onde lemos que Deus dará a Jesus «o
trono de Davi seu pai». Por ser filho de José é que Jesus pode ser chamado de
Filho de Davi. O que quer que pensemos da paternidade de José, guardemo-nos de
subestimá-la. Não é dito que Maria fosse da casa de Davi; prima de Isabel, mais
parece ser de linhagem sacerdotal. Acrescentemos que o «Nada a Deus é
impossível» do versículo 27 é uma retomada das palavras dirigidas a Sara, a
propósito do nascimento naturalmente impossível de Isaac (Gênesis 18,14). Maria
vem fechar e coroar a lista das maternidades «milagrosas» da Bíblia.
Pe. Marcel Domergue
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Referências bíblicas:
1ª leitura: 2S 7, 1-16
Salmo: 88 (89)
2ª leitura: Romanos 16, 25-27
Evangelho: Lucas 1, 26-38
Fonte: Croire
Tradução: Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Disponível em: Instituto Humanitas Unisinos
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